Clara Viana, in Público on-line
“Como pode uma lei estar em vigor se os princípios estruturantes da mesma ainda não estão compreendidos e assimilados por aqueles que a vão aplicar no terreno?”, questiona a FNE, a propósito dos resultados do inquérito que promoveu sobre o novo regime de educção inclusiva, que substituiu o da educação especial.
Um mar de dúvidas. Esta é uma das principais evidências que emerge dos resultados de um inquérito sobre a aplicação do novo regime de educação inclusiva, que foram divulgados nesta quinta-feira pela Federação Nacional de Educação (FNE), a entidade que promoveu esta consulta. Foram validados 615 inquéritos a professores e 70 a direcções de escolas.
São incertezas avassaladoras as que ressaltam deste inquérito, onde cerca de 60% dos professores assumem, por exemplo, que “não se sentem preparados para esclarecer os encarregados de educação sobre as dúvidas acerca da aplicação do diploma”, que entrou em vigor no ano lectivo passado, substituindo o regime de educação especial. Não poderia ser de outro modo, uma vez que 52% dos professores afirmam que eles próprios “não compreendem as definições das novas nomenclaturas do diploma”, que acabou com o conceito de necessidades educativas especiais e introduziu conceitos como “acomodações curriculares” entre vários outros.
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Também em relação à chamada abordagem multinível, “outra novidade introduzida por este diploma que assume elevada importância, por ser um dos seus princípios orientadores”, cerca de 58% dos inquiridos “afirmam não compreender ou ter dificuldades na compreensão deste princípio”. Esta é uma questão “que levanta sérias preocupações, pois como pode uma lei estar em vigor se os princípios estruturantes da mesma ainda não estão compreendidos e assimilados por aqueles que a vão aplicar no terreno?”, questiona a FNE.
Para esta estrutura sindical, a dimensão das dúvidas agora revelada vem “confirmar a necessidade de se ter salvaguardado um período de transição [para a aplicação do diploma], assim como a formação do pessoal docente e não docente”. A quase totalidade dos inquiridos (91%) aponta no mesmo sentido, testemunhando “que o tempo necessário para que as escolas aplicassem o novo diploma não foi suficiente”. O novo regime de educação inclusiva foi aprovado em Julho de 2018 para ser aplicado logo a partir de Setembro desse ano, o que gerou críticas e alertas, tanto por parte dos sindicatos dos professores, como das estruturas representativas dos directores de escolas e das associações de pais.
Esta pressa na aplicação do novo diploma levou a que muitos alunos tivessem ficado sem os apoios que necessitavam, conforme denunciado na altura por pais e professores, já que para concretizar as mudanças previstas as escolas foram obrigadas a reavaliar os alunos para decidirem que medidas de apoios serão aplicadas.
Discrepâncias na selecção de alunos?
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Uma das grandes alterações introduzidas aconteceu por via da revogação da também muito criticada Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, com base na qual eram seleccionados os alunos que necessitavam de apoios mais direccionados. Mas o que o inquérito da FNE vem mostrar é que, na ausência deste normativo, 77% dos docentes sentem agora necessidade “de um instrumento que permita utilizar uma linguagem universal na identificação” dos factores que estão na base das dificuldades de aprendizagem dos alunos. “E, em consequência, 95% consideram que possa existir discrepância entre escolas no que concerne aos critérios de elegibilidade de um aluno para a aplicação das medidas selectivas e adicionais”, dirigidas aos alunos com mais dificuldades.
Mas este não é o único sinal de alerta que sobressai no que respeita ao modo como o diploma está a ser aplicado. Cerca de 71% dos agrupamentos questionados afirmam não possuir os recursos humanos necessários à operacionalização do diploma e mais ainda (90%) indicam que, quando solicitados recursos ao Ministério da Educação para aplicação das medidas previstas no diploma, “não lhes são dadas respostas, ou as mesmas não são satisfatórias”.
Por outro lado, 82% consideram que as provas e os exames nacionais “não salvaguardam o previsto nas adaptações curriculares não significativas”, outro dos novos conceitos introduzidos e que é o segundo dos três patamares das intervenções previstas em função das necessidades dos alunos. O primeiro abrange todos os estudantes.
As alterações “não significativas” passam, entre outras medidas, por adaptar conteúdos mudando por exemplo a ordem da sua abordagem. Para a FNE, a discrepância agora assinalada vem mostrar que existe “uma clara necessidade de articular os diplomas que versam sobre matérias que se intersectam, no que respeita ao seu público-alvo, de forma que os objetivos a que se propõem possam ser cumpridos”.
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Refira-se por fim que a grande maioria (80%) dos inquiridos defende ser necessária uma referência específica aos alunos com necessidades educativas especiais, um conceito abolido no diploma, como já referido. Uma opção que o Governo defendeu por assim se evitar os “sistemas de categorização” dos estudantes e que esteve na base da decisão de alargar o novo regime a todos os alunos.
Um inquérito recente promovido pela Federação Nacional de Professores dava conta de que 63% das direcções inquiridas consideravam que a resposta às necessidades dos alunos “melhorou” com o novo diploma, enquanto 46,3% dos professores afirmavam o contrário.