10.9.19

Recusa de fármacos inovadores no cancro. Ordem quer responsabilizar peritos

Alexandra Campos e Ana Maia, Público on-line

Os doentes a quem for recusado o acesso a medicamentos inovadores que provaram ser eficazes em fases precoces dos cancros poderão, em teoria, avançar com processos em tribunal contra os peritos ou contra a autoridade do medicamento.

O Conselho Nacional da Ordem dos Médicos (OM) defende que se deve “responsabilizar directamente, com casos concretos”, os peritos que “por decisões que sejam erradas” impeçam os médicos de “preservar a vida de doentes com cancro”. E apela aos médicos que registem as recusas de fármacos inovadores nos processos clínicos, validando esta proposta avançada pelo colégio da especialidade de Oncologia da OM - que em Julho enviou uma carta ao bastonário a denunciar o problema.

Foi depois de a missiva — que denunciava limitações no Serviço Nacional de Saúde (SNS) no acesso a medicamentos inovadores que podem ser usados em fases mais precoces de alguns cancros - ter sido divulgada pelo Expresso no sábado passado que o Conselho Nacional da OM marcou uma reunião extraordinária para analisar a situação. E os moldes em que se decidiu pronunciar, em comunicado esta terça-feira divulgado, são muito duros: negar o acesso de doentes oncológicos a medicamentos “com efeito comprovado” na redução de risco de voltarem a ter cancro ou de aumento da probabilidade de sobrevivência “constitui uma situação muito grave”, ainda mais quando a terapêutica “está livremente disponível para uso no sector privado e social”.

Em causa estarão vários medicamentos para o tratamento de cancros do pulmão, próstata, mama e melanoma, segundo o semanário. São fármacos que já estão a ser usados em casos de cancro metastizado (espalhado por outros órgãos) e que terão mostrado eficácia na redução do risco de ressurgimento da doença e no aumento de sobrevivência, quando usados em fases mais precoces.

No comunicado, o Conselho Nacional afirma ter decidido “recomendar fortemente a todos os médicos” que expliquem aos doentes as melhores opções de tratamentos e a existência de limitações que possam estar ser impostas. Mas vai mais longe e recomenda que os médicos activem “de imediato” o Gabinete de Apoio ao Acesso a Inovação Terapêutica e Tecnológica da OM para “reclamar caso a caso” o acesso aos tratamentos - que já foram validados cientificamente e pela Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla em inglês).

São várias as barreiras no acesso elencadas pela OM: além das comissões de farmácia e terapêutica hospitalares — “que em diversos casos retêm os pedidos de Autorização Excepcional demasiado tempo” —, os membros da Comissão de Avaliação de Tecnologias da Saúde (CATS) do Infarmed e “outros ‘peritos’ desta entidade reguladora “muitas vezes não [são] especialistas na área em questão”. Critica também a direcção da Autoridade Nacional do Medicamento, “que tem colocado obstáculos à implementação de Programas de Acesso Precoce [PAP] e tem demorado tempo excessivo no processo de avaliação custo-efectividade”.

“Os obstáculos colocados pelas barreiras referidas e as decisões negativas ou empatadas” têm “colocado vários doentes em risco de vida e ‘obrigado’ vários médicos oncologistas a delinearem planos de cuidados diversos dos esperados pelas leges artis como plano de actuação contingente”, sustentam os responsáveis da OM, que pedem ao Ministério da Saúde e ao Infarmed que resolvam “de forma definitiva” este tipo de situações.

O presidente do Infarmed, Rui Ivo, já respondeu, sublinhando que se tratam de casos de medicamentos que ainda estão em avaliação. Frisou ainda que as autorizações de utilização excepcional são decididas com base no parecer de peritos médicos, muitos deles oncologistas de hospitais do SNS, incluindo dos institutos de oncologia, com base em critérios técnicos e clínicos, ficando de parte as questões de financiamento.

"Perda de chance"
O registo no processo clínico dos doentes das recusas de disponibilização de medicamentos inovadores pode ser um trunfo importante, uma vez que habilita o doente ou os seus familiares a processar os responsáveis pelas recusas. Há uma figura que é a da “perda de chance”, lembra, a propósito, o director do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, José Dinis, que, apesar de ter uma posição “neutra”, se mostra preocupado com a situação. Existe nestes casos uma “clara perda de oportunidade”, corrobora o presidente do colégio da especialidade de oncologia da Ordem dos Médicos, Luís Costa. Em 2015, um tribunal português invocou pela primeira vez a “perda de chance” de sobrevivência de um doente para condenar um hospital privado a pagar uma indemnização por negligência médica.

Luís Costa frisa que o colégio de oncologia, que é composto por médicos dos três IPO e dos maiores hospitais do país, aprovou de forma unânime o teor da carta, em que se denunciam as limitações de acesso a medicamentos inovadores que permitem combater vários cancros, porque os peritos da CATS consideram que na fase inicial da doença não há “risco imediato de vida”, mas apenas “risco de vida”. Alguns destes tratamentos são autorizados apenas quando já há metástases.

“Não tomamos esta decisão de ânimo leve e não está aqui em causa apenas uma patologia, um produto ou uma companhia [farmacêutica]”, enfatizou Luís Costa ao PÚBLICO. “A oncologia sempre viveu da possibilidade de fazer tratamentos numa fase precoce para evitar metastizações”, disse, sublinhando que os benefícios dos medicamentos em causa não são marginais, ao contrário do que afirmam alguns especialistas. O risco relativo de reaparecimento nos casos de melanoma com uma mutação específica é reduzido em 40%, exemplificou.

“Este problema é recorrente e é preciso repensar a forma de funcionamento do Infarmed nestes casos”, defende também o presidente do Conselho Regional do Norte da OM, António Araújo. O Infarmed “está a obstaculizar imenso e a não deixar registar doentes nos PAP - em que tratamentos inovadores são disponibilizados de forma gratuita durante algum tempo pela indústria farmacêutica. Porquê? Porque estes permitem a criação de grupos de doentes que vão necessitar dos medicamentos depois do fim de programa e aí é o SNS que paga, explica.

Quanto às autorizações excepcionais, a avaliação muitas vezes não é feita por peritos da área da especialidade em causa, critica, sublinhando que o “mais iníquo é que a ADSE até agora financiava todos, desde que aprovados pela EMA”. Nos hospitais privados, estes também são disponibilizados, mas por vezes o plafond dos seguros é esgotado.

Para se ter uma ideia dos valores em questão, a quimioterapia do cancro de pulmão custa num dia standard 500 a 600 euros. Já os tratamentos de primeira geração dirigidos a alvos custam entre mil a 1500 euros por mês, enquanto os de terceira geração ascendem a entre cinco mil a 5500 euros por mês. Mas há protocolos com imunoterapia que podem chegar aos 13 mil euros por mês.

A OM recorda que no último relatório de Primavera do Observatório dos Sistemas de Saúde os especialistas destacam que o tempo para acesso à inovação terapêutica em geral (não apenas a medicamentos oncológicos) em Portugal é cinco vezes mais longo do que o melhor resultado europeu no período de 2015 a 2017. Enquanto a Alemanha teve uma demora média de 119 dias para a introdução no mercado, Portugal demorou 634 dias.