in DN
Mónica Ferro é diretora do Fundo Populacional das Nações Unidas e trabalha em Genebra de onde se vê um mundo cada vez mais desigual e complexo, que ela tenta ajudar a mudar. E os problemas, assume, são cada vez mais no nosso quintal. Entrevista com uma portuguesa notável e atenta.
Como é que se vê o mundo do ponto de vista da ONU em Genebra?
Genebra dá-nos um ponto de vista global. Acompanho tudo o que tenha que ver com direitos humanos, saúde, migrações. Há sinais muito positivos de avanço em muitas áreas porque, de facto, há coisas que sabemos fazer melhor do que nunca. Na saúde sabemos como reduzir a mortalidade materna. Não obstante, todos os dias morrem 800 mulheres de causas ligadas à gravidez. Há outras áreas, a educação, em que as agendas se vão consolidando. E há recuos.
Recuos ou não avanços?
Não avanços e recuos. As crises humanitárias levantam desafios. Conseguimos reduzir a percentagem de mulheres e meninas expostas ao risco de mutilação genital feminina, de casamento infantil, mas os números são maiores. Há mais mulheres e meninas em risco. Porque a população mundial cresceu. E temos alguns movimentos que questionam a importância de investir na igualdade de género.
Isso é novo, até na sua carreira?
Tem uma expressão que não tinha antes. Sempre soubemos que há grupos e países em que o avanço dos direitos das mulheres é completamente pressionado.
Mas antigamente vinham de sítios que já eram mais ou menos esperados. Agora estão espalhados por todo o lado. Certo?
Certo. Com o aparecimento de uma série de movimentos populistas, com narrativas mais do que nacionais, quase nativistas - aquela ideia de que há uma identidade pura de cada um dos povos nacionais, o que é uma mentira, como todos nós sabemos, e de que é preciso proteger essa identidade -, tudo o que venha com o rótulo universalista, como os direitos humanos, a igualdade, o desenvolvimento, pode ser uma ameaça ao cerne da identidade nacional. O peso que determinados grupos religiosos têm na tomada de decisão política faz que se questione conquistas.
Isso tem que ver com o facto de o mundo estar mais desigual e haver uma tentativa de proteção desses poderes afastando uma certa fatia da população?
Eu diria que sim, porque, de facto, o mundo está mais complexo. Eu acho que a grande crise dos nossos tempos é esta incapacidade de nos pormos no lugar do outro. A empatia. O mundo está de facto mais desigual e nós notamos muito isso. É uma desigualdade complexa: de acesso ao poder, aos recursos, ao emprego. Nas Nações Unidas há uma nova frente de combate que não existia: agora temos de nos virar para a nossa própria casa. E nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ninguém completou a agenda de direitos humanos.
Porque o mundo deixou de ter essa capacidade de empatia? Ou, se calhar, nunca teve?
Se calhar, nunca tivemos muito, também porque vivemos muito isolados. Volto à comunicação social: esta coisa de eu acordar de manhã e me servirem ao pequeno-almoço um atentado à bomba que matou não sei quantas pessoas iguaizinhas a mim, isso devolve-me a minha humanidade, não é? Para muitas pessoas esse confronto constante com a ideia de que há outros iguais a nós noutras partes do mundo não é confortável. As pessoas não gostam de ser confrontadas com o que não lhes é confortável.
"Quando eu digo que posso ajudar a mudar o mundo, dizem-me: "Lá vens tu com o discurso à miss." Mas não. As pessoas sentem-se tão impotentes perante o sofrimento que acham que não conseguem mudar nada. "
Com a sua humanidade…
Com a sua humanidade. Quando me perguntavam porque é que eu saio de uma carreira confortável na universidade e de outras coisas engraçadas que eu fazia para ir para a política, eu respondia sempre que achei sempre que posso ajudar a mudar o mundo. Diziam-me: "Ah, lá vens tu com o discurso à miss." [risos] Não é. Eu acho que as pessoas se sentem tão impotentes às vezes perante tanto sofrimento que acham que não conseguem mudar nada e, portanto, fecham-se. É uma estratégia de proteção.
As tecnologias não vieram também ajudar nisso, ao contrário do que se pensava.
Não, porque esta coisa de estarmos sempre contactáveis e conectados ao resto do mundo aumenta a nossa exposição.
Falando um pouco dos Estados Unidos... Como é que se lida do seu ponto de vista, da ONU, com Trump? É com diplomacia?
A resposta mais intuitiva que me surge é: com provas! Demonstrando que, por exemplo, o discurso de diabolização da migração é totalmente mentira. Essa é uma das áreas de fundação da minha organização. Nós fazemos este ano 50 anos. Faz 25 anos a Agenda do Cairo, a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, que já dizia que há uma ligação íntima entre migração e desenvolvimento. Quanto maior for o grau de desenvolvimento de um país, menor vai ser a emigração. Mas também dizemos que os migrantes têm um papel fundamental no desenvolvimento do país, veja-se Portugal e o papel que os imigrantes têm na nossa segurança social, no equilíbrio das taxas demográficas - não podemos esquecer-nos de que Portugal tem uma das taxas de fecundidade mais baixas do mundo e que durante muitos anos isso era pouco evidente. E porquê? Porque temos uma taxa de imigração que nos permitia repor os equilíbrios demográficos. Não há nenhuma prova de que os imigrantes façam descer o nível salarial dos países, que roubem empregos ou aumentem as taxas de criminalidade. Os imigrantes fazem parte do tecido produtivo nacional, sobretudo de países como os EUA.
Em certo sentido, Donald Trump é a antítese do que identificamos com os EUA...
O que é espantoso se nós olharmos para quem ele é: exatamente o produto do sonho americano. É muito preocupante ver como determinados líderes mundiais encontram nestas narrativas populistas não só uma forma de se fazerem eleger como de se fazerem manter no poder. Isto é apelar a pulsões básicas que todos nós temos. Uma das nossas grandes preocupações é a segurança, económica, física, das nossas famílias e, portanto, isto apela muito a esse voltarmo-nos para dentro. Eu acho que a única resposta tem de ser com provas, com dados. Nós dizemos muitas vezes que contra factos não há argumentos, mas eu encontro cada vez mais que contra opiniões não há factos. É preocupante porque nós precisamos dos Estados Unidos no multilateralismo. Eles foram os que criaram a paz pelo direito, a paz pelas instituições internacionais. Cada vez que vejo um recuo ou um voltar para dentro fico assustada.
E que peso é que isso tem dentro da organização, dentro das Nações Unidas?
Há alguma preocupação, estes países são os que criaram esta forma de relacionamento mundial que temos. Depois, são os grandes pagadores. As Nações Unidas custam dinheiro. No nosso caso, precisamos de medicamentos, de contratar pessoas para executar projetos e, portanto, afeta-nos sempre muito essa ideia do financiamento. Os americanos criaram-nos um buraco de à volta de 80 milhões de euros.
Qual é a vossa preocupação próxima? É o Reino Unido?
Para já, não. Não deram quaisquer sinais. O Reino Unido para nós é um parceiro muito, muito importante. É o nosso maior doador, com tudo combinado: o dinheiro que nos dão para as atividades da organização e para os projetos que executamos.
Então quais são as vossas preocupações?
Em setembro/outubro vai haver uma cimeira de alto nível durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em que se vai trabalhar um novo conceito de cobertura universal de saúde. Preocupa-nos muito que, no texto final, a referência à saúde sexual e reprodutiva ainda esteja a ser questionada. Decidimos dedicar este ano à chamada de atenção para que andamos há 25 anos a prometer às mulheres, aos jovens e aos adolescentes um mundo melhor e temos falhado muito, muito, nas nossas promessas. E nós sabemos como é que se salvam estas vidas, como se empoderam os jovens, como se trabalham os direitos das pessoas idosas. É mais do que tempo de fazermos a mudança que fizemos em relação aos jovens. É preciso deixar de pensar que são um peso para a segurança social.
"Portugal é visto como bom parceiro, não é faccioso, nem tem uma visão do mundo a querer impor a qualquer custo. É visto como um país empenhado no multilateralismo, um construtor de pontes."
Com tudo o que sabe sobre o mundo, como consegue não estar em estado de stress constante?
Quando tenho de explicar às minhas filhas o que faço, tenho de lhes explicar sempre a dureza das coisas, mas com uma mensagem positiva, para que elas percebam que vale a pena o empenho. Somos constantemente confrontados com o facto de sabermos que se não fizermos nada daqui até 2030 há pelo menos 68 milhões de meninas e mulheres em risco de terem os seus genitais mutilados, ou, se não formos bem-sucedidos hoje, se vão casar 30 000 meninas com menos de 18 anos. O que me mantém são as pequenas vitórias. Hoje, de cada vez que se consegue que haja uma referência nos grandes textos internacionais sobre a importância dos programas que nós desenvolvemos.
Vê agora Portugal diferente de quando de cá saiu há três anos?
Não vejo muito, não vejo muito. Portugal é um país, no que diz respeito ao Fundo das Nações Unidas para a População, com um desempenho ótimo. Há um grande consenso nacional nas áreas em que trabalhamos. A saúde materna é sempre uma prioridade nacional desde há muitos anos.
© Global Imagens/Paulo Spanger
Temos números ótimos, apesar do que aconteceu recentemente...
Nós olhamos sempre para isto em grandes períodos, e espero que isso não afete de todo. Nós tínhamos uma taxa de mortalidade materna e infantil das mais altas da Europa. Foi com o trabalho da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do UNFPA, que estiveram cá em Portugal a organizar maternidades, a dar formação às parteiras - os primeiros contracetivos foram trazidos pelo UNFPA e pela OMS -, que as coisas mudaram. Portugal conseguiu, em duas décadas, ter uma das melhores taxas de saúde materna e de redução de mortalidade materna da Europa e do mundo.
Em parte porque foram fechadas bastantes maternidades que não funcionavam.
Porque era preciso, não era? Esta ideia de que só por haver serviços disponíveis tudo vai resultar não é verdadeira. É preciso treino. Eu tenho muito orgulho em fazer parte de uma organização que teve um papel tão importante em Portugal.
Como é que ser portuguesa ajuda - ou desajuda - no seu trabalho?
É engraçado, porque no início havia alguma surpresa. Não temos assim tantos portugueses nas organizações internacionais. Portugal é visto como um bom parceiro, não é um país que tenha uma imagem de ser faccioso, de ter uma visão do mundo e de a querer impor a qualquer custo. É visto como um país empenhado no multilateralismo, um construtor de pontes. É engraçada a imagem a priori que as pessoas têm de um português como sendo alguém com quem se pode ter uma conversa franca, que vai ouvir. Portugal também se tem afirmado como líder deste espaço da CPLP.
Como é a nossa relação com esses países?
No contexto multilateral temos uma relação muito atípica, é muito descontraída, muito fácil. O facto de falarmos a mesma língua ajuda, sobretudo nestes contextos de negociação internacional em que tudo se passa em inglês ou em francês. Cria uma espécie de pausa e uma plataforma de negociação diplomática. É uma relação menos tensa do que outras nacionalidades têm.
A saúde é, neste momento, uma das principais arenas políticas nacionais. Disse há pouco que vai ser discutido na Assembleia Geral o acesso universal à saúde... Estamos a caminhar num sentido contrário ao que devia ser o fio dos direitos humanos?
Penso que o que esta cimeira de alto nível está a tentar fazer é mostrar aos países que a saúde é uma decisão política. Nunca há recursos para tudo... É crucial para o desenvolvimento e todos devem ter acesso a um pacote mínimo independentemente dos rendimentos que tenham ou da origem. Isto em Portugal é fácil. É um bom princípio eu não pensar se posso ir ao hospital com a minha filha ou não se não tiver dinheiro.
Isso é um grande avanço civilizacional.
E é a grande consciência deste tempo. Sem saúde não vai haver desenvolvimento.
"Para já estou a aprender a trabalhar melhor no global e isso é importante. Acho que faz um bocadinho de falta aos nossos políticos um pouco de mundo, de sair e voltar."
Pôr em perigo um serviço nacional de saúde como existe em Portugal pode pôr em risco também essa noção?
Há países que estão a tentar fazer equilíbrios entre qual é o papel do setor privado na discussão e quais são os princípios…
E qual é, na verdade?
Vai depender. Há países onde, embora haja uma grande participação do setor privado, ninguém fica fora do serviço de saúde por não ter rendimentos. Penso que isso é que é o importante, seja qual for a fórmula de organização. O que se vê é que, nos países onde há sempre essa garantia, os ganhos de desenvolvimento, de direitos humanos e até políticos, em termos de estabilidade, são muito maiores. Neste momento, as provas estão aqui à disposição, há um argumentário político à disposição.
É verdade, mas em nenhum tema como este a questão dos interesses económicos e a dos interesses humanos está mais em confronto. Veja-se os Estados Unidos. Quando olhamos para o que não queremos ter na saúde basta olhar para lá…
Quando se fala disso, fala-se também em farmacêuticas... Uma das grandes questões que movimenta Genebra é exatamente o papel do genérico e a transparência na marcação do preço do medicamento. Em muitos países em desenvolvimento, os grandes investimentos na área da saúde estão a ser feitos agora, com a construção de grandes hospitais, centros de prestação de cuidados de saúde. Essa é uma discussão que tem de ser tida de forma aberta, é bom que os países, seja qual for o modelo que escolham, percebam como é que isso resulta adiante. Às vezes, soluções que parecem muito benévolas no momento e que permitem fazer um investimento grande, mais adiante podem revelar-se…
Está a falar por exemplo de hospitais privados em países em desenvolvimento?
Estamos a falar de parcerias público-privadas, de turismo de saúde, etc. São áreas nas quais a discussão tem de ser feita. A saúde é um dos temas centrais de tudo o que nós estamos a fazer agora. Nós somos uma agência de saúde com uma perspetiva de direitos humanos. Quando me perguntam se não fico frustrada por passar dias em discussões políticas, digo sempre que não, porque, para mim, isto é apenas o começo de um processo que me vai permitir depois estar no terreno a prestar serviço.
"O mundo está de facto mais desigual e nós notamos muito isso. É uma desigualdade muito complexa: de acesso ao poder, de acesso aos recursos, ao emprego."
O que é que vai ser a seguir na sua vida?
Não sei, para já mais alguns anos ali em Genebra. Estou num posto de rotação, portanto, mais cedo ou mais tarde terei de passar pelo terreno, o que me agrada.
Portugal talvez seja demasiado pequeno…
Não, um dia voltarei, como é evidente. Estive a preencher um inquérito e uma pergunta era qual a linha do meu currículo de que mais me orgulho. Confesso que é a de ter sido deputada. Lembro-me do primeiro dia em que entrei. Atrasei-me, o que é uma coisa inacreditável. Sentei-me ali e lembro-me de quando a sessão começou e o impacto que teve. Senti aquelas borboletas no estômago e a primeira coisa que pensei -isto vai parecer um bocadinho ridículo - foi que houve milhares de pessoas a votar para que eu estivesse ali. Era demasiado importante.
O que é que mais lhe desagrada na política nacional para não ter essa vontade de regressar em breve?
Para já, porque gosto do global, não é por demérito da política nacional. Eu gostei muito do trabalho que fiz, gostei muito de ter sido secretária de Estado por 25 dias... porque gosto da parte executiva. Para já, estou a aprender a trabalhar melhor no global, e isso é importante. Acho que faz um bocadinho de falta aos nossos políticos um pouco de mundo, de sair e voltar.
Fazer um benchmarking…
É mesmo isso, o perceber que não há uma solução única. Muitas destas questões que nos secam às vezes no Parlamento - a política como uma clubite - se esbatiam se as pessoas saíssem mais e se se confrontassem com outras realidades. Isso devolve-nos à questão de que os direitos humanos não são de esquerda nem de direita.
O mundo já não se divide assim, é entre os fechados e os abertos...
É cada vez mais isso. Eu fiz tantos amigos, e dos vários partidos políticos... Tínhamos de facto uma agenda comum em que era irrelevante se eu tinha uma t-shirt cor de laranja ou cor-de-rosa ou verde.
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