18.7.22

Médicos sem especialidade: Ministério está a criar SNS mais vulnerável

Isabel Santos, Jaime branco e Vasco Mendes, in Observador

Alertamos para o erro que está a ser cometido e que terá repercussões no sistema de saúde. Fragiliza-o, porque o desregulam. Descredibiliza-o, porque promove diferenciação dissociada da qualidade.

A manhã de consultas está a meio. A última consulta acabou um pouco mais tarde, mas nada é em vão quando se trata de explicar a um utente, até que este compreenda, os cuidados de saúde alimentares e como tomar a medicação. A médica de família levanta-se e dirige-se agora ao gabinete de enfermagem, onde o Dinis já começou a ser observado pela enfermeira.

Tem 4 anos. Sentado na marquesa com brinquedos novos, compenetrado, não fala com ninguém, mas a mãe diz que “é normal”. Os olhos clínicos desta médica especializada em medicina geral e familiar já viram milhares de crianças e algo não parece bem. Após um conjunto de questões, descobre que não é habitual o Dinis ter uma conversa recíproca, nem brincar com outros meninos da sua idade. A mãe descreve-o como tímido. Na verdade, é mais do que isso: estes são alguns sinais do espectro do autismo. Pede-se uma avaliação da Psiquiatria da Criança e do Adolescente. Ainda se vai a tempo de estimular o Dinis.

Segue-se uma senhora de 74 anos que se diz confusa com a toma da medicação. A especialista analisa os dados: a última consulta foi antes da pandemia. Com a depressão que desenvolveu, associada aos problemas do sono, hipertensão arterial, diabetes, insuficiência cardíaca e hipotiroidismo, a polifarmácia tornou-se um problema para Adelaide. Após consulta, acorda-se um ajuste na medicação.

O seguimento dos utentes tem-se tornado cada vez mais exigente: diagnostica-se mais e com maior precisão e trata-se mais cedo e melhor. E isso só se consegue com o acompanhamento por médicos especializados em tratar, seguir e vigiar problemas de saúde de natureza diferente em simultâneo. É o que faz a Medicina Geral e Familiar, desde 1981. Com a formação específica, conjugada à experiência clínica, esta médica responde a necessidades diversas. O tipo de resposta dada por outro médico, sem especialidade, não teria os mesmos resultados. Porém, o Ministério da Saúde propõe agora – numa norma do OE já em vigor – que estes cuidados de saúde a utentes como o Dinis ou a Adelaide sejam prestados, sem supervisão, por estes médicos que não se formaram em MGF.

Daqui, para onde iremos? Não há obstetras no SNS, colocam-se os especialistas de Medicina Interna a prestar esses cuidados? Não há cirurgiões cardiotorácicos, colocam-se cirurgiões gerais a fazer o seu trabalho? Todos os doentes devem ser atendidos por especialistas devidamente preparados.

O que se pretende com esta medida é tapar os olhos aos cidadãos, que têm assistido ao aumento de utentes sem médico de família: são hoje já 1,4 milhões, um número que duplicou desde que Marta Temido iniciou funções, em outubro de 2018. Percebe-se, assim, mais uma vez, que o Ministério da Saúde e todo o Governo desconhecem o impacto dos Médicos de Família e dos Cuidados de Saúde Primários para os bons indicadores em saúde e para a regulação do sistema. O que tanto apregoam defender é o que mais atacam com as medidas avulsas que decidem tomar.

Como médicos de família, especialistas das demais especialidades e enquanto estudantes de medicina alertamos para o erro que está a ser cometido e que terá repercussões no sistema de saúde. Fragiliza-o porque se tomam medidas que o desregulam. Descredibiliza-o porque se promove uma diferenciação salarial dissociada da qualidade do desempenho. Os profissionais ficam ainda mais desmotivados e, no final, os cidadãos são os mais prejudicados.

Esta não-solução é o agravar de uma escalada de degradação dos cuidados de saúde em Portugal.