23.11.20

Pobreza Infantil na União Europeia: das palavras à ação

Odete Severino Soares, in Expresso

O mais recente relatório do Banco Mundial revela que, só este ano, a pobreza extrema deverá atingir entre 88 milhões e 115 milhões de pessoas, podendo chegar a um total de 150 milhões de pessoas em 2021, em resultado da pandemia

Um terço da população global esteve em isolamento decorrente da COVID-19, e o encerramento das escolas teve impacto em mais de 1,5 bilhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, resultando no agravamento das desigualdades sociais, nomeadamente, no aumento da pobreza infantil. Serão por isso necessários esforços consideráveis para reduzir as desigualdades no acesso à educação, apoiar famílias vulneráveis ​​e impulsionar os sistemas de proteção das crianças.

Corremos o risco desta crise sanitária se transformar numa crise dos direitos da criança, sem localização específica, afetando todos os países, pelo que se tornam necessárias estratégias e políticas com uma visão inovadora de combate à pobreza infantil ao nível de toda a UE para responder a esta ameaça. Os líderes europeus têm que admitir que algo está profundamente errado se, apesar de todas políticas, medidas e instrumentos implementados, a pobreza infantil continua a aumentar no espaço europeu. No quadro da UE, conforme refere o Relatório do Tribunal de Contas Europeu sobre a pobreza infantil (29/09/20120), “é quase impossível avaliar de que forma a UE ajuda os Estados-Membros nos seus esforços para reduzir a pobreza infantil” adiantando que “os instrumentos mais robustos, como o Semestre Europeu ou o apoio dos fundos da União, raramente incidem especificamente na pobreza infantil” e acabando por concluir que “é difícil determinar se ação da UE dá um contributo eficaz para os esforços de luta contra este importante problema”.

É importante relembrar que um dos objetivos definidos na Estratégia Europa 2020 implicava tirar pelo menos 20 milhões de cidadãos europeus da pobreza até 2020. Este objetivo, não alcançado, baseava-se no compromisso de todos os estados-membros em construir uma Europa mais justa e inclusiva. No centro deste esforço estava o combate à pobreza infantil.

A ameaça da crise sanitária não acabou, e os líderes europeu procuram agora soluções através dos respetivos Planos Nacionais de Recuperação e Resiliência para fazer face à situação económica e social que esta crise está a criar afetando todos, com a previsão do aumento da despesa que ameaça escolas, serviços de saúde, a proteção das crianças. O aumento do desemprego já se faz sentir com risco crescente no que diz respeito às condições de vida daqueles que recebem apoio ou que estão dependentes de serviços sociais ou de solidariedade em geral, com os números relativos de pobreza infantil a aumentar.

Neste quadro, combater a pobreza infantil na UE tem que estar necessariamente no topo de agenda dos líderes europeus e não pode ser visto como um objetivo eternamente adiado, até porque estamos a falar de uma das regiões mais rica do mundo.

A iniciativa “Garantia Europeia para a Infância” pode mesmo constituir um instrumento fundamental e robusto para a estabilidade e prosperidade da UE no seu todo. Dispomos de instrumentos eficazes que podem ser utilizados para a concretizar, como o novo Fundo Social Europeu (FSE+) 2021-2027. A indecisão dos líderes europeus em relação à proposta do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia para que cada Estado-Membro aloque pelo menos 5% do FSE+ para combater a pobreza infantil, não é compreensível e não é um sinal positivo de um compromisso europeu comum que se quer alcançar para esta área.

Diria mesmo que a “Garantia Europeia para a Infância” deve ser assumida como parte integrante de um plano europeu transversal para combater a pobreza infantil, com financiamento UE adequado, materializado em planos e medidas nacionais e complementado por programas de apoio e oportunidades para os pais saírem de situações de exclusão social e integrarem o mercado de trabalho. Também é preciso que a UE e os seus Estados-membros melhorem a recolha de dados para ajudar a monitorizar e avaliar os progressos em matéria de combate à pobreza infantil.

Para o sucesso desta iniciativa é imperioso que se olhe para a pobreza infantil no quadro dos direitos das crianças, cuja unidade de observação e de mensuração é a criança, tendo em consideração a natureza multidimensional das suas vidas e a importância das suas relações, e onde a escassez de rendimento constitui apenas uma das vertentes. Engloba também saúde, educação, apoio familiar, proteção e a capacidade de as crianças participarem nas decisões que as afetam. “Um nível de vida adequado é um pré-requisito para o desenvolvimento da criança a nível físico, mental, moral e social”, como salienta a Organização Eurochild.

A decisão da Presidência portuguesa da UE de colocar a pobreza infantil no topo da sua agenda é por isso oportuna e urgente e pode constituir um marco decisivo no alcance daquele plano europeu integrado. Espera-se, por isso, no primeiro semestre de 2021, a par do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a adoção da recomendação relativa à “Garantia Europeia para a Infância” desenhada de forma que cada estado-membro desenvolva estratégias e políticas que se concentrem na primeira infância, de forma a que todas as crianças em situação de pobreza possam ter acesso a cuidados de saúde gratuitos, creches e educação gratuitas, habitação digna e nutrição adequada.

Portugal vai estar numa posição privilegiada e única para ajudar a concretizar a noção de “felicidade” do Charlie Brown e que representa na sua essência o sonho que cada criança tem para si próprio de “Ser escandalosamente Feliz”.