12.11.20

Nicolas Schmit. "A crise não pode ser a oportunidade para reduzir direitos"

Telma Miguel, in O Contacto

Emprego, quer que nos próximos meses a agenda social esteja no topo das prioridades para proteger os trabalhadores e os mais pobres da crise que se apresenta mais profunda, agora que a Europa volta a confinar.

Apresentada há 15 dias, a proposta de diretiva sobre salários mínimos adequados europeus é um dos primeiros objetivos do mandato do comissário europeu do Emprego e Assuntos Sociais, o luxemburguês Nicolas Schmit. Um salário mínimo digno no conjunto dos países da União Europeia, foi apresentado pela presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, como uma das prioridades para o próximo ano com a ideia de que é preciso que “o trabalho compense”. Na entrevista ao Contacto, Nicolas Schmit explicou os próximos passos do seu gabinete, quando já está a preparar para fazer avançar a agenda social com a presidência portuguesa da União Europeia, que se inicia a 1 de janeiro.

Quando a diretiva sobre um ordenado mínimo europeu foi anunciada, no início de 2020, houve quem pensasse que a ideia seria que todos os europeus iriam ter um salário mínimo semelhante. Afinal, do que se trata?

É verdade que pode ter havido equívocos porque usámos a expressão salário mínimo europeu. E não era exatamente isso. Era a proposta de um enquadramento para salários mínimos europeus adequados. E era este exatamente o projeto. Nunca foi sobre um ordenado europeu único, com o mesmo valor para todos, o que seria absolutamente impossível. Os intervalos entre os ordenados mínimos nos vários países variam de 1 a 7, por isso não podíamos elevar os mais baixos para o nível do Luxemburgo ou apenas reduzir o nível do Luxemburgo para algo no meio. A proposta de diretiva sempre foi sobre criar um enquadramento para reduzir estes intervalos, mas admito que possa ter sido mal interpretada. E, além disso, há limites para aquilo que podemos fazer. Os tratados não dão poderes à Comissão Europeia para definir salários. De certa forma, temos um conjunto de competências limitadas e usámo-las até ao máximo do que é possível. Se as tivéssemos ultrapassado arriscávamo-nos a enfrentar dificuldades processuais no Tribunal de Justiça.

O que vai isto significar para os trabalhadores portugueses e para os trabalhadores luxemburgueses?

Usei a expressão “dinâmicas positivas”, o que se refere tanto a salários mínimos como a salários em termos gerais. Vimos que em Portugal o governo decidiu aumentar o salário mínimo. E, a propósito, Portugal é o país em que o salário mínimo atinge os 60% (percentagem em relação à média dos salários do país, um dos instrumentos de avaliação na proposta de diretiva da Comissão). E consegue isto, embora não seja o salário mínimo mais alto da UE – está mais ou menos na metade inferior. O que nos dá também uma boa ideia da estrutura dos ordenados em Portugal, que é de ordenados bastante baixos no seu todo. E é por isso que o ordenado mínimo não está assim tão longe do ordenado médio. Agora, o governo português já anunciou o ajustamento do seu ordenado mínimo e vão de certeza com esta ideia à frente. E por isso, não diria que para Portugal esta proposta de diretiva seja um assunto relevante, porque o Governo está empenhado em rever o ordenado mínimo e adaptá-lo.

O Luxemburgo tem o ordenado mínimo mais elevado da União Europeia (2.142 €) mas, ao contrário de Portugal, está abaixo dos 60% da média de todos os ordenados no país. Com o novo governo houve um aumento. E o Luxemburgo tem um sistema em que o ordenado mínimo é adaptado à evolução geral dos salários a cada dois anos. Acho que este sistema deve continuar, pode haver ajustamentos, mas não espero grandes mudanças aqui. Tem havido um debate no Luxemburgo sobre o nível de 60%. Mas o nível de 60% não é um elemento obrigatório desta diretiva porque se se usar, Portugal está bem. E a Bulgária, com um dos ordenados mínimos mais baixos da Europa (312€), também atinge os 60%. E no Luxemburgo o salário mínimo está a cerca de 52% da média salarial. Por isso, esta ideia de que o ordenado mínimo cumpre o seu papel se estiver acima dos 60% da média dos ordenados não é um aspeto obrigatório da diretiva. O que tem que se verificar é se o nível de ordenado mínimo permite uma qualidade de vida decente. E se se pode considerar que um trabalhador que aufere um ordenado mínimo não é excluído da vida social. Há um debate no Luxemburgo sobre o limiar da pobreza. E qual o rendimento que é necessário para não se ser excluído da sociedade. Por outro lado, além do salário os benefícios sociais devem ser considerados.

E isto também está previsto nesta diretiva: ao estabelecer um ordenado mínimo também se deve ter em consideração os aspetos fiscais. O ordenado mínimo já não é taxado e era taxado antes. Todos estes elementos têm que ser tomados em consideração. Mas diria que esta diretiva não terá um efeito imediato e relevante nem no Luxemburgo nem em Portugal.

E na Europa acha que a adoção da diretiva teria um efeito transformador?

Vai haver um grande debate na Europa sobre salários baixos. Acho que isto é importante porque em alguns países eles são mesmo muito baixos, e não têm acompanhado a evolução global da produtividade. Alguns Estados-membro irão precisar de ajustamentos. Isto não acontecerá de um dia para o outro. Será uma adaptação progressiva, e é um assunto que está ligado aos acordos coletivos de trabalho, negociados com os parceiros sociais. Nós queremos promover o acordo coletivo, mas isto é também um processo. E achamos que é importante estabelecer os ordenados mínimos através de negociações do acordo coletivos. É mais justo do que determiná-lo por decreto, pelos governos. Mas também isto não pode ser criado de um dia para o outro. Ou seja, a proposta de diretiva é uma abordagem abrangente sobre salários, que têm que estar integrados no Mercado Único Europeu. E atualmente temos diferenças enormes. Por isso, temos que promover convergência económica por um lado, mas também temos que ter atenção aos assuntos sociais, nos quais se incluem os ordenados.

Quando tomou posse como comissário, a Europa estava em muito melhor forma, incluindo no que diz respeito aos direitos sociais e à situação económica. Como vê o momento atual e como vê a evolução a partir daqui?

É um grande desafio ter uma ideia dos próximos seis ou até 12 meses. Não estamos numa “crise normal”, estamos numa crise onde não se sabe como o maior fator que está por trás se vai desenrolar: não sabemos se vamos controlar esta pandemia. Isto é um grande problema, a incerteza não é boa para a economia, há muitos investimentos que não vão ser feitos. Estávamos muito otimistas (no verão), achávamos que íamos ter uma recuperação na economia em 2021. Agora isto é menos garantido, pelo menos para alguns setores que foram muito afetados. E estamos agora numa segunda onda que parece ser muito mais grave. Estamos a ter lockdowns que embora parciais vão ter um grande impacto nos consumidores, nos investimentos. Eu seria muito cauteloso a fazer previsões. Mas ao mesmo tempo diria que a crise não pode ser a oportunidade para reduzir ou reverter direitos sociais. Porque as pessoas com salários baixos estão muitas vezes na linha da frente desta crise e, precisamente, esta crise mostra que precisamos mais do que nunca de direitos sociais mais fortes. Precisamos de requalificar muita gente, porque muitos sectores foram apanhados e as pessoas precisam de mudar de emprego. E precisamos de assegurar o direito a ser qualificado.

Haverá mudanças na forma como se trabalha.

Assistimos a um tremendo progresso na digitalização em muitos empregos. O teletrabalho é agora parte da nossa rotina diária. Por isso, precisamos de preparar as pessoas para estas mudanças digitais. Temos também de reforçar os investimentos na economia verde. Isto terá implicações para trabalhadores e para as suas competências, e temos também que assegurar que estas transições sejam justas e equilibradas. Acho que se queremos sair desta crise sem graves problemas sociais, que podem levar também a instabilidade política, não devíamos parar de trabalhar nos direitos sociais e de implementar o Pilar Europeu dos Direitos Sociais. E planeamos fazer precisamente isso com a presidência portuguesa.

Como é que encara a importância da presidência portuguesa, que também tem como prioridade as questões sociais. Como espera trabalhar com a presidência portuguesa nestes temas?

Já sei que vamos ter uma excelente cooperação, que aliás já começou. Pedi ao antigo ministro do Emprego Vieira da Silva para trabalhar comigo na preparação do Conselho Europeu Especial sobre direitos sociais, de acordo com o plano de ação da Comissão ( a apresentar no início do ano). Já estamos em permanente contacto com a futura presidência portuguesa. E tenho altas expetativas.

O que espera que saia como resultado da Cimeira do Porto, que é o momento alto da presidência portuguesa, e precisamente sobre o reforço da Europa social?

Vai ser um sinal político muito importante. Exatamente porque estamos numa crise, precisamos de mais e uma melhor dimensão social na Europa. Se não tomarmos conta da dimensão social, a crise terá consequências dramáticas para muita gente.

Imagina no fim do mandato desta Comissão uma paisagem diferente para os trabalhadores europeus? A transição digital e a transição ecológica podem levar a um melhor futuro? Ou poderá ser pior para os mais pobres?

Fizemos um compromisso muito grande de melhorar as condições de vida para os europeus. E acho que mostrámos isso ao adotar um programa como o SURE (no valor de 100 mil milhões de euros), para os que perderam os empregos, e ainda ao propor a adoção do plano de recuperação e resiliência. E também no trabalho que estamos a fazer agora no Plano de Ação para o Pilar Social. Ninguém esperava esta crise que criou na Europa muitas dificuldades sociais, pessoas a perder o emprego ou parte substancial do rendimento. A pobreza está em alta. Vamos apresentar no princípio de 2021 uma garantia para a infância, para lutar contra a pobreza infantil, que é um aspeto muito importante para nós. Ainda estou otimista de que os compromissos que esta Comissão tomou de fazer a Europa mais social fortaleça a dimensão social no contexto das duas grandes transições: a verde e a digital. E estou otimista de que vamos cumprir. O orçamento europeu está em discussão neste momento, estou muito esperançoso que um acordo seja alcançado muito em breve. Acho que temos que ter estes recursos e uma parte do Mecanismo de Recuperação e Resiliência pode ser usado para investimentos sociais.

No último Eurobarómetro, viu-se que a habitação é uma das principais preocupações dos luxemburgueses. Há alguma coisa que a Comissão Europeiaesteja a fazer para garantir o direito a habitação acessível?

Não esperem tudo da Comissão. A Comissão não pode resolver todos os problemas que os Estados-membros têm e que são problemas internos. A Comissão não tem um plano para o preço das casas no Luxemburgo ou para todos os problemas na Europa. Temos também de ser realistas e ao mesmo tempo modestos. O que não significa que a Comissão não esteja a oferecer um certo número de recursos e meios. Mas cabe aos Estados-membros investir e promover investimentos e alterar leis se for preciso para garantir mais habitação a preços adequados. É esta a questão.

Um dos planos na sua carta de missão como Comissário Europeu é também o combate ao fenómeno dos sem-abrigo. O que está previsto?

Neste momento, o fenómeno dos sem-abrigo é um problema europeu. Vamos ter com a presidência portuguesa uma grande conferência sobre o fenómeno das pessoas que vivem nas ruas e as melhores maneiras de resolver o problema, baseado em práticas que deram bons resultados. E também haverá apoio de fundos. Temos centenas de milhar de pessoas a viver nas ruas. Isto não é aceitável. E menos ainda durante uma pandemia. Juntamente com os Estados-membros e com as autoridades locais e organizações não governamentais iremos criar um programa para resolver este problema.