Sérgio Aníbal, in Público on-line
Miguel Coelho, economista e especialista em Segurança Social, defende que é preciso caminhar o mais rapidamente possível para um consenso, primeiro técnico e depois político, relativamente ao sistema de Segurança Social português.
O economista Miguel Coelho lançou o seu segundo livro sobre o tema da protecção social em Portugal, intitulado Segurança Social - Passado, Presente e Futuro, onde alerta que a sustentabilidade do sistema está posta em causa. Isto tem, afirma em entrevista ao PÚBLICO, implicações graves imediatas, já que “não se consegue convencer as gerações actuais a contribuírem quando a expectativa que elas têm é que no futuro não vão ter nada em troca”. Defende por isso um novo modelo, semelhante ao adoptado na Suécia, onde o valor da pensão é definido pelas contribuições feitas e capitalizadas virtualmente ao longo do tempo. Assim, diz, não só a sustentabilidade é maior, como as eventuais reduções dos rendimentos dos futuros pensionistas são apresentadas com maior transparência. Em relação à resposta defendida pelo governo de diversificação das fontes de financiamento, defende que “é uma forma de curto prazo de tentar resolver o problema” e que uma das coisas que faz é “desvirtuar o sistema”.
Porque decidiu escrever um novo livro sobre Segurança Social agora? É porque vê um ambiente favorável à realização da reforma que defende no sistema?
O primeiro livro que tinha escrito surgiu no contexto de intervenção da troika, era de certa forma um alerta para a situação do sistema. Hoje em dia vivemos uma aparente acalmia nas preocupações em relação ao sistema e, nesse sentido, pode haver aqui uma oportunidade.
As reformas, em particular na Segurança Social, não apareceram noutros países, como por exemplo a Suécia, em tempos de acalmia, foi mais nos momentos em que o sentimento de emergência se tornou demasiado forte...
Mas esse sentimento de emergência em Portugal conduziu a alguns cortes paramétricos e não a uma verdadeira reforma. Na Suécia, a reforma foi consensualizada entre muitos intervenientes, entre os partidos e com uma base técnica muito sólida e estudos muito profundos. Já aqui em Portugal parece que nunca há condições para realizar reformas. Desde o livro branco que não se faz uma análise global do sistema com profundidade, para que a partir dessa análise se implementem um conjunto de reformas.
Em Portugal parece que nunca há condições para realizar reformas. Desde o livro branco que não se faz uma análise global do sistema com profundidade
Em termos técnicos, entre os economistas que estudam estas matérias em Portugal, há consensos?
O que tem havido muitas vezes é que estamos a olhar simplesmente para o sistema de pensões e em particular de pensões de velhice. É esse o foco da generalidade das preocupações. Há muita discussão sobre o sistema de pensões de velhice, mas há pouca discussão sobre o sistema de segurança social como um todo, enquanto instrumento de protecção social. O sistema de Segurança Social cobre muitos riscos: de desemprego, de invalidez, de morte, de entrarmos numa situação de carência ou pobreza. É uma cobertura muito mais vasta do que aquela que nós discutimos diariamente, que é a das pensões de velhice. Estou totalmente convencido que todos concordamos que o Estado tem que ter um papel relevante na coordenação e no financiamento do sistema. Isto parece-me inequívoco. Relativamente ao sistema de pensões, eu diria que há aí mais divergências.
E é possível resolvê-las?
Em primeiro lugar, devemos olhar para as questões conceptuais do sistema. Um sistema de pensões de velhice tem três eixos para poderem ser configurados. Primeiro, o sistema pode ser de repartição ou de capitalização. Segundo, o sistema pode ser de contribuição definida ou de benefício definido. E terceiro, o sistema pode ter um benefício calculado com uma regra relativamente arbitrária ou com base em fundamentos actuariais. São estas três dimensões que nos permitem configurar um sistema. O sistema português é de repartição, um sistema em que o benefício está definido e em que esse benefício não foi calculado de acordo com regras actuariais. A única componente actuarial que ele incorpora é o denominado factor de sustentabilidade. Temos que perceber que este modelo que temos surgiu num contexto histórico muito específico. A passagem de um sistema de capitalização como foi iniciado nos anos 30 para esta ideia de repartição ocorre nos anos 60. E porquê? Por causa do “baby boom”, pelo surgimento de uma pirâmide etária muito favorável a esta ideia de repartição.
A pirâmide agora está a mudar...
Esse é que é o problema. Neste momento temos uma configuração que não favorece nada a sustentabilidade intertemporal do sistema. E por isso, sou defensor, no que respeita a esta componente das pensões de velhice, de caminharmos para uma solução mais próxima daquela que é a solução sueca. É um modelo que continua a ser de repartição, mas em que as contribuições capitalizam de uma forma virtual e, depois, na data em que a pessoa quer entrar na reforma, é convertida com uma renda vitalícia de acordo com pressupostos actuariais.
É preciso que a pensão seja adequada ao esforço contributivo realizado
Não chega mudar a fórmula de cálculo da pensão?
A fórmula de cálculo da pensão tem que estar muito mais alinhada com as contribuições que a pessoa realizou. Actualmente, uma pessoa só tem benefício se contribuiu e esta ligação parece-me inquestionável, mas temos de ir mais além. É preciso que a pensão seja adequada ao esforço contributivo realizado. E, portanto, não podemos ter uma fórmula relativamente arbitrária de cálculo. A actual fórmula não tem em conta a capitalização das contribuições efectuadas e até o crescimento económico que pode ser incorporado nesse processo de capitalização. Isto não significa que o Estado abandone as pessoas que, depois de calculada essa pensão, se vêem numa situação em que a pensão que vão obter não é adequada e não serve para responder às suas necessidades. Mas se digo que o Estado deve ter um papel importante, não estou a dizer que deve ser exclusivo.
Temos de poupar, é isso?
Cabe a cada um de nós um esforço no sentido de assegurarmos ao longo da nossa vida activa uma poupança suficiente para depois na velhice reduzirmos os riscos de entrarmos numa situação mais complicada. E o sistema sueco permite que, em cada momento, as pessoas saibam quanto é que poderão vir a receber na altura da reforma e, assim, tenham também uma ideia daquilo que terá de ser o meu esforço de poupança adicional. Isso é essencial para, no futuro, limitarmos a necessidade de transferências do Estado. Agora é preciso que tenhamos um sistema que nos diz exactamente o que nos espera e não o que temos agora em que aparentemente nos diz o que nos espera, mas se for preciso daqui 30 ou 40 anos corta abruptamente o valor das pensões.
As pessoas deviam saber que, com o actual sistema, em 2060 a pensão média será cerca de 30% a 40% do salário médio
As pessoas deviam saber que, com o actual sistema, em 2060 a pensão média será cerca de 30% a 40% do salário médio. As pessoas vão ter uma quebra abrupta do valor dos seus rendimentos mas não sabem disso. E deveriam saber.
O actual Governo defende que aquilo que é preciso ser feito é reforçar as fontes de financiamento do sistema, por exemplo, com as empresas a contribuírem com uma percentagem do seu valor acrescentado líquido. Isso não chegaria?
A diversificação das fontes de financiamento é uma forma de curto prazo de tentar resolver o problema. Eu não ponho em causa que possamos pensar noutras formas de financiamento, mas em certa medida vamos estar a desvirtuar o sistema. Se queremos manter esta lógica de relação entre contribuições do trabalho e prestações sociais, como temos no actual sistema, então temos de o reconfigurar. Eu até admito que, dentro de 30 ou 40 anos, podemos ter uma transformação de tal ordem no mercado de trabalho que deixe de permitir alimentar um sistema de protecção social como hoje o conhecemos, levando-nos a conceitos como o de rendimento básico incondicional. Mas aí estamos a falar de outra coisa, estamos a falar do Orçamento do Estado a assegurar um sistema de protecção social.
A reconfiguração de que fala não significa também uma redução das pensões?
Não gosto que se coloque a questão entre mais pensões ou menos pensões. No final do dia, as pensões resultam das contribuições e o que não chega resulta de transferências do OE. O que defendo é uma reconfiguração que permita tornar mais clara a relação entre contribuições e pensões. E as pessoas receberão uma pensão que é efectivamente função da sua contribuição.
Uma pensão mais baixa.
Em alguns casos será inferior àquela que teríamos se as regras actuais se aplicassem. É verdade que muitas pensões poderiam descer de valor, mas isso permitiria também libertar recursos para responder de forma mais eficaz às situações que são responsabilidade do Estado e que implicam redistribuição. Globalmente, eu não defendo uma diminuição da despesa.
Não se consegue convencer as gerações actuais a contribuírem quando a expectativa que elas têm é que no futuro não vão ter nada em troca
E no curto prazo, o que aconteceria? É aqui que os consensos muitas vezes desaparecem... O que se faria aos trabalhadores mais velhos?
Temos que ser muito pragmáticos relativamente a essa matéria e só no limite é que devemos quebrar compromissos que foram assumidos. E o Estado tem aí um papel relevante e deve dar o exemplo. Por isso, em relação às pensões que estão em pagamento, devemos preservar o mais possível. As pessoas continuam a receber o que estavam a receber. Depois, por exemplo, entre os 50 e os 65 anos poder-se-ia aplicar um mecanismo de transição muito progressivo. E as pessoas abaixo disso, entrariam no novo regime. Mas esta questão sobre quem transita e quem não transita é uma questão que pode ser discutida politicamente. Nós temos é de ter um calendário para podermos fazer a transição. Por exemplo, pode-se chegar a um consenso que apenas as pessoas que entram a partir de agora no mercado de trabalho é que vão ficar sujeitas ao novo regime. Admito essa possibilidade, mas temos de ter consciência que quanto mais tempo demorarmos a fazer esta transição, maiores vão ser os custos. E há uma coisa que não devemos esquecer: o sistema tem de ser sustentável porque se não houver essa sustentabilidade, a tal solidariedade intergeracional fica posta em causa. Não se consegue convencer as gerações actuais a contribuírem quando a expectativa que elas têm é que no futuro não vão ter nada em troca.
Diz que falta equidade ao sistema. Porquê?
Por exemplo, o complemento social, que serve para aqueles que, tendo respeitado um período contributivo legal não conseguem atingir a pensão mínima, consigam ver essa diferença coberta. Há milhões de portugueses a receber a pensão mínima e esse complemento social tem uma natureza de solidariedade e supostamente deve servir para as situações de carência ou de pobreza. Muitas pessoas que recebem a pensão mínima não são pobres. E portanto, parece-me óbvia a necessidade de sujeitar o complemento social à condição de recurso. As pessoas não deixavam de receber a pensão que tinha sido calculada de acordo com as regras, mas este complemento só seria atribuído em caso efectivo de necessidade do beneficiário.
Muitas pessoas que recebem a pensão mínima não são pobres
São muitos casos?
Há pessoas com rendimentos prediais, até pensões de outros sistemas, não estão em situação de carência e que recebem este complemento social. Não digo para se cortar o que já foi atribuído, mas a partir de agora poderíamos aplicar a condição de recurso. E, no novo modelo, a condição de recurso desempenha realmente um papel fundamental, porque se o papel do Estado é apoiar aqueles que mais necessitam, então temos que saber quem é que mais necessita e não podemos estar utilizar recursos de todos para situações que verdadeiramente não são necessárias.
Esta será mesmo a melhor altura para pensar em reformas na segurança social? Em França, estamos a assistir a manifestações nas ruas por causa das ideias do presidente Macron para o sistema de Segurança Social.
Os populismos, de esquerda ou de direita, são perversos e nocivos a qualquer ideia de compromisso e esforço conjunto no sentido do bem-estar global. O quadro actual é um quadro em que rapidamente se entra no pontual e episódico para pôr em causa questões mais globais e de interesse mais colectivo. Ainda assim, em Portugal, acho que há espaço para os partidos, não diria do eixo de governação porque isso já não existe, mas o PS, PSD e CDS e se calhar até algumas alas mais à esquerda chegarem a acordo em relação a alguns aspectos consensuais. Agora, há um aspecto importante que é a questão técnica. As discussões técnicas têm sido prejudicadas por questões políticas. Há uma espécie de facciosismo ideológico em relação a algumas matérias que têm condicionado a discussão técnica.
Mas isso dificilmente irá desaparecer...
Não sei. Por exemplo, vejo, discutindo com pessoas mais à esquerda, que não discordam da existência de componentes complementares. Aliás, muitas até defendem soluções de protecção no âmbito das mutualidades, das cooperativas, como complemento ao sistema de segurança social. Portanto, eu acho que há possibilidade de fazer esta discussão. Mas em primeiro lugar a discussão deveria ser técnica, para tentarmos chegar a um consenso técnico e depois é que deveríamos entrar na discussão política. Agora, se politicamente qualquer ideia que se coloque à discussão é colocada de um lado como a única solução e pelo outro lado da barricada como uma solução inviável, não há possibilidade de chegarmos a uma solução séria. Um problema grande é a negação da realidade. Essa negação é um entrave brutal à mudança. E o facto de dizermos que o modelo não tem sustentabilidade e que deve ser melhorado, não tem que ser uma crítica a quem produziu trabalho e tomou decisões no passado.
Um problema grande é a negação da realidade. Essa negação é um entrave brutal à mudança
Em termos práticos como é que acha que poderia decorrer esta negociação?
O que eu sugeria aos políticos é que promovessem uma espécie de novo livro branco da segurança social. Com pessoas de diferentes áreas, com diferentes pensamentos.
E conseguiriam entender-se?
Mais do que se entenderem, o que é preciso é mostrarem o que está em causa de uma forma clara e as potenciais alternativas. Se conseguíssemos fazer isto, então tínhamos uma base muito sólida para uma discussão política muito séria e que, acredito, teria resultados. Qualquer solução voluntarista que não assente num estudo técnico muito profundo e sério, é uma solução com poucas hipóteses de sucesso.