25.11.20

Uma em cada cinco denúncias de violência na intimidade é feita por testemunhas

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Estudo europeu, com enfoque em Portugal e noutros três países, desmonta factores que levam uma testemunha de violência na intimidade a interferir ou a virar as costas.

Os amigos e os familiares desempenham um papel maior do que os vizinhos ou os colegas de trabalho. Em Portugal, uma em cada cinco (21%) denúncias de violência nas relações de intimidade é apresentada por testemunhas. O que faz com que uma pessoa decida “meter a colher”?

O Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE na sigla inglesa) procurou perceber quem tem mais tendência a imiscuir-se e porquê. Cruzou dados quantitativos de todos os Estados-membros e fez um estudo qualitativo em quatro – Dinamarca, Alemanha, França e Portugal –, entrevistando 20 testemunhas e 36 profissionais e dinamizando 12 grupos com um total de 86 pessoas.

É elevada a percepção de que o problema existe no espaço comunitário. Nessa matéria, um estudo divulgado pela Comissão Europeia em 2016 coloca Portugal, Itália e Espanha no topo. A esmagadora maioria diz considerar tal prática inaceitável – em Portugal mais do que em qualquer outro Estado-membro.

Os amigos e os familiares têm mais tendência a interferir. No caso de Portugal, citando dados do Ministério da Administração Interna sobre as denúncias registadas em 2019, o relatório menciona que 5% das queixas são feitas por familiares, 3% por vizinhos, 3% pela polícia e 9% por anónimos.
“No trabalho, percebi que ela estava a sofrer. Porque eu estava no escritório e ela ... eu vi-a a chorar duas vezes ... E então ela saiu ... e ela estava ... ela mostrou-me o corpo e ela tinha nódoas negras em todo o lado. [...] Eu vi a infelicidade dela ... e, um dia, ela chegou ao trabalho com um olho roxo, no outro dia com a boca machucada ... Isto deixou-me preocupada e então tentei ajudá-la.”Testemunha citada no relatório Intimate partner violence and witness intervention: what are the deciding factors?

Não basta vontade. Há que compreender o que é violência num contexto de intimidade e saber como proceder. A violência física é fácil de identificar, o mesmo não se pode dizer da violência psicológica ou económica, como explica Agata Szypulska, perita da EIGE, chamando a atenção para a importância de campanhas de consciencialização, que constroem entendimento, ensinam a identificar os sinais, fornecem orientação sobre o que fazer.

O consentimento da vítima é um elemento-chave. Se estiver receptiva, familiares e amigos terão tendência a falar com ela, a ajudá-la a recorrer aos serviços de apoio, a denunciar o crime às autoridades. Para os vizinhos que ouvem o barulho ou assistem a agressões, isso não é tão relevante.

Em 2020 foram assassinadas 30 mulheres: 16 em relações de intimidade


A possibilidade de relatar e fornecer provas de forma anónima também incentiva à acção. Isso é particularmente certo quando as testemunhas em causa são “vizinhos e colegas de trabalho, que tendem a ter uma relação menos próxima com a vítima e o agressor”.

Profissionais de saúde

Na Bélgica, na Dinamarca, na Holanda, na Polónia e em Portugal os profissionais dos serviços de saúde e outros funcionários públicos têm o dever de denunciar às autoridades casos de violência praticada por parceiro íntimo. Noutros países, só são obrigados a testemunhar. E há o conflito entre o dever de relatar um crime às autoridades e o dever de confidencialidade perante o paciente-cliente que pode levar a pessoa a não intervir.

A existência de crianças tanto pode ser um facilitador, como um inibidor. Algumas testemunhas querem tirá-las do contexto de violência, mas outras ficam preocupadas com a separação dos pais e os eventuais traumas que possam vir a sofrer em virtude da investigação policial e da decisão judicial.

A decisão também pode ser influenciada pela confiança que a testemunha tem nas forças de segurança e nos tribunais. E pelo medo que sente pela sua própria segurança. Em muitos Estados-membros, as testemunhas podem manter a sua identidade confidencial. Em Portugal, só podem dar outro endereço que não o da sua residência. Em vários países, podem beneficiar de medida de afastamento do agressor. Em Portugal, essa medida só existe para vítimas, sublinha Agata Szypulska.

Os autores do relatório concluem que “há uma grande necessidade de aumentar a consciencialização e tomar medidas destinadas a incentivar as testemunhas a agir”. Também consideram “crucial” as autoridades redobrarem esforços para lidar com denúncias de uma maneira que proteja tanto as vítimas quanto as testemunhas. Há estudos, inclusive feitos em Portugal, que mostram que a intervenção de testemunhas na justiça criminal “aumenta drasticamente a probabilidade de condenação”.

A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, diz que está sempre a ver formas de fazer “melhorias”. “O facto fundamental que identificam é as testemunhas terem informação sobre como actuar, terem confiança no sistema. Estamos a dar passos no sentido de fazer este apelo e de capacitar os vários tipos de testemunhas. Não só amigos, familiares, colegas, mas também entidades empregadoras.” Esta semana, no Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres, será assinado um pacto com 20 empresas e lançada uma nova campanha.