António Covas, in o Observador
Hoje a contingência funciona como apólice de seguro face à responsabilidade perante o futuro. A decisão política dá o lugar à deliberação procedimental. Este é o sistema europeu em pleno funcionamento
A contingência é a sombra inevitável da política
A prospetiva já não é o que costumava ser e está, hoje, algures entre a projeção do presente e a antecipação do futuro, entre o diagnóstico e o prognóstico. Assim sendo, a contingência é uma segunda pele da prospetiva. A principal tarefa da prospetiva, hoje, já não é extrapolar tendências ou acertar no alvo, é expandir campos de possibilidade e múltiplos futuros. No universo da cibercultura, a prospetiva hoje é uma “nova teoria do tempo social”, na perspetiva das relações que a sociedade mantém com o futuro e de como este é antecipado, decidido e configurado. Todavia, em vez de uma “grande prospetiva” para a configuração de um futuro melhor, temos hoje um “solucionismo tecnológico”, por um lado, e uma rotina burocrática e administrativa, por outro, uma microprospetiva, se quisermos, uma modernização racionalizada e melancólica conduzida no quadro de instituições e burocracias.
No século XXI, num mundo de interdependência máxima, as consequências secundárias e os efeitos colaterais são cada vez mais frequentes e intensos. Neste contexto, a prospetiva deixa de ser o futuro como progresso e passa a ser o futuro como risco e probabilidade. Trata-se, portanto, para a prospetiva, de uma dupla tarefa: minimizar o risco implicado por esta interdependência máxima e os seus efeitos colaterais, por um lado, alargar o campo das possibilidades e da liberdade, por outro.
Tudo isto é particularmente verdadeiro no caso de um “objeto politicamente não-identificado (OPNI)” como a União Europeia. No caminho estreito e movediço entre a prospetiva e a contingência, o seu mérito principal acaba por ser, paradoxalmente, a própria inércia do sistema comunitário que, pelo jogo das instituições, transforma problemas graves em problemas crónicos. No tempo que passa não é de somenos importância. Façamos, então, uma incursão breve pela prospetiva antes de regressar à União Europeia.
Elementos de reflexão para um debate sobre a prospetiva hoje
A sociedade é atualmente um “assunto interpretativo” como se fosse necessário prever o presente. Ser concreto no mundo de hoje exige um grande esforço teórico. A filosofia social deve estar á altura da complexidade, da contingência e opacidade da sociedade contemporânea. Muitos efeitos são não-desejados e não-intencionais. As novas categorias do social, a sua matéria-prima, são: a virtualidade, os riscos, a exclusão, a oportunidade, a simulação e a dissimulação, a representação. O sistema social tal como está proporciona tanta contingência como liberdade, por isso é que ele é tão cognitivo. Neste sentido, a filosofia é uma forma de espionagem numa sociedade cada vez mais intransparente e o lugar onde se cultiva a suspeita pelo lugar comum e a esperança numa revelação.
Conhecer o futuro é, como sabemos, uma teoria histórica longa que começa nos oráculos e profecias, passa pela superstição e bruxaria, pela planificação e previsão e vem desembocar nos métodos da prospetiva. Aqui chegados, perante tanta interdependência, risco e incerteza, quem responde, de modo responsável, perante o futuro?
A atual situação de opacidade em matéria de imputação de responsabilidade é muito do agrado dos agentes políticos que, assim, alargam bastante o seu espaço de ação e manobra. Isto significa que, em matéria de prospetiva, estamos necessitados de um conceito de responsabilidade política e pública adequado à atual complexidade da sociedade contemporânea.
A prospetiva é, também, uma corrida contra o tempo, uma guerra do tempo e das suas diferentes velocidades, e nessa cultura da velocidade em que o tempo domina o espaço, o território é a principal vítima. Um território que se torna exíguo (a teoria do estado-exíguo) e muito vulnerável. Pense-se, por exemplo, na justiça intergeracional ou na extraterritorialidade e no modo como ocupamos o território expresso nas suas diversas desigualdades. Por outro lado, nas condições atuais de extrema contingência muitas decisões políticas são absolutamente irrelevantes ou, talvez melhor, simplesmente modestas, razão pela qual estamos continuadamente obrigados a tomar decisões. Vivemos, assim, o tempo da prospetiva incremental, em face do risco sistémico e interdependente, das suas externalidades, dos seus efeitos colaterais, do risco moral, da ingovernabilidade política e do radicalismo político-partidário que emerge em redor de um problem-solving não-resolvido ou mal resolvido.
Num plano mais conceptual, a minha reflexão acerca da prospetiva recaiu sobre alguns autores que, em cada época, fizeram abordagens distintas desta “racionalidade limitada”: Herbert Simon (a racionalidade limitada), Michel Crozier (o ator e o sistema e o fenómeno burocrático), Mancur Olson (a lógica da ação coletiva), Elinor Ostrom (as instituições, a regulação e o governo dos comuns), a modernização reflexiva e os riscos globais (Ulrich Beck), contingência e aprendizagem cognitiva (Daniel Innerarity). Embora os pontos de partida sejam distintos todos eles convergem no sentido de uma cultura da “contingência cognitiva”. A partir dessas reflexões, deixo aqui algumas ideias-força, o meu modesto contributo para o debate da prospetiva hoje, se quisermos, uma espécie de teoria geral da incerteza e da aprendizagem cognitiva:
A prospetiva é um campo paradoxal, uma espécie de campo minado, pois estão lá todos os nossos receios e todas as nossas esperanças.
O drama da prospetiva é que nada é pensado para durar, tudo é pensado para ser consumido; por isso, a prospetiva hoje vai da configuração para a adaptação, da ousadia para a prudência, da retórica da previsão para as tarefas da gestão e monitorização.
Dada a incerteza fundamental do futuro, a política é uma atividade de responsabilidade limitada e ninguém está muito interessado em fazer esta ligação ao futuro responsabilizando-se por isso; face à contingência e ao risco, a política apresenta-se irresponsável e inimputável.
A prospetiva, hoje, é mais um aparato que um pensamento: muitos sistemas de advertência e prevenção de riscos, alguns dispositivos de autorregulação e, sobretudo, muita imaginação em redor da socialização de prejuízos difusos.
A prospetiva, hoje, está muito mais “institucionalizada” por causa do risco e das suas consequências não-intencionais e indesejáveis; por causa dessa institucionalização, quantas vezes abusiva, (retratada por défices e dívida pública nos orçamentos) vivemos todos uma espécie de fadiga ou melancolia institucional.
Em face desta “prospetiva melancólica” a classe política e as suas clientelas são os mestres deste jogo bastante viciado de socialização dos prejuízos não-intencionais ou indesejáveis e dos seus efeitos sistémicos e colaterais; dito de outra forma, a corrupção e as suas subespécies estão, de certo modo, protegidas nos termos de uma “teoria geral da irresponsabilidade ou inimputabilidade políticas”.
Por todas estas razões, a contingência e a complexidade da ordem política produzem uma enorme necessidade de decisão incremental, donde a prospetiva ficar enleada num labirinto de processos, procedimentos e regulamentos.
Para lá do que desejamos e planeamos está aquilo que nos acontece; a incerteza deixou de ser uma questão de erro ou variância e passou a ser o núcleo central da nossa existência, pelo que a fenomenologia tomou conta da nossa existência.
O lado paradoxal da prospetiva hoje
Mais informação e meta-informação codificadas, por um lado, e mais dúvida sistemática, por outro, eis o paradoxo em pleno funcionamento. Nunca tivemos tanta e tão refinada prospetiva e nunca o futuro foi tão enigmático, misterioso e perigoso. Paradoxal, ainda, pois quando diminuímos a incerteza perante o futuro, perdemos, do mesmo passo, graus de liberdade para intervir nesse mesmo futuro, uma vez que ficou mais estreito o campo de opções e possibilidades acerca do futuro. Quem diria, a incerteza perante o futuro aumenta os nossos graus de liberdade face ao futuro. Digamos que quanto menos hipóteses ficam em aberto, mais surpresas e outras tantas opções ficam pelo caminho. Eis alguns desses efeitos paradoxais:
O efeito velocidade: a velocidade aproxima o futuro do presente e o que poderia ser o entusiasmo acerca do futuro transforma-se, por causa da velocidade, no tédio do futuro.
O efeito risco moral: o futuro congestiona devido à velocidade, logo os comportamentos de risco aumentam vertiginosamente e o risco moral e o free raider passam a ser uma constante da ação coletiva.
O efeito “instrumentalização” do futuro: a proximidade do futuro conduz à tentação de o instrumentalizar, de o colocar ao nosso serviço, de viciar ou enviesar as tendências em nosso benefício.
O efeito ciclo eleitoral: a perspetiva de um elevado custo político-eleitoral leva à substituição da grande prospetiva pela média e pequena prospetiva; uma vez que os políticos não querem ser enganados pela prospetiva, preferem as soluções de urgência, de curto prazo e provisórias que permitem em qualquer momento corrigir os erros eventuais just in time.
O efeito “défice de prospetiva horizontal”: a falta de tempo, que é própria da prospetiva vertical, rouba um tempo precioso à prospetiva horizontal, isto é, ao diálogo, a cooperação e a concertação, os chamados “recursos baratos”, mas imprescindíveis na negociação informal.
O efeito privatização do futuro: para os jovens o futuro é do foro individual e não da competência política; o futuro privatiza-se, pluraliza-se e fragmenta-se e os jovens mostram interesse pela coisa comum, mas não de forma coletiva.
As conexões entre a prospetiva e a política pública
Do que se disse, decorre uma outra perspetiva de olhar para o problema, qual seja, a via das conexões entre a prospetiva e a formulação da política pública. Senão vejamos:
A prospetiva desenrola-se a três níveis: a grande prospetiva, a meso-prospetiva e a micro prospetiva; em princípio, a grande prospetiva (por exemplo, a doutrina sobre os grandes riscos globais) deveria informar a polity e a doutrina das políticas públicas; a meso-prospetiva deveria inscrever essa doutrina no quadro nacional através do respetivo quadro ou policy framework, por último, a micro prospetiva deveria fornecer indicações úteis para a politics dos agentes políticos, públicos e privados.
Os grandes riscos globais, sistémicos e interdependentes, põem em causa o grau de verosimilhança da prospetiva, pelo menos a grande prospetiva; se esta não for capaz de estabilizar minimamente as expectativas dos agentes políticos principais, aos níveis intermédio e micro, estes vão desinteressar-se dos seus cenários e recomendações.
Os políticos, como dissemos, não acreditam, suspeitam da prospetiva, tentam antes instrumentalizá-la para benefício próprio; por uma espécie de “efeito redução” racionalizam a prospetiva e entregam às instituições a função de regulação dos riscos principais; a regulação institucional reduz a macro prospetiva, a hétero regulação reduz a meso-prospetiva e a autoregulação reduz a micro prospetiva.
A prospetiva torna-se modesta, caseira e burocrática e cede o lugar ao management: a partir daqui sucedem-se os mecanismos de alerta e prevenção, as burocracias de observação, controlo e monitorização, os sistemas de avaliação ex ante, on going e ex post, os sistemas de garantias e os diversos mecanismos de socialização de prejuízos.
A prospetiva converte-se numa máquina de processo e procedimento, controlo e monitorização just in time, em boa medida racionalizada por regulamentos e reguladores, se quisermos, capturada por burocracias hétero-reguladoras e clientelas auto-reguladoras, para além de uma crescente corrupção e judicialização de todos os tipos.
A prospetiva perde, assim, a graça: a imaginação, a inteligência, a inventiva, que é tudo o que faz a sua beleza e a sua riqueza reduzem-se substancialmente; em boa medida, a prospetiva transforma-se em perspetiva, passa a ser, digamos, uma “agência de rating”.
A prospetiva, devido à natureza da sua conexão com a formulação das políticas públicas, aos vários níveis, deixa os problemas de multi-escalaridade por resolver e a governança multiníveis, pouco efetiva, entregue, quase sempre, a uma burocracia subordinada; a prospetiva torna-se discreta e secreta, quase suspeita, uma máquina burocrática de observação e controlo sem condições para inspirar a política pública.
Finalmente, e para recuperar a capacidade de intervenção política sobre os processos sociais e voltar a inspirar a política pública, talvez uma das possíveis soluções consista em compensar a lentidão da política com a “prospetiva preventiva”, substituindo o problem-solving pelo problem-saving. Quem diria!!
A prospetiva do território e a sociedade portuguesa
No plano da prospetiva nacional, a globalização e a tese do estado-exíguo conduzem-nos até à perda de centralidade do Estado e à sua capacidade de reconfiguração. Assistimos a uma espécie de dessacralização da política-estado, a um tédio por essa política-estado como parte da normalidade democrática, embora saibamos, também, que há mais política para lá dessa política. Esse facto reflete-se, também, inevitavelmente, nos níveis da prospetiva e no seu impacto sobre a natureza e segurança da governação multiníveis em que estamos fortemente implicados.
A Grande Prospetiva: no quadro europeu, uma doutrina comunitária sobre os riscos globais e os bens comuns transferida para uma nova geração de políticas europeias de coesão e desenvolvimento seria um bom exemplo de Grande Prospetiva que não só promoveria a relegitimação da União Europeia como “comunidade de riscos globais” como forneceria uma segurança acrescida para os níveis de governança inferiores.
A Grande Prospetiva: a reconfiguração geoestratégica e geopolítica portuguesa no espaço transatlântico e ibero-americano, no quadro do TTIP, da CPLP e do alargamento da nossa zona económica exclusiva é um excelente exemplo de Grande Prospetiva que acrescenta valor e reputação à nossa participação na União Europeia; trata-se, portanto, de delimitar uma espécie de “zona geoestratégica de interesse nacional e europeu” com muitos efeitos externos positivos sobre as restantes políticas públicas.
A Meso Prospetiva sociodemográfica: no horizonte 2050 é necessária a reconfiguração do ciclo sociodemográfico da sociedade portuguesa face à eclosão e projeção da sociedade sénior, face aos impactos das alterações climáticas e ocupação do território e face à transformação socio-estrutural dos mercados de trabalho nesse horizonte temporal.
A Micro Prospetiva: no horizonte 2020-2030, a territorialização das políticas públicas contidas no Portugal pós-2020 e a descentralização do Estado-administração, de modo a impedir a continuação dos processos de desertificação e despovoamento de boa parte do território nacional é uma tarefa inadiável, pois é o nosso assentamento fundamental, como território nacional, que está posto em causa.
Notas finais
A prospetiva portuguesa está quase totalmente racionalizada pelo “sistema de condições e condicionalidades” da União Europeia. Por isso, importaria que a prospetiva fosse reabilitada no sentido de nos fornecer um novo campo de possibilidades e uma margem de liberdade muito mais ampla. Precisamos de rever urgentemente aquilo a que chamamos “o conceito estratégico nacional”, pois estamos ou vivemos uma espécie de liberdade condicional em que as restrições contam mais do que os objetivos.
Portugal está necessitado de uma Grande e Média Prospetivas, todavia, essas prospetivas só terão reputação e influência na União Europeia se Portugal for capaz de trazer reputação e influência de fora para dentro da União Europeia, isto é, se reequilibrar o vetor europeu com o vetor transatlântico, as diásporas e o espaço da lusofonia e toda a América Latina, para além de uma nova equação para o mar português e as nossas ilhas atlânticas no interior desse grande mar e da nossa grande zona económica exclusiva (ZEE).
De volta à União Europeia, um “assunto interpretativo” por excelência.
Como país membro da União Europeia, o algoritmo da macroeconomia europeia deixa-nos amarrados às nossas dívidas gigantescas enquanto a policy fica muito condicionada pela respetiva governação multiníveis. Por estas duas razões, vamos precisar de um “grande desígnio nacional” para escapar à micro prospetiva que se desenrola no interior das tecno-burocracias de observação, monitorização e avaliação de políticas públicas em Bruxelas e Frankfurt. É certo, o sistema de checks and balances da ordem comunitária é o segredo da União Europeia para escapar à grande contingência, mas, também, a sua principal vulnerabilidade pois está na origem da desafeição emocional e fadiga institucional que hoje afetam o cidadão e a cidadania europeus. Para escapar a esta armadura institucional, Portugal precisa de uma “Grande Estratégia” que compreenda, para além do espaço europeu e peninsular, a estruturação do espaço transatlântico e ibero-americano, a organização do espaço da CPLP e, em consequência desses vetores externos, uma nova geração de políticas do território que projete o seu espaço interior no grande espaço ibérico, europeu e transatlântico.
Quem diria, para o sistema político, hoje, a contingência funciona como “apólice de seguro” face à sua responsabilidade perante o futuro. A decisão política dá lugar à deliberação procedimental e tudo recomeça.
Universidade do Algarve