Mariana Correia Pinto (texto) e Paulo Pimenta (fotografia), in Público on-line
Tem uma deficiência física, mas nenhum apoio por isso. É sem-abrigo há dez anos, dorme numa casa abandonada, come numa adega onde não entra a indiferença. Paulo M. é uma das pelo menos 560 pessoas nesta condição no Porto. Presidente da República visita a cidade esta quinta-feira.
“O que estão a ver é a minha realidade. Um gajo de 47 anos que não cabe no sistema.” Paulo M. pronuncia a frase, como epílogo daquilo que procurava explicar há horas, e, de repente, já não precisa de dizer mais. Na escuridão da casa, chamando casa ao que não o é, a luz tímida de uma lanterna deixa aparecer os seus olhos quase em estado líquido. Por breves minutos, a revolta desarma e a tristeza transparece. Entre paredes de pedra e piso de madeira apodrecida, faz frio. Por dentro e por fora. No quarto, chamando quarto ao que não o é, há cartão no chão, um colchão finíssimo, édredon e saco-cama. Meia dúzia de peças de roupa, cigarros, garrafas vazias, toalhetes. Nada mais. Paulo M. dorme ali. Num edifício devoluto para escapar ao céu como tecto. Carimbado por um pretérito de dor, sobrevivendo, dia após dia, sem conhecer a palavra “sonhos”.
A rua pode acontecer ao virar de uma esquina da vida. Paulo M. aprendeu-o há dez anos, quando saiu de casa, sem malas nem despedidas, apenas um casaco de pele de carneiro na mão. Junto à estação de Campanhã, no Porto, pôs-se a arrumar carros para juntar moedas enquanto a noite e os termómetros caíam. Era 30 de Novembro de 2010. Para Paulo M. foi ontem. “O mundo caiu-me em cima. Naquele momento...” A frase fica no ar. As palavras não sabem dizer a revolução daquele instante, dos dias por vir, do caminho feito. No Porto, estão identificadas 560 pessoas em situação de sem-abrigo. Os números são de Abril deste ano, recolhidos pelo município por observação directa em rondas nas ruas e contacto com instituições. Desses 560, 140 vivem sem tecto (e a autarquia diz incluir aqui quem pernoita em casas devolutas), os restantes em quartos, centros de acolhimento temporário e de alojamentos específicos para pessoas sem casa.
Paulo M. pernoita numa casa abandonada, é sem-abrigo há dez anos
Começou o Gadhimai, o festival nepalês onde são mortos milhares de animais
Na adega A Viela, Travessa de Miraflor, Paulo M. aceita sentar-se à mesa, apesar da inquietação e impaciência. O Presidente da República e a ministra Ana Mendes Godinho visitam o Porto esta quinta-feira para se encontrarem com Rui Moreira e instituições da cidade e debater o problema dos sem-abrigo. Marcelo Rebelo de Sousa tem colocado o tema na agenda mediática e já assumiu a meta de acabar com os sem-abrigo até 2023, mas Paulo M., 47 anos, diz-se cansado de promessas. “Estou farto. Durante o ano os sem-abrigo não têm importância. Depois vem o frio e o Natal, fazem-se grandes banquetes de bacalhau. E no dia seguinte, quem quer saber de nós?”.
Rosa Meireles ouve a conversa a espaços, ora a servir às mesas ora sentada em frente a Paulo. Para ele, a resposta desenhou-se ali. Para lá da estratégia municipal, do programa nacional ainda por activar, das instituições e da “caridadezinha” que o desassossega. “A dona Rosa salvou-me”, diz baixinho. Há dez anos, quando se viu nas ruas, elegeu a adega junto à estação ferroviária para petiscar de vez em quando. E já não saiu mais. Todas as manhãs, bem cedo, põe-se a caminho da Travessa de Miraflor. Ajuda a pôr e levantar as mesas, vai buscar pão quando falta, faz um recado quando é preciso. Rosa Meireles dá-lhe almoço e jantar, todos os dias, excepto domingos. Oferece-lhe cobertores. Em dias gelados ou de chuva, quando Paulo passava as noites ao relento, chegou a pagar-lhe quartos em pensões.
Rosa Meireles, da Adega A Viela, em Campanhã, é o apoio de muitos sem-abrigo naquela zona da cidade
Há pouco mais de uma semana, o executivo portuense aprovou, por unanimidade, uma recomendação sobre os sem-abrigo. Instando o Governo a operacionalizar a sua estratégia e a pôr em prática o programa nacional delineado, sugeriu que a verba seja incluída já no Orçamento do Estado, evitando falhas agora visíveis. Os 131 milhões de euros prometidos às autarquias em Julho continuam por entregar. E, no Porto, a presidência de Rui Moreira tem-se queixado de uma dupla penalização: não recebe apoio e atrai gente de municípios vizinhos por ter respostas mais estruturadas.
Homens e sem retaguarda: um perfil dos sem-abrigo
Metade dos sem-abrigo do Porto são, citando dados da autarquia, de outras cidades ou países. “Caberá a cada município actuar preventivamente de forma a evitar situações de exclusão extrema que causem esta situação e definir políticas que contribuam para a resolução deste problema nacional”, responde o vereador com a pasta da coesão social, Fernando Paulo, quando questionado sobre objectivos a médio prazo. No Porto, estudou também a autarquia, a maioria dos sem-abrigo são homens, não têm retaguarda familiar, recebem o Rendimento Social de Inserção (RSI), têm baixa escolaridade. E caíram na rua por causa do álcool ou substâncias psicoativas, ausência de suporte familiar e desemprego. Mas também por saúde mental e mesmo por despejo e desalojamento (há 18 casos identificados na cidade).
A Câmara do Porto garante equipas multidisciplinares, de sinalização na rua e de encaminhamento para as diversas respostas, uma rede de restaurantes solidários (que em Fevereiro inaugura um novo espaço em Massarelos, com capacidade para 200 refeições) e o Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, onde estão 35 pessoas (o PÚBLICO quis visitar este espaço, mas a autarquia recusou, alegando protecção dos utentes).
Poucos conhecem a realidade dos sem-abrigo junto à estação de Campanhã como a proprietária da adega A Viela, local popular por onde dezenas de personalidades, Marcelo Rebelo de Sousa e Rui Moreira incluídos, já passaram. Na outra ponta da comprida mesa onde Rosa se senta com Paulo M., três homens comem sopa, pão e uma dose generosa de costeletas por quatro euros. A noite já caiu e dali a minutos têm de entrar no albergue a poucos metros do restaurante, no 136 da Rua de Miraflor, junto às mais famosas galerias do Porto oriental. Rosa sabe o nome de todos, conhece-lhes as histórias. Alguns confiam nela ao ponto de lhe entregarem o cartão multibanco para não o perderem ou com medo de assaltos. Ela está sempre pronta a ajudar, sem paternalismos nem preconceitos. “O que tenho vai dando para mim e para ajudar quem precisa”, diz Rosa, quinta de onze filhos de uma família pobre da Ribeira, a explicar a sua vida-missão numa simplicidade desarmante: “Sou solidária porque a vida me fez ser.”
A Paulo M. a vida cavou destino diferente. Miúdo rebelde, o mais novo de dez irmãos, desistiu dos estudos na quarta classe. Em casa dos pais, numa cidade a Norte do Porto, “nunca se nadou em dinheiro, mas também nunca se passou fome.” Ele foi-se desenrascando. Trabalhou na construção civil, cumpriu serviço militar por dois anos. Tentou-se no mundo das drogas. Tinha toda a vida pela frente e ainda pouca vontade de assentar. Em 1999, no dia 21 de Agosto, voltava do Festival Vilar de Mouros quando tudo mudou. Um condutor com 3.38 de álcool no sangue chocou violentamente com a sua mota. Dias depois, no hospital, os médicos amputaram-lhe a perna esquerda. O braço do mesmo lado ficou sem mobilidade. Andou de cadeira de rodas por oito meses, depois pôs uma prótese. Equilibra-se com a ajuda de uma canadiana. “Tinha 27 anos... E nunca ninguém me perguntou se precisava de apoio psicológico.”
Paulo M. precisava, mas não teve. Na invisibilidade e indiferença, perdeu-se cada vez mais. O álcool e as drogas tornaram-se arma de esquecimento. Em alguns anos, “estourou” toda a indemnização do acidente. Por que haveria de pensar no futuro se para ele já nada fazia sentido? Entre momentos maus e menos maus, conheceu uma mulher, casou-se com ela. Mas o conflito interior nunca calou. Quando já não tinha dinheiro na conta bancária e quase todas as portas do mundo de trabalho se mostravam trancadas, recusou “ser um peso” para a esposa. “Disse-lhe que ia viver para a rua. Peguei num casaco e vim para o Porto.” Até hoje. Cortou laços com casa, os irmãos não sonham com a vida que leva.
Depois de meses ao relento e de um período onde viveu numa pensão, emendou soluções em casas abandonadas. Recebe o RSI, 190 euros que não chegam para pagar um quarto na cidade de hoje. “Mesmo com ajuda da segurança social é impossível”, aponta. Paulo M. já foi a quatro juntas médicas, na esperança de uma reforma por invalidez que o ajudasse a viver com dignidade. Em todas saiu com o mesmo carimbo: apto para trabalhar. Nos últimos anos, recebeu do centro de emprego algumas propostas de cursos e empregos. Costureiro, carpinteiro, guarda-florestal. Ainda há meses, chamaram-no para ser ajudante de cozinha. “Se estivesse lá insultava quem lhe propôs isso”, comenta, revoltada, Rosa Meireles: “Ele não consegue usar uma mão, anda de canadiana. Estão a brincar?!”
Noutra mesa, Maria Luísa janta sozinha. Moradora do bairro de Francos há sete anos, já viveu em pensões a escapar da rua. “Sei bem o que é a solidão”, comenta, “no bairro a gente pode estar a morrer que ninguém nos deita a mão.” Ela ajuda como pode, com o pouco que tem, mas não com caridade. “Gostava de saber para onde vão os donativos que tantos fazem no Natal. Revolto-me com isto porque sei o que passei.”
Paulo M. repete, com raiva indisfarçável, a palavra “sistema”. Vezes sem conta. Diz-se o espelho de um falhanço do Estado. Abandonado pela sociedade, desumanizado, entregue a uma insanidade incontornável, a uma incapacidade de querer, de lutar, de sonhar. As perdas esboçaram nele uma espécie de não-existência. E por isso ri. Um riso magnético e algo alucinado que faz lembrar aquele que emocionou muitos na personagem do Joker, filme de Todd Phillips onde as assimetrias e desigualdades do mundo desassossegam. Ri quando lhe perguntam pelo futuro: “Eu vivo o dia-a-dia, só isso”, responde sem hesitar. “Já pensei muitas vezes que não vale a pena viver. E em pôr-me a ouvir Jim Morrison e deixar-me ir...”
A profundidade da queda de Paulo M. é já não falar na mudança. Em horas de conversa, não refere uma única vez aquilo que Rosa Meireles acaba por dizer por ele: “O Paulo precisa pelo menos de um quartinho.” Rosa, a quem a autarquia entregou este ano uma medalha da cidade, não deixará de lutar por ele. Como por outros. Em breve, oferecerá o almoço de Natal na Viela aos seus homens e mulheres famosos. Por causa desse dia especial, onde haverá música, arroz de cabidela, leitão e um bolo-rei de 15 quilos, recusou há dias a reserva de um grupo que ali queria festejar a época natalícia. Ao explicar-lhes não ser possível porque já tinha o seu almoço com os sem-abrigo, a proposta veio pronta: “Mas faça para nós no sábado e para eles no domingo e assim ficam com os nossos restos.” A resposta saiu-lhe em segundos. Os mesmos que demorou a pôr os potenciais clientes na rua. O almoço dos sem-abrigo mantém-se. Os outros foram procurar mesa onde caiba a indiferença.