5.7.22

Mais de vinte médicos de hospitais de Lisboa investigados por falsificarem entradas e saídas ao serviço

Sónia Trigueirão, in Público

Com origem numa denúncia de outro clínico, a investigação do Ministério Público teve início em 2019 e ainda não está concluída. Ou seja, os profissionais em causa ainda não foram acusados. Falsidade informática e burla são alguns dos crimes que podem vir a ser-lhes imputados.Mais de duas dezenas de médicos de hospitais do centro de Lisboa foram constituídos arguidos por picarem o ponto uns pelos outros, enganando assim o sistema de controlo de assiduidade. Todos continuam em funções, situação que poderá vir a manter-se até ao desfecho do respectivo processo judicial.

Com origem numa denúncia de outro clínico, a investigação do Ministério Público teve início em 2019 e ainda não se encontra concluída. Ou seja, os profissionais em causa ainda não foram acusados. Falsidade informática e burla são alguns dos crimes que podem vir a ser-lhes imputados.

Na sequência desta denúncia, a Polícia Judiciária realizou buscas nalgumas das unidades de saúde que compõem o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), que inclui o Hospital de São José, a Maternidade Alfredo da Costa, o Hospital de D. Estefânia, o Hospital de Santa Marta, o Hospital dos Capuchos e ainda o Curry Cabral.

Trata-se de um agrupamento onde trabalham cerca de dois mil médicos e que, apesar do risco de fraude que tal pode constituir, mantém em funcionamento simultâneo dois sistemas de controlo de assiduidade: um mais antigo e com características semelhantes ao que funciona na Assembleia da República, que implica que o profissional de saúde introduza uma password no seu computador quando inicia o dia de trabalho, e outro mais recente que passa pela utilização da impressão digital, o chamado sistema biométrico.

A alegada fraude terá sido realizada através do primeiro sistema: os médicos forneceriam as suas passwords de acesso à aplicação informática Sisqual uns aos outros, supostamente para iludirem o controlo de presenças.

O caso encontra-se em segredo de justiça para terceiros, embora os visados e respectivos advogados já tenham tido acesso aos dados recolhidos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, dado já terem sido esgotados os prazos de prorrogação do sigilo judicial no que a estes interessados diz respeito.

Contactado pelo PÚBLICO, fonte do gabinete de comunicação do CHULC disse que não comenta matéria que se encontra sob segredo de justiça.

Porém, a mesma fonte explicou que o centro hospitalar possui um sistema biométrico, introduzido em Janeiro de 2019, sendo este o meio preferencial de registo de entradas e saídas nesta data e que o sistema esteve suspenso (neste e noutros centros hospitalares, conforme recomendou a Ordem dos Advogados), por efeito da pandemia, entre Março de 2020 e Novembro de 2021.

“Recorda-se que este centro hospitalar possui cerca de 8300 profissionais que circulam por seis unidades, tão distantes entre si como o Hospital de São José e o Hospital de Curry Cabral, circunstância que justifica a manutenção de um registo redundante por entrada na rede informática”, sublinha a fonte do gabinete de comunicação do CHULC.

Médicos contestam sistema biométrico

Na origem da manutenção dos dois sistemas em funcionamento está a forte oposição, especialmente dos médicos, à abolição do mais antigo, ao contrário do que já sucede noutros hospitais de Lisboa, em que apenas vigora o biométrico. Até ao fecho desta edição não foi possível saber se a Ordem dos Médicos já abriu algum procedimento disciplinar aos profissionais visados nesta investigação.

A contestação dos médicos ao sistema biométrico surgiu há décadas. Já em Setembro de 2007, o então ministro da Saúde, Correia de Campos, se viu a braços com a forte oposição dos médicos, apoiada inclusivamente pela própria Ordem, quando tentava introduzir este método de controlo de assiduidade nas unidades de saúde.

O então bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, criticou ferozmente a ideia do Governo, defendendo que o sistema automático de registo da assiduidade e pontualidade a aplicar em todas as unidades hospitalares iria diminuir a produtividade.

“Qualquer aluno de gestão do primeiro ano sabe que um controlo que provoca rigidez diminui a produtividade. Temos a certeza de que o Ministério encontrou outra forma de poupar dinheiro que é diminuir o que os médicos fazem, ao tratar menos doentes. Só temos que dar os parabéns ao ministro por esta esperteza”, referiu o bastonário.

Mas não ficou sem resposta: “Não sei em que manual de economia se baseia esse fundamento”, ironizou Correia de Campos.

Em Julho de 2013, a Inspecção-geral das Actividades em Saúde (IGAS) descobriu que houve médicos a receber indevidamente remunerações extraordinárias por cirurgias que afinal realizaram durante o horário normal de trabalho.

Segundo o documento da IGAS, que teve como objectivo avaliar a “regularidade dos pagamentos das remunerações” em 19 hospitais e unidades locais de saúde – que em 2010 tiveram uma despesa de 80 milhões com os salários brutos de 573 médicos –, “a produção adicional quando realizada dentro do tempo normal de trabalho demonstra que a ‘actividade normal’ teria capacidade suficiente para dar satisfação às necessidades da procura”.

No que diz respeito à avaliação dos custos estimados resultantes das situações potencialmente irregulares, a IGAS detectou um valor superior a 1,3 milhões de euros, correspondente a seis médicos.

E, no fim do relatório, a IGAS concluiu que a falta de utilização do sistema de registo biométrico para controlo da assiduidade potenciou algumas destas irregularidades, que as unidades na altura já estariam a corrigir.

Chegados a 2022, passados quase 15 anos do despacho do então ministro da Saúde Correia de Campos, que determinava que todas as unidades hospitalares da região norte deviam implementar em Outubro de 2007, o controlo biométrico da assiduidade e pontualidade dos funcionários, e que até ao final desse ano ele devia estar a funcionar em todos o país, ainda há hospitais onde o sistema coexiste com o método antigo, como é o caso do CHULC.