17.7.18

"Estou sozinho, mas não quero ir para o lar". Em Trancoso, há uma solução

Liliana Carona, in RR

A solidão é um dos problemas que afeta as populações do Interior desertificado. Há idosos que passam dias a fio sem terem com quem trocar uma palavra ou um sorriso. Para responder ao flagelo, nasceu a associação Rugas de Sorrisos, que tem o apoio da Junta e da Santa Casa da Misericórdia de Trancoso.

“Não tem luz, vive muito isolado”, descreve Helena Saraiva ao abrir a porta de casa de José Aguiar. “José, está aí?”

Há mais de um ano que José Aguiar, de 80 anos, deixou de estar sozinho. Todas as semanas recebe a visita de Helena Saraiva, da associação Rugas de Sorrisos. “Esta é quem me anda a fazer bem, ela é que me leva a passear, se não fosse ela, o que seria de mim?” questiona em conversa com a Renascença.

Apressa-se a confessar que vive completamente sozinho. “Não tenho ninguém, esta é que olha por mim. Tenho uma família que são uns cobardes, não vêm aqui ter. E esta tem sido a minha amiguinha da vida, só conto com ela”, garante, interrompido por Helena, que diz que agora “só precisava de mais condições habitacionais”.

Em 2014, Helena, de 39 anos, criou um projeto que viria a tornar-se numa associação sem fins lucrativos, em outubro de 2017, a associação Rugas de Sorrisos, para apoiar idosos que vivem sozinhos e isolados e que não pretendem ir para um lar.

“Penso se daqui por uns anos gostaria de ir para um lar. A resposta é negativa. Se puder estar até aos 90 em casa, prefiro estar em casa", nota. "Eu vejo o orgulho que eles têm nas coisas de casa, enquanto no lar as coisas não são deles, o quarto é partilhado, a sala onde comem é partilhada. Em casa fazemos o queremos.”

A responsável da Rugas de Sorrisos conta que tem o apoio da GNR. “Foram eles que fizeram a ponte com o Sr. Zé e que me apoiaram desde o início.” José confirma: “Ela apareceu aqui com dois guardas à porta, ofereceu-me ajuda e eu aceitei.”

José não casou nem tem filhos. Herdou uma deficiência num pé que lhe dificulta o passo. No entanto, recusa sair da Aldeia de Santo Inácio para ir para um lar. Trabalha como sempre, na agricultura. “Se estivesse sempre deitado e sentado já me tinham levado para o lar. Vale mais ir para a sepultura. Estou na minha casa. Só precisava de uma companhia para me ajudar.”

Vive numa pequena moradia sem luz nem água. “Tem uma caminha e uma lanterna para ver, nem luz nem água, mas vamos buscar à fonte”, explica Helena, que há pouco tempo conseguiu que José tivesse direito a reforma, graças ao apoio da Rugas de Sorrisos. “Preencheu as folhas da Segurança Social e agora tem aquilo que é de direito por lei”, revela a dinamizadora do projeto, debaixo dos agradecimentos de José. “Ela esteve quatro horas na Segurança Social. Eu não tinha paciência e agora, para levantar o dinheiro, é ela que vai comigo e assim saio um bocadinho daqui”, sorri.

"Passo dias que não vejo ninguém"
Helena percorre o concelho de Trancoso. A próxima paragem é Castaíde. É hora do almoço. “Vou cozer bacalhau com repolho e comprei feijão verde para fazer a minha sopinha, sem sopa não passo”, refere Maria Luísa, viúva há 4 anos.

Tem 76 anos e o gosto pela cozinha e pela costura. Recebe diariamente os telefonemas das três filhas que estão em Viseu. Ir para um lar está fora de questão. “Enquanto tiver a minha Leninha não vou. As minhas filhas tinham medo que eu estivesse aqui sozinha e que caísse. Isto é muito pequenino e está sem ninguém. Eu passo dias que não vejo ninguém, o quintal é que me distrai”, conta à Renascença.

Maria Luísa admite que estar sozinha não é fácil, mas contrapõe que a Helena e a associação Rugas de Sorrisos deram cor aos seus dias. “Faz muita coisa, faz companhia, faz muitos divertimentos, teatros muito lindos, passeios e ainda agora fizemos aqui uma grande sardinhada na minha cozinha que foi um espetáculo”, recorda com emoção.

Do alto dos seus 76 anos, Maria Luísa ainda tem muito para ensinar e Helena aprende. ”Já aprendi a coser”, partilha. Maria Luísa ensina-lhe pontos de costura e, em troca, recebe ajuda. “Não vejo o buraco da agulha, ajudas-me? Vais buscar o dedal?”

"A Helena tem-nos dado vida"
Maria Augusta da Ressurreição, viúva de 85 anos com dois filhos, esquece os nervos e prepara a próxima atuação musical dos utentes da associação Rugas de Sorrisos, com a música tradicional “Liga Amarela”. “Não sei se sou capaz, estou a esquecer a letra”, diz desanimada para Helena, que a incentiva a prosseguir. Canta a música toda sem enganos. “Vê como sabe...”

Em Sintrão, Maria Augusta, é das poucas habitantes que por ali resiste na companhia da Fofinha, uma cadela que lhe faz companhia "noite e dia". Atira-lhe o patinho de borracha que guincha a cada mordidela. “Ir para um lar não quero, por enquanto ando pelo jardim, e depois logo se verá, mas Nosso Senhor vai chamar-me antes de ir para o lar”, desabafa.

Para já não há motivos de preocupação, porque existe a Helena e a sua associação, defende Maria Augusta. “Ela faz-nos companhia, ajuda-nos nas tristezas, nas mazelas, faz-nos festas quando é dos anos, fazemos um almoço bom e quando precisamos dela ela vem. Está no meu telemóvel. Liga-me para saber como estou. Ela gosta muito disto e de nos acompanhar e de nos fazer alegres. A Helena tem-nos dado vida e nós precisamos, depois de passar dias inteiros sem ver ninguém, a televisão é a companhia.”

Projeto tem apoio da Junta e da Misericórdia
Helena segue viagem numa carrinha que, por vezes, é emprestada pelo padre Joaquim Duarte, 62 anos de vida e há 26 em Trancoso.

“É uma mais-valia para as situações de isolamento, um projeto aliciante, em que a Helena propõe ela própria acompanhar as pessoas e ajudá-las, e por isso temos ajudado, na medida das nossas possibilidades, por exemplo, quando é preciso transporte de algum grupo de idosos, emprestamos uma carrinha da paróquia”, revela o padre Joaquim, que é também o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Trancoso.

Tem à sua responsabilidade três lares com 150 idosos. “Há muita gente para quem o último recurso é o lar, mas os lares são um mal necessário, entre aspas, porque as famílias às vezes estão longe, têm os seus trabalhos, é um bocadinho difícil, mas é também um desafio para os lares prestarem um serviço bom, ajudarem a manter a autoestima [dos idosos], mantê-los ocupados.”

O padre Joaquim não é o único apoiar o projeto Rugas de Sorrisos. O presidente da Junta de Trancoso, André Pinto, também acredita na iniciativa de Helena Saraiva. “Eu fiz um contrato de trabalho numa fase inicial, porque ela tinha dificuldade em que as pessoas abrissem a porta de casa. O logo da Junta, e depois o apoio da GNR, abriram-lhe o caminho. O projeto tem pernas para andar, porque é ela que vai ter com as pessoas”, defende.

Mas era preciso um mecenas que não deixasse morrer a Rugas de Sorrisos. Helena Saraiva não sabe que futuro terá o projeto. “Foi implementado primeiramente de forma gratuita, mas atualmente precisamos de ajuda financeira e de mais pessoas no terreno, porque eles já começaram a pagar uma mensalidade, que ronda os 30 a 40 euros, que não é muito, mas para eles é", desabafa. "Precisávamos de alguém que apadrinhasse o serviço, porque eu gostava que fosse gratuito. Antes tinha 24 utentes, agora tenho 12, porque se paga uma mensalidade.”

Todas as ajudas são bem-vindas para manter um serviço de apoio aos tantos idosos que vivem sozinhos e isolados e que não querem ir para um lar porque a casa é especial.
Basta um "Bom dia, como está?" para que não se sintam esquecidos. “Amanhã venho cá outra vez”, garante Helena ao despedir-se de José Aguiar, que remata: ”Estou sempre à espera dela. Saio de casa de manhã, sento-me ao sol, fico sempre a olhar para o caminho a ver se a vejo chegar.”

No distrito da Guarda há 92 homens e 174 mulheres a viverem completamente sozinhos e isolados, mas o total de idosos em situação considerada vulnerável corresponde a 1032 homens e 2900 mulheres, segundo dados da GNR, no âmbito da Operação “Censos Sénior 2017”.

Contactada pela Renascença, a GNR declarou que “considera que todas as instituições que trabalham com os idosos que vivem sozinhos e/ou isolados são uma mais-valia no apoio a este público-alvo”.