11.11.22

Sandra Araújo: a fiel jardineira

Alexandra Tavares-Teles, in Notícias Magazine

A infância africana, livre, na companhia da praia e do mar, confrontou-se a certa altura com uma gélida aldeia da Guarda. Gosta de flores e de mexer na terra. Dedica-se há 28 anos a combater a pobreza.

“Muito honrada e reconhecida” pelo convite, mas também “muito assustada”, diz Sandra Araújo. “Sinto o dever e o peso da responsabilidade. Tenho todos esses medos.”

“Os pobres estão no meio de nós”, escreveu o Papa Francisco, em 2021, por ocasião do dia da Pobreza, acrescentando as palavras inflamadas de Primo Mazzolari, proferidas em 1949: “Os pobres, eu nunca os contei, porque não se podem contar: os pobres abraçam-se, não se contam”. Ninguém melhor que Sandra Araújo para entender o padre italiano.

Os medos não a bloqueiam. “A Sandra tem um conhecimento único em Portugal nestas áreas. Foi escolhida exclusivamente pela sua competência e não por engajamento partidário”, afirma Agostinho Jardim, pároco de duas paróquias do Centro Histórico do Porto e presidente da Rede Europeia Anti Pobreza (EAPN Portugal). Quando a ministra do Trabalho e da Segurança Social lhe telefonou a perguntar se estaria disposto a ceder a sua diretora-executiva, “porque precisava muito dela”, percebeu que ia perder “uma grande profissional”.

A nova coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 tem 28 anos de experiência. Nas novas funções, irá zelar pela correta aplicação das políticas públicas que visam combater o flagelo. “Esgota-se a trabalhar. Muito interessada, muito disponível, muito capaz de aguentar a pressão”, acrescenta Agostinho Jardim. “Atenção”, também avisa, “a Sandra é muito senhora do seu poder”.

Nasceu em Moçambique, filha de uma professora primária e de um eletricista. A infância africana, livre, na companhia constante da praia e do mar, confrontou-se a certa altura com uma gélida aldeia da Guarda. A menina retornada pedia manga e papaia. A avó materna apresentava peras e maçãs. No aeroporto de Lisboa, recebeu as primeiras surpresas. “Percebi que não havia nem Coca-Cola nem dinheiro para a comprar.” Uns anos mais tarde, já com os pais estabelecidos, pôde então pedir num restaurante “uma omeleta de camarão”.

Foi boa aluna. “Muito curiosa esteve sempre entre os melhores alunos da escola”, lembra-se a assistente social Lurdes Bandeira, amiga de adolescência. Anos marcados por um pequeno desgosto: “Queria muito ser bailarina, mas não havia dinheiro para uma escola de ballet”. Dançar “era uma libertação”. Ainda hoje, mãe de bailarina, não resiste à música pop dos anos 1980 e 1990.

Desejou ainda ser hospedeira, pela vontade de viajar, aguçada pelos dois meses que passou em New Jersey (EUA), a convite de um tio paterno. Tinha 17 anos. “Viajar e conhecer outros mundos faz tão bem”, diz. Mas os pais desejavam para a filha a segurança de um curso de Direito. Acedeu. Tentou Coimbra e não entrou. Por mero acaso, descobriu a assistência social. “Levou-me com ela e acertámos em cheio”, conta Lurdes. “ O curso é a cara da Sandra.”

Iniciou a carreira técnica em 1992 no Projeto de Luta Contra a Pobreza, no Centro Histórico de Gaia, visita frequente de casebres, aglomerados clandestinos da escarpa da serra do Pilar. Foram assim os inícios “de 28 anos de fidelidade a um trabalho que muitas vezes traz frustração, mas que, migalha a migalha, ajuda a mudar um bocadinho o mundo”, realça Sandra.