Aline Flor, in Público on-line
Será o segundo do país e tentará dar uma “resposta digna” a mulheres que sobreviveram a violações. No de Lisboa, só num ano, foram atendidas 51 pessoas que foram alvo de violência na capital e arredores.
Centro de apoio a vítimas de violência sexual, em Lisboa. Foi o primeiro do país e abriu em 2017 Sebastião Almeida
A partir da próxima semana, o Porto vai ter um centro de apoio especializado a mulheres vítimas de violência sexual, o segundo do país. O projecto EIR — Emancipação, Igualdade, Recuperação, coordenado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), será apresentado na quinta-feira, durante o seminário “Violência Sexual nas Relações de Intimidade”, no Instituto Universitário da Maia (ISMAI).
Este novo serviço especializado, o segundo do país dirigido a mulheres — o primeiro nasceu no início de 2017 em Lisboa, a cargo da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV) — tentará dar uma “resposta digna” a mulheres que sobreviveram a violações, com uma equipa técnica “especializada e multidisciplinar”, preparada para prestar atendimento psicológico, social e jurídico.
O projecto EIR estará preparado para atender mulheres que “em algum momento das suas vidas foram vítimas de algum tipo de violência sexual”, explica a responsável pelo novo serviço, Ilda Afonso, com experiência de vários anos no atendimento a vítimas de violência doméstica (VD). “Já tínhamos aqui no centro de atendimento [a vítimas de VD, da UMAR] algumas situações de violência sexual, sabemos que uma grande parte das vítimas de violência sexual são vítimas por parte de familiares, conhecidos, amigos”, recorda. “Mas é importante que existam centros especializados em violência sexual, são fenómenos diferentes, a intervenção não é a mesma.”
Breve guia para vítimas
A AMCV publicou em 2015, no âmbito do projecto “Novos desafios no combate à violência sexual”, guias de bolso sobre violência sexual, dirigidos a vítimas e a profissionais, que estão disponíveis também na Internet. Aí explica-se, por exemplo, que, em situação de emergência, as vítimas podem chamar a polícia ou a ambulância através do 112. Que nas urgências, serão prestados os cuidados de saúde necessários, incluindo tratamento para infecções sexualmente transmissíveis ou acesso à contracepção de emergência. E que ao revelar que foi vítima de violação, esta “tem direito a receber apenas o tratamento médico e rejeitar fazer o exame médico-legal, caso seja essa a sua vontade”. Contudo, se pretender apresentar queixa-crime, “é aconselhável apresentar prova”.
Este exame é feito pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), até 72 horas após a violação. Além das delegações do INML, há 30 gabinetes médico-legais instalados em hospitais por todo o país.
No caso de maiores de idade, a violação é um crime semipúblico, o que significa que só será investigado se a vítima apresentar uma queixa — o que pode ser feito no prazo de seis meses junto de qualquer órgão de polícia criminal, no tribunal ou no INML. É importante notar que “a violência sexual pressupõe não ter existido consentimento”, e isso deve estar claro na queixa. “De uma forma geral, as sobreviventes descrevem o que o agressor lhes fez, mas raramente o que elas próprias fizeram, sentiram ou o que pensaram, ou seja, como resistiram, como sobreviveram à agressão.”
O processo de recuperação do trauma pode ser longo e algumas organizações dispõem de serviços de apoio: Associação de Mulheres Contra a Violência; Associação Portuguesa de Apoio à Vítima; Associação para o Planeamento da Família; União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR); Associação Quebrar o Silêncio (homens) e Centro Gis (LGBT).
Centros de apoio especializado em violência sexual são referidos em compromissos internacionais assinados por Portugal no âmbito da protecção dos direitos das mulheres, como a Convenção CEDAW, da ONU, e a Convenção de Istambul, do Conselho da Europa. A recomendação deste último, aliás, é que haja um centro deste tipo para cada 200 mil mulheres. A proposta para a criação do centro de crise da AMCV para vítimas de violência sexual em Lisboa, que arrancou em Janeiro do ano passado, surgiu precisamente depois da última avaliação da Comissão CEDAW, “em que as Nações Unidas disseram a Portugal que era preciso implementar os centros de crise”, conta Margarida Medina Martins, fundadora da organização.
Durante o primeiro ano de funcionamento, o projecto-piloto (apoiado pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria de Estado da Igualdade) apoiou “51 vítimas sobreviventes directas de violência sexual da Área Metropolitana de Lisboa”. A maioria das mulheres está nas faixas entre 18-30 anos e 51-60 anos, e cerca de 60% das sobreviventes tinham ou tinham tido uma relação de intimidade com os agressores — 94% dos quais eram homens. Mas a AMCV, que apoia vítimas de violação há mais de duas décadas, suporta os custos de atender também mulheres do resto do país. “Souberam que estávamos a dar apoio nesta área, e portanto no total estaríamos a falar de cem mulheres”, diz-nos Margarida Medina Martins. "O facto de ter aumentado a visibilidade sobre o tema, de se saber que há agora uma resposta nova em Portugal nesta área, faz com que as pessoas avancem para perguntar como é que é".
Violência sexual "é o último reduto que é preciso destapar"
Não é à toa que a violência sexual surge enquadrada como uma forma de violência de género contra as mulheres. No ano passado, de acordo com o último Relatório Nacional de Segurança Interna, a esmagadora maioria (90,7%) das participações por violação foram feitas por mulheres. E 99,2% dos arguidos eram homens, mais de metade dos quais tinham uma relação familiar ou de conhecimento com a vítima. São números expressivos que mostram que a violência sexual afecta as mulheres de forma desproporcional, o que não significa que seja menos importante apoiar as vítimas do sexo masculino: em Portugal, para além destes dois serviços dirigidos a mulheres, existe também desde o início de 2017 uma resposta especializada para homens vítimas de violência sexual. Fica em Lisboa, a cargo da associação Quebrar o Silêncio, que também tem visto crescer o número de pedidos de apoio.
E o que recebem as vítimas nos centros da AMCV e da UMAR? Para começar, apoio jurídico. “Se eu não fiz queixa quando fui violada, ainda vou a tempo de fazer? Se eu fizer queixa, qual é a protecção que tenho? É um crime público ou é um crime semipúblico?”, são algumas das perguntas enumeradas por Alberta Silva, coordenadora do centro de atendimento da AMCV.
Mas, tal como a resposta que agora abre no Porto, o centro da AMCV está preparado para atender também vítimas de violações que aconteceram há muitos anos, ajudando-as a lidar como trauma. “O centro de crise vem também para estas pessoas, porque se pode entrar em crise em qualquer altura da vida, nem que seja 60 anos depois”, conta Margarida Martins. E mesmo nos casos de apoio a vítimas de crimes recentes, diz-nos Alberta Silva, “depois há todo um acompanhamento”.
“Há uma desconfiança histórica sobre as vítimas de crimes sexuais”
“O que falta fazer? Antes de mais, acreditar nas vítimas"
O tempo é um ponto crítico para as vítimas de violência sexual. Actualmente, a lei dá um prazo de seis meses para que seja apresentada queixa. “Para mim, os crimes de violência sexual não deviam prescrever”, diz Margarida Medina Martins.
"A questão é que, para as sobreviventes, uma coisa é aquilo que acontece agora, outra coisa é o timing em que ela é capaz de estar em condições de falar, ou estar suficientemente protegida ou segura para dizer 'é agora que eu quero fazer queixa'."
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