Mariana Duarte (em Pergine), in Público on-line
Trabalho, tempo livre, preguiça. Para Nina Power, teórica social e filósofa inglesa, é preciso repensar estes conceitos de modo a tentar transformar o sistema capitalista e as suas políticas laborais. No fundo, tentar viver numa sociedade mais justa e equilibrada.
Encontrámo-nos com Nina Power na pequena comuna italiana de Pergine Valsugana num fim-de-semana de Julho. A teórica social e filósofa inglesa de 38 anos foi uma das oradoras da conferência Happiness Calling, integrada no Seminário Internacional sobre Trabalho e Felicidade, um projecto coordenado pela estrutura portuguesa Artemrede em conjunto com parceiros internacionais e com direcção artística da companhia Mala Voadora.
Estávamos a vinte minutos de Trento e a três horas de Milão, cidade que nos anos 70 fervia com o movimento revolucionário italiano da Autonomia Operária, sedento de uma sociedade de trabalho – e de uma vida – pós-capitalista. Passados mais de 40 anos, Nina Power fala-nos mais ou menos do mesmo: da urgência em encontrar novas formas de olhar o trabalho, o tempo livre e a felicidade, numa sociedade em que o trabalho “tem uma característica religiosa ou pós-religiosa” e a preguiça “um estigma moral”. “O trabalho está a permear todos os aspectos da nossa vida”, diz ao P2.
A autora do livro One Dimensional Woman (2009, Zero Books), também professora associada de filosofia na Universidade de Roehampton e tutora no The Royal College of Arts, em Londres, acredita que uma mudança pode acontecer, mas que tem de ser “estrutural e colectiva”. E isso passa também por políticas laborais de esquerda, feministas e solidárias, que ajudem a valorizar monetariamente e eticamente os trabalhos mais importantes para “sustentar o tecido social e humano”. “Talvez seja preciso uma revolução na compaixão.”
O trabalho tornou-se central para a nossa identidade e para definir aquilo que entendemos por realização pessoal. A distinção entre vida, tempo livre e trabalho está cada vez mais diluída. Escreveu em One Dimensional Woman que hoje somos uma espécie de “CV andantes”. Como chegámos até aqui?
Se quisermos pensar nisto através de uma perspectiva histórica marxista clássica, inicialmente as pessoas foram afastadas à força das terras que detinham e onde viviam de forma sustentável. Historicamente foram-nos sendo impostas cada vez mais barreiras a uma vida de trabalho autónoma. Temos de trabalhar para outrem, para o lucro de outrem, de modo a conseguirmos ter dinheiro para viver. De certa forma, foi-nos tirada a sustentabilidade. Ao que me referia [com a expressão “CV andantes”] era a uma imagem mais contemporânea. À ideia moralista e moralizadora em redor do networking, de que toda a gente tem de estar a vender-se a toda a hora. Não precisas apenas de trabalhar: tens de estar sempre à procura de trabalho, tens de te apresentar como um potencial trabalhador ou empreendedor. A expressão é bastante hiperbólica porque estava a escrever um livro polémico [risos], mas o objectivo era sublinhar esta ideia de que o trabalho está a permear todos os aspectos da nossa vida. E combater essa imagem do bom trabalhador, particularmente a imagem genderizada a que me referia nesse capítulo. A imagem da mulher jovem bem-sucedida que estava a ser apresentada como o paradigma do trabalhador que produz conhecimento.
Podemos ver essa imagem no chamado “feminismo corporativo” do século XXI. A ideia de que se uma mulher se esforçar e tiver ambição consegue um bom emprego. Isto não leva em conta questões de privilégio, raça, classe ou a discriminação de mulheres trans. No fundo, ignora todo o sistema institucionalizado de opressões intercruzadas que impede muitas mulheres de chegar a cargos de poder.
Sem dúvida. E tem ficado mais extremo ao longo dos anos. Vemos isso em mulheres como a Sheryl Sandberg [directora de operações da rede social Facebook e autora do livro Lean In: Women, Work and the Will to Lead], apologistas da cultura do lean in, ou seja, desta ideia de que as mulheres têm de se esforçar mais… Eu sou muito resistente à ideia de que conformarmo-nos e ajustarmo-nos ao capitalismo é feminismo. O facto de haver algumas mulheres privilegiadas que se tornam bem-sucedidas dentro da estrutura capitalista leva muitas pessoas a dizer que o feminismo já não é preciso, o que para mim está totalmente errado.
Quando escreveu o One Dimensional Woman parecia bastante desapontada com os movimentos feministas.
Sim, mas isso foi há muito tempo. Algum do material foi, inclusive, escrito antes da data de publicação do livro. Nessa altura havia todo o contexto da crise económica mundial, um período estranho em que não parecia haver muita coisa a passar-se… Mas muito mudou desde então. Estou muito mais optimista. Há muito activismo a acontecer, há cada vez mais grupos de oposição colectiva, sobretudo de feministas não brancas. E há o facto de estas questões estarem a ser mais discutidas, ou a terem mais visibilidade. Eu já não gosto muito desse livro [One Dimensional Woman]. É um livro polémico que escrevi quando tinha vinte e tal anos. O material sobre a questão do trabalho é bastante bom, mas politicamente é muito crítico; não é particularmente útil. Já não é muito relevante. Tenho escrito bastante sobre feminismo desde então.
Voltando à questão do trabalho: reduzir o horário de trabalho foi uma das lutas principais dos movimentos laborais e de esquerda radical durante décadas. Keynes calculou que em 2030 teríamos uma semana laboral de 15 horas. Mas está a acontecer o contrário. Trabalhamos muitas vezes além do horário estabelecido por lei e há uma pressão dos patrões para tal. Alguma coisa falhou na esquerda e nos movimentos laborais na luta contra o capitalismo?
Não culparia a esquerda em primeiro lugar. É preciso pensar sobre a estrutura do capitalismo, sobre a imposição destas ideologias e obrigações morais e, antes de mais, pensar na resistência. Os movimentos laborais e os sindicatos foram esmagados deliberadamente. A oposição real que existe contra eles é tão extrema, tão forte… Basta pensar nas greves dos mineiros em Inglaterra nos anos 80, por exemplo, na força e violência bruta e total do estado contra eles. Claro que podemos falar em vários falhanços nos movimentos laborais, mas acho que o que está contra eles é muito forte. Uma das coisas que têm acontecido cada vez mais e que são das mais problemáticas nesse aspecto é a fragmentação do trabalho, que conduz à separação da força laboral. Por exemplo, nas agências de trabalho temporário. É muito difícil organizares-te, de uma maneira clássica, contra as fracas condições de trabalho e respectivos salários baixos.
Ou seja, o conceito de classe trabalhadora é, hoje, algo mais alargado e complexo.
Exacto. Dentro da classe trabalhadora temos de falar de mulheres, temos de falar de mulheres não brancas, temos de falar de pessoas com deficiências… Portanto, temos de falar de um conceito de classe trabalhadora mais amplo. Como dizia há pouco, no que toca à fragmentação do trabalho, em alguns casos nem sabes sequer quem são os teus colegas. E isso tem acontecido cada vez mais, com o trabalho na internet, como o modelo da Amazon dos mechanical turks [os chamados "trabalhadores da cloud", pessoas de todo o mundo que, de modo anónimo e frequentemente precário, desempenham tarefas online]. Por outro lado, os movimentos laborais têm sido muito antiquados em alguns sentidos. Não estão a conseguir responder a estas novas formas de trabalho.
Considera, então, que tem de haver uma actualização nas políticas de apoio laboral?
Com certeza. Uma das maneiras de o fazer, como propôs [a teórica feminista e investigadora] Helen Hester no debate [conferência que decorreu em Pergine], é centrar na discussão o trabalho de prestação de cuidados. O tipo de trabalho que não pode ser automatizado, isto é, feito por máquinas e robôs. Seja cuidar de bebés, pessoas doentes, idosos… Tem de haver uma reavaliação do que é o trabalho e uma revolução na maneira como pensamos que trabalhos são mais importantes. Por que razão o salário dos enfermeiros, por exemplo, é cem vezes menos do que o dos banqueiros? É absurdo. Os trabalhos de prestação de cuidados devem ser considerados dos mais valiosos porque sustentam o tecido social e humano, porque mantêm a humanidade viva. Talvez seja preciso uma revolução na compaixão. Nesse sentido, é bastante interessante ver que nas últimas eleições em Inglaterra o [líder trabalhista] Jeremy Corbyn ficou muito perto dos conservadores. As suas políticas e o seu carácter representam esta visão socialista, humanista e democrática em que se sublinha o cuidado e a educação. E isso foi muito apelativo para muitas pessoas. Corbyn tornou-se numa figura forte, sobretudo para os jovens, precisamente por ser generoso e solidário. Portanto, há esperança.
E o próprio Corbyn tem prestado alguma atenção a questões feministas.
Sim. Não é perfeito, mas acho que mostra como há aqui uma possibilidade de intervenção por parte da esquerda enformada por um discurso feminista. O feminismo fala destas questões há muito, muito tempo. As propostas que se faziam, sobretudo nos anos 70, dos salários para as trabalhadoras domésticas não resolvem os problemas, mas acabam por revelar a maneira como o operário clássico estava e ainda está, em muitas situações, dependente de todo o trabalho não pago feito pela mulher em casa. Com a tecnologia e a automação há a oportunidade de valorizar e repensar certos trabalhos. Não sei como vai acontecer, mas acho que um dos caminhos é a esquerda apostar em políticas feministas, atentas também a questões de raça e à globalização – porque estamos a falar, no trabalho doméstico e no trabalho de prestação de cuidados, de uma força de trabalho composta por muitos imigrantes que são muito mal pagos e que têm de deixar as suas famílias para trabalhar noutro país.
Se esses trabalhos fossem mais valorizados monetária e eticamente, e fossem encarados como trabalhos passíveis de serem feitos por toda a gente, talvez fosse possível desconstruir os estereótipos sociais e de género que lhes estão associados.
Sem dúvida. O género enquanto força histórica social tem posicionado a mulher como prestadora de cuidados, mas não há razão nenhuma para que os homens não devam ou não possam fazer mais esse trabalho também.
Isso implicaria uma mudança na educação. É também em casa e na escola que são reforçados as construções e as expectativas sociais de género. Faz tudo parte de uma sociedade patriarcal…
Claro. Acho que a educação é uma parte essencial disto, sim, e devia-se discutir feminismo nas escolas. Homens e mulheres não são ensinados de forma igual. Como desmantelar o patriarcado é uma questão muito difícil, mas passa por identificá-lo, assumir que vivemos num sistema patriarcal e tentar mudar isso desde cedo nas várias estruturas da sociedade.
Qual é a sua opinião em relação à automação do trabalho, que referiu há pouco?
Bem, tenho várias reservas… A automação depende de uma economia energética particular, o petróleo, que é finita e cuja extracção é prejudicial para o planeta. É provável que a automação destrua trabalhos antes de trazer qualquer vantagem para os trabalhadores. Se discutirmos a automação é imperativo discutir também como sustentar quem já não tem empregos – e é por isso que muita gente está a falar do rendimento básico universal neste momento.
Que tipo de problemas poderia o rendimento básico uUniversal atenuar?
É uma questão complicada. Temos de ser muito cuidadosos com o rendimento básico universal e as suas propostas, porque podem ser aplicadas de um ponto de vista de direita ultraliberal. Por exemplo, como uma desculpa para fechar fronteiras – “vamos dar um determinado dinheiro aos nossos cidadãos e a mais ninguém” – ou para se livrarem do Estado social, fazer subir as rendas, privatizar vários serviços. Estou mais interessada em medidas revolucionárias do que reformistas. O rendimento básico universal pode ser um passo positivo mas é, no fundo, um passo reformista. Interessa-me mais a redistribuição total dos recursos, em encontrar soluções que não visem apenas o lucro de outrem do ponto de vista capitalista, na completa reavaliação do nosso tempo livre.
Falou nisso na conferência, em como repensar a forma como vemos o tempo livre. Não como sinónimo de preguiça.
Sim. Quando as pessoas têm tempo para elas, não estão paradas a fazer nada. Fazem, na verdade, muitas coisas. Estão com as pessoas que gostam, lêem, conversam, têm oportunidade para construir projectos colectivos. É uma coisa muito capitalista pensar: “Se não estás a trabalhar então não estás a fazer nada.” É essa imagem de produção e produtividade que não é correcta, que não é equilibrada. Não podemos reduzir a actividade humana ao trabalho. Não é fácil mudar este tipo de pensamento. É uma ideologia e uma narrativa muito dominante e enraizada, mas não é impossível. Claro que o trabalho tem hoje uma característica religiosa ou pós-religiosa, mas há muitas pessoas jovens a começar a resistir a essa imagem do trabalho. Pode haver uma mudança colectiva, sobretudo estimulada por jovens com trabalhos precários, que têm contratos de zero horas, que são estupidamente mal pagos, que não vêem grande futuro no sistema actual.
Por outro lado, há também muito medo em questionar os patrões e os problemas estruturais da precariedade porque há a ameaça omnipresente de perder o emprego. E isso leva-nos, em muitas situações, a ser mais competitivos do que solidários.
É, mais uma vez, um requisito do sistema capitalista e do modo como funciona. Quando te candidatas a um trabalho e tens mil pessoas a fazer o mesmo és como que obrigado a ser competitivo, quer gostes ou não. Nos anos 80, e por aí em diante, a competição foi convertida em algo maravilhoso em vez de algo tóxico a que devemos resistir. É difícil recusar porque somos obrigados a participar nisso. Uma das bases desta questão é a ideia da escassez.
A própria população desempregada é usada como uma espécie de ferramenta disciplinar e chantagista pelos patrões contra os trabalhadores e contra a solidariedade entre eles.
Há sempre muitas pessoas que querem o teu emprego, portanto é difícil fazer exigências. Há uma espécie de reserva de força de trabalho à espera. E depois há o discurso de que não há empregos suficientes, não há dinheiro suficiente...Temos de desmantelar essa imagem de escassez porque há o suficiente, o problema é que algumas pessoas têm tudo ou têm mais do que deviam. E a maioria luta pelos restos. Se atacarmos esta questão da competitividade a nível teorético, temos de questionar este modelo.
O que se aplica também à retórica anti-imigração.
Exacto. Vê-se com o “Brexit”, com o discurso de Donald Trump, com os média de direita a dizer que não há espaço suficiente para toda a gente, que o país está cheio, etc. Claro que há. É a fantasia da escassez alimentada pela direita, que muitas das vezes tende a ter mais coisas mas que mesmo assim nunca é suficiente.
A meio desta conversa disse que talvez fosse preciso “uma revolução na compaixão”. Se calhar também é preciso uma revolução no que toca à avidez e à forma como encaramos a felicidade. A propósito: na conferência disse que Marx era um filósofo da felicidade.
Sim. Porque ele vai até à concepção grega de eudaimonia, ou seja, de florescimento humano. Porque ele vê de forma muito clara as possibilidades que o capitalismo retira aos indivíduos. O trabalho que fazes não é a tua identidade, é só uma pequena parte de quem tu és. É só uma possibilidade. Para existir uma mudança em larga escala, que vai demorar mesmo muito tempo a acontecer, tem de haver uma resposta estrutural e colectiva, não individual. Temos de pensar no que podem ser modos de vida diferentes e viver juntos, não em competição mas em cooperação. E claro que aí a questão da felicidade é central. Se não, qual é o objectivo disto?
A discussão não se resume à dicotomia trabalho vs felicidade.
É mais complexo do que isso. O discurso não deve ser resumido à oposição trabalho vs. ócio. Temos é de interrogar estas categorias filosoficamente e politicamente.
Criar outras imagens, outros conceitos.
Sim. Acho que a preguiça não deve ter um estigma moral. E como diz Oscar Wilde, “não fazer absolutamente nada é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual”. Deve haver espaço para o tédio, deve haver espaço para a falta de estimulação… Vivemos numa sociedade híper-estimulante. O tempo livre, a pausa e a ociosidade devem ser valorizados. Mas se for simplesmente como um prémio por teres feito trabalho remunerado isso também não está certo. Não é surpreendente que muitas vezes as pessoas respondam a terem feito muito trabalho que não queriam fazer com um desejo por uma espécie de intoxicação ou hedonismo, como se fosse um prémio para algo que te custou a fazer. Isso pode ser bastante tóxico e destrutivo. A mudança tem de passar mesmo pelo repensar de todos estes conceitos.