Natália Faria (texto) e Francisco Romão Pereira (fotos), in Público on-line
Em oito meses de funcionamento, a carrinha de consumo assistido que estaciona todos os dias no Beato e em Arroios, em Lisboa, registou 270 consumos e tem 100 utentes registados. As duas salas fixas que vão surgir em 2020 terão duches e bancos de roupa para os consumidores de droga.
Desde que a primeira unidade móvel de consumo assistido começou a funcionar em Lisboa – no Beato, em Abril, numa acção que, em Outubro, se alargou a Arroios – foram registados 270 consumos injectados de substâncias ilícitas. Parece pouco, mas não é: “É um projecto-piloto, estamos ainda na fase de conhecer as pessoas, de as chamar. As pessoas têm de se habituar a vir até nós e o facto de virem a primeira vez e depois continuarem a vir é muito positivo”, sustenta Diana Gautier, assistente social da organização não-governamental Médicos do Mundo, que é, em parceria com o Grupo de Activistas em Tratamento (GAT), responsável pela implementação do projecto.
Dentro da carrinha branca estacionada no largo da Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, na Avenida Almirante Reis, deslocam-se ainda a psicóloga Adriana Curado, o educador de pares Vítor Correia e a enfermeira Patrícia Nunes. Nesta fase, é à enfermeira que a maior parte dos utentes apela. “Vêm pedir a realização de pensos, em úlceras relacionadas com o consumo, ou então em abcessos, e rastreios de VIH, hepatites B e C e sífilis. Já as outras pessoas da comunidade pedem sobretudo para avaliar a tensão arterial, a glicemia e o colesterol”, adianta Patrícia Nunes, numa pausa entre atendimentos. Cá fora, já despachado, o sem-abrigo Geórgio Simões, com uma perna partida e engessada, comenta que já se habituou a esperar pela carrinha para se pôr nas mãos desta enfermeira que lhe controla a hipertensão. “É espectacular. Tratou-me muito bem desde o primeiro dia e convenceu-me a ir ao hospital. Todos me admiravam como é que me aguentava de pé, que eu devia era estar a ter um AVC. E, por causa dela, estou com as tensões ‘drasticamente’ boas.”
Compete também à enfermeira supervisionar o consumo de substâncias ilícitas. “Isso implica estar presente, garantir que a pessoa lava e desinfecta as mãos, mas nem sempre conseguimos que façam tudo à primeira porque isso implica mudar hábitos e comportamentos antigos. É uma relação que se vai estabelecendo”, retoma Patrícia Nunes. Em consumidores de longos anos, a sua tarefa passa muitas vezes por ajudá-los a encontrar a veia para injectar. “Ao fim de muitos anos pode tornar-se difícil.”
Não é o caso de Vanda Duarte. Com 38 anos, carrapito na cabeça, dentes destruídos e unhas muito sujas, ainda com resquícios de verniz vermelho, passou pela unidade de consumo assistido para recolher um cachimbo. “É bom para proteger dos micróbios e das doenças raras”, justifica, para explicar que, apesar de consumir crack [cristais de cocaína] a um ritmo diário, não se vê como “viciada nem drogada”. “Um drogado é alguém que só vive para aquilo. Eu tenho outras preocupações: fumo o meu crack mas primeiro separo o dinheiro e vejo o que é que consigo comprar. Por dia, sou capaz de gastar 20 euros, nem tanto.”
Sem casa (logo, sem morada), perdeu também direito ao médico de família e o dinheiro de que precisa ganha-o, segundo diz, a lavar escadas e a reunir ferro-velho para vender. “Há coisas que me dão e que eu também vendo. Acabei de vender uma flor-de-Natal [uma planta chamada poinsétia] – por acaso, roubei-a – a uma vizinha, porque sabia que ela ia gostar muito dessa flor. Amanhã, se for preciso, ela paga-me o pequeno-almoço e dá-me dez euros.” Quanto ao cachimbo, leva-o no saco de plástico preto porque se recusa, como diz que faz o companheiro, a fumar “numa coisa que parece uma fossa de esgoto”. “Não, lavo sempre o meu e desinfecto-o”, garante.
ARS Norte disponibiliza recursos humanos para consumo assistido do Porto
“Somos mais um serviço do bairro”
Na partilha de cachimbos está uma das principais formas de contaminação da hepatite C, como explica Diana Gautier. “O objectivo de distribuir cachimbos é que cada um use o seu, para reduzir o risco de infecção. O consumo de crack não pode ser feito na carrinha, porque isso implicaria ter um extractor de fumos”, acrescenta a assistente social.
As drogas injectáveis, sim, podem ser consumidas numa das duas mesas pequenas instaladas na carrinha para o efeito. À frente de cada uma, vê-se um frasco de desinfectante e, sobre o tampo, um recipiente para material contaminado como o que nos habituámos a ver nos hospitais. Dentro de caixas transparentes, estão filtros para quem injecta benzodiazepinas, saquetas com ácido cítrico para substituir os limões, e prata para quem usa heroína, além de dezenas de seringas de diferentes formatos. “Nalguns casos, as pessoas já têm de injectar a heroína na virilha e aí precisam de um seringa mais comprida”, explica Gautier, sublinhando que a droga vai com o utente e que este é obrigado a declarar “o que vai consumir e o que consumiu nas últimas 24 horas”.
Longe da vista está a naloxona – para reverter eventuais sobredoses de opiáceos – e, afixado numa das paredes, o protocolo de actuação em caso de emergência. Para consumir, só podem entrar utentes com mais de 18 anos e a inscrição é obrigatória, como definido no decreto que, em 2001, regulamentou as políticas de redução de danos associados ao consumo de substâncias ilícitas. Demorou, portanto, mais de 20 anos, até fazer chegar ao terreno esta unidade de consumo assistido. No Porto, o projecto continua a marcar passo. Em Lisboa já não. Mas quer no Beato, onde existe um dos maiores focos de consumo a céu aberto, num descampado conhecido como Casal do Pinto, quer em Arroios, foi preciso vencer primeiro a resistência dos habitantes.
Francisco Romão Pereira
“Sobretudo no Beato, fomo-nos introduzindo no bairro, apresentados pelas pessoas que trabalham e vivem ali, para não sermos vistos como algo externo, uma ameaça ao equilíbrio do bairro. Foi tudo muito negociado, debatido, esclarecido, até para as pessoas perceberem que este serviço podia ser uma possível solução para os problemas com que se debatiam resultantes do consumo a céu aberto”, recorda Adriana Curado, a psicóloga do GAT. Sete meses depois, já acontece os técnicos da carrinha serem chamados a actuar por residentes e comerciantes. “Se estão seringas na rua, alguém nos vem dizer e nós vamos apanhá-las”, congratula-se Diana Gautier. “Somos mais um serviço do bairro”, resume Adriana.
Salas de consumo, chuveiros e banco de roupa
Foi um trabalho invisível mas indispensável para dar corpo às duas salas de consumo assistido fixas que vão abrir em Lisboa, já durante o primeiro semestre de 2020, e, estas sim, mais condizentes com os objectivos subjacentes àquilo a que o vereador da Educação e Direitos Sociais, Manuel Grilo, qualifica como “um equipamento de saúde pública valioso para mudar a vida não só dos consumidores, mas também dos habitantes daqueles territórios”.
A primeira destas salas, a do Vale de Alcântara, vai funcionar na Quinta do Loureiro, na cave do edifício onde funciona um centro de saúde gerido pela Santa Casa da Misericórdia. “É um território muito martirizado pelo tráfico de droga e também – e esta é a questão fundamental – por muito consumo a céu aberto”, lembra o vereador. O objectivo é, claro está, desviar o consumo para dentro de portas, onde os utilizadores o podem fazer em condições de higiene e segurança, reduzindo o risco de contágio. Lá trabalharão médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. “É um equipamento misto. Terá também uma componente psicossocial, de apoio aos consumidores que desejam aceder a outros programas e, no caso das pessoas mais debilitadas, haverá balneários para quem queira tomar banho e um banco de roupas para se poderem mudar”, acrescenta Grilo.
É um figurino muito próximo do que irá funcionar no Alto do Lumiar, mas este num edifício a construir para o efeito “mesmo junto ao local de consumo a céu aberto”, segundo Manuel Grilo, para quem é crucial que estas salas sejam “equacionadas como equipamentos de saúde pública e não como algo de negativo”. “Não queremos acrescentar estigma ao estigma que já existe, mas que seja prosseguida uma política de valorização dos territórios, através de equipamentos que vão ao encontro dos problemas que já existem.”
Aos olhos de Vítor Correia, que, depois de 44 anos de consumo, trabalha agora como “educador de pares” (alguém que faz a ponte entre o consumidor e os técnicos) na unidade móvel de consumo vigiado que circula todos os dias entre o Beato e a Almirante Reis, estacionando durante três horas em cada um dos locais, estas novidades traduzem uma mudança de paradigma. “Estou parvo com isto tudo. No meu tempo, tínhamos que nos esconder. Éramos vistos como o Bin Laden ou o Daesh. Agora, os consumidores têm ajuda. E poder dar aos outros aquilo que eu – que injectiva até ao pescoço – nunca tive é a parte do trabalho de que gosto mais.”
Desde que, em 2016, foi criada uma sala de consumo assistido em Paris, junto à Gare du Nord, passam diariamente pelo serviço 360 pessoas, em média. “O balanço é muito positivo, porque temos menos 80% de seringas abandonadas na rua e muito menos pessoas a injectar-se na Gare du Nord, nos jardins e nos parques”, relatou ao PÚBLICO Stéphane Bribard, conselheiro da mairie do 10.º arrondissement de Paris para os assuntos relacionados com a segurança, a prevenção e a vida nocturna. Naquela sala, os utentes podem dormir, tomar café, comer, ser atendidos por médicos, psiquiatras ou por enfermeiros, além de poderem fazer o consumo injectado.
“Não se pode fumar crack porque isso implica mudar a regulamentação da lei”, explica Stéphane, adiantando que o objectivo é criar um espaço para inalação de crack na zona de La Chapelle, na fronteira com o 18.º arrondissement, muito marcada pela “espiral infernal”, como caracteriza o próprio, da “emigração e pobreza e onde o consumo de crack se tornou num enorme problema”. “Acreditamos que se tiverem um sítio onde dormir e comer, as pessoas não sentirão tanta necessidade de consumir para esquecer, como fazem actualmente.”
Num sítio como no outro, “a sala funciona como um programa de cidadania que procura recuperar pessoas que estão fora do sistema”. Não tem sido fácil: “As autoridades não estão muito receptivas e, numa altura de gentrificação, os novos habitantes destas zonas tendem a associar os problemas antigos à existência de uma sala de consumo quando o que esta fez foi atenuá-los.”
França foi dos últimos países a abrir salas de consumo assistido, engrossando uma rede que se estende aos Países Baixos (31 salas), Alemanha (24), Suíça (oito) Dinamarca (cinco), Espanha (13), Noruega (duas) e Luxemburgo (uma), segundo o último balanço do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT). Desde que a primeira sala foi aberta, em Berna, na Suíça, em 1986, as centenas de estudos que se fizeram sobre o seu impacto na comunidade convergem na ideia de que as salas conseguiram diminuir o risco de transmissão do VIH e das mortes por overdose, bem como fomentar “uma maior adesão aos tratamentos de desintoxicação”, ainda segundo o OEDT, cujo relatório acrescenta que, ao contrário do que muitos temem, estes serviços “não fazem aumentar a criminalidade relacionada com a droga a nível local”.