11.11.22

Homens portugueses cuidam mais dos filhos mas por pouco tempo

Ana Cristina Pereira, in Público

Inquérito europeu mostra que participação dos homens na prestação de cuidados a crianças até 12 anos cai a pique quando em causa estão quatro horas ou mais

Pode haver uma ilusão de partilha equitativa quando se fala em passar uma hora por dia a cuidar de filhos ou netos com menos de doze anos. Essa ilusão desfaz-se quando o parâmetro é quatro horas ou mais. Portugal passa de país com maior paridade para país com maior disparidade de género, a esse nível, da União Europeia (UE).

O Instituto Europeu da Igualdade de Género (EIGE na sigla inglesa) fez um inquérito online para apurar a partilha de tarefas relacionadas com a família e com a casa antes (Fevereiro-Março de 2020) e durante (Junho-Julho 2021) a pandemia. Envolveu então um total de 42.300 pessoas com idades compreendidas entre os 20 e os 64 anos, formando uma amostra representativa de cada Estado-membro (não listou números por país).

Primeira ideia-chave do estudo divulgado a semana passada, no primeiro Fórum Europeu da Igualdade de Género, em Bruxelas: a covid-19 não trouxe uma mudança significativa em matéria de prestação de cuidados, as tarefas relacionadas com crianças e maiores dependentes continuaram a ser exercidas predominantemente por mulheres.

O relatório europeu começa por revelar níveis semelhantes de envolvimento na prestação de cuidados. Na crise de saúde pública, 90% das mulheres e 86% dos homens com filhos ou netos com menos de 12 anos a cargo dedicaram-lhes pelo menos uma hora por dia. Já antes era assim. O indicador, no que aos homens diz respeito, oscilava entre 17% na Áustria e 92% em Portugal e na Eslováquia.

Blandine Mollard, perita do EIGE, olha para os resultados de Portugal – com 92% dos inquiridos e 97% das inquiridas a declarar passar, pelo menos, uma hora por dia a cuidar dos filhos ou netos pequenos – e não expressa qualquer surpresa. A boa posição é consistente com estudos anteriores. “Quando se pergunta a homens e mulheres da população adulta em geral (com ou sem filhos/netos) se passam uma hora ou mais todos os dias cuidando de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, a proporção de homens que responde sim é em Portugal 3% superior à média da UE”, exemplifica, aludindo a um estudo datado de 2016 (a diferença naquela altura era de 28% para 25%).

A disparidade emerge quando se alarga o tempo. Num dia de semana, 40% das mulheres e 21% dos homens com filhos ou netos com menos de 12 anos gastam quatro ou mais horas por dia a cuidar deles. Portugal e Alemanha registam a maior disparidade (30%). Chipre, Finlândia e Malta a menor (24 pontos).

“As desigualdades persistem, com as mulheres muito mais propensas a arcar com a alta intensidade de prestação de cuidados às crianças”, resume a perita. Nos adolescentes entre os 12 e os 18 anos, a disparidade é menor: 20% das mulheres e 14% dos homens da União Europeia dizem despender quatro horas ou mais.

Não é só a duração. O que se faz com o tempo também importa, como diz Manuel Abrantes, do SOCIUS/CSG – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações. O último estudo nacional sobre o uso do tempo, feito por este e outros investigadores em 2015/2016, mostrou que a maior disparidade se relacionava com a prestação de cuidados físicos às crianças, como dar de comer e dar banho. Os homens investiam mais nas actividades de natureza lúdica, como ler, brincar, conversar.

Este estudo não permite perceber o uso do tempo com esse nível de detalhe. Mostra, ainda assim, que, na pandemia, em que várias vezes o ensino passou a ser ministrado à distância, através de tecnologias, houve mais mulheres (55%) a assumir mais a responsabilidade pelo apoio escolar do que homens (27%). O mesmo aconteceu em relação à gestão dos horários (55% para 25%).

Diferentes percepções

Homens e mulheres não pintam o mesmo retrato da vida doméstica. Em Junho/Julho de 2021, mais de metade das mulheres (52%) com crianças disseram ser totalmente ou quase totalmente responsáveis pelo seu cuidado. Ora, 23% dos homens referiram isso sobre si próprios e só 31% sobre as parceiras.

Parece haver uma diferente ideia de partilha: 32% das mulheres e 44% dos homens com crianças pequenas afiançam partilhar responsabilidade parentais de forma mais ou menos equitativa. Um pouco menos do que antes (33 e 43%, respectivamente).

Em matéria de partilha equitativa, a idade é um marcador positivo: entre as mulheres mais jovens (20-34) a proporção é maior (44%). A participação no mercado de trabalho também o é. Ter um parceiro fora do mercado de trabalho, porém, não oferece garantias. Cerca de 40 % das mulheres com parceiro desempregado afiançam ser as principais cuidadoras das suas crianças. O mesmo alegam 34% dos homens com a parceira desempregada.

O mesmo inquérito debruça-se sobre as desigualdades na partilha de tarefas domésticas. “Os homens tendem a assumir trabalhos não rotineiros e tarefas administrativas, como pagar contas, fazer reparações, tratar da manutenção do carro”, lê-se no documento. “As mulheres geralmente cozinham, limpam, tratam da roupa.”

Nesse contexto desigual, a maior parte das mulheres e homens já dizia despender uma a quatro horas por dia em tarefas domésticas. Com a pandemia, aumentou a percentagem de mulheres (18 para 20%) e de homens (11 para 12%) que gastavam mais de quatro horas, alargando a desigualdade de género.

Nesta esfera, o envolvimento dos homens portugueses é inferior à média da UE. Como lembra Blandine Mollard, também aqui os resultados estão em linha com estudos anteriores. “O facto de, durante a pandemia, cerca de 35% das mulheres e 18% dos homens em Portugal terem reportado gastar 4 horas ou mais no trabalho doméstico é consistente com a conclusão geral do relatório de que as exigências do trabalho doméstico têm aumentou durante a pandemia devido a mais tempo gasto em casa e menor acesso a serviços externos”, comenta.

Esta desigualdade não é inócua. “Isto tudo tem reflexos na participação das mulheres no mercado de trabalho”, sublinha Ana Sofia Fernandes, presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres. “Tudo isso tem consequências nas remunerações, na progressão na carreira, nas pensões.”

Na opinião do sociólogo Manuel Abrantes, “Portugal está numa encruzilhada”. “Há aqui factores económicos, sociais e institucionais e todos são negativos”, sintetiza. A economia está dependente de sectores que levantam problemas de conciliação com a vida familiar, pelos salários que praticam, pelos horários que exigem. “Portugal tem uma economia baseada em baixos salários, o que não permite contratar serviços”, salienta. “Se a família for jantar fora, ninguém precisa de cozinhar.” Isso conjuga-se com “a insuficiência de oferta pública” de serviços de prestação de cuidados, sobretudo destinados as pessoas adultos dependentes – as pessoas com deficiência e os idosos. E com a força dos papéis de género. “O país demora imenso a desistir da ideia que há tarefas específicas masculinas e tarefas específicas femininas.”

Ana Sofia Fernandes lembra que, ao longo dos anos, “foram implementadas várias políticas que visam uma maior participação dos homens na esfera do cuidado, designadamente através das licenças de paternidade obrigatória”. As mentalidades, todavia, tardam em acompanhá-las. Para resolver isso, faz duas sugestões: “licença parental igual para ambos os progenitores, salvaguardando o tempo que as mulheres precisam para recuperar do parto”. E “um sistema de educação que fomente, desde as idades mais jovens, uma educação para a autonomia e para o cuidado”. Rapazes e raparigas deviam aprender “questões básicas de sobrevivência”, como cozinhar e a tratar da roupa.