Laura Ferreira dos Santos, in "Público"
Quem impede os outros de morrer segundo as suas convicções é um “controlador” perigoso.
No passado dia 7 de Março, a SIC Notícias emitiu uma reportagem sobre morte assistida, seguida de debate (basicamente, com três elementos contra e um a favor).
Na Reportagem, interessa-me referir o que foi dito pela Dr.ª Ana Bernardo, médica da Unidade de Cuidados Paliativos (CP) do Hospital de Nossa Sr.ª da Arrábida, acerca do nível de aceitação que os CP têm junto de pessoas com diversos níveis culturais. Disse ela: “Talvez [para] as pessoas com níveis intelectuais mais elevados seja mais difícil [aceitar os CP] porque racionalizam muito as coisas [...], sabem porque é que estão a viver as coisas e não se deixam muitas vezes ir ao básico. As pessoas simples são mais básicas, não são tão exigentes consigo próprias”.
Haveria, pois, dois grandes tipos de personalidades: as “básicas” e as “intelectuais”. O que as diferencia? Por parte das “básicas”, supõe-se que uma maior resignação perante as adversidades da vida, seja a dor, o sofrimento existencial ou a falta de privacidade, a aceitação de que a aproximação lenta da morte, com tudo o que possa trazer de desagradável, é um destino a que não se deve fugir, apenas eventualmente pedindo a Deus que as “deixe” partir o mais depressa possível. Por outro lado, a confiança no pessoal médico e de enfermagem será aqui maior, experimentando pacientemente todas as drogas na busca do maior controlo da dor.
De facto, o que nos diz o Relatório da Entidade Reguladora da Saúde intitulado “Acesso, qualidade e concorrência nos cuidados continuados e paliativos”, datado de Dezembro 2015, é que os internados em unidades de cuidados continuados e paliativos “são principalmente idosos, com baixa escolaridade e profissão não qualificada, do género feminino” (p. 118). Perante esta descrição, qualquer estudioso diria estarmos perante uma população não reivindicativa nem fortemente crítica, mas, pelo contrário, uma população com muito respeito, e até subserviência, pelo pessoal que lhe é muito superior em escolaridade, como são os médicos. E quando alguém assim “básico” pedir, de um modo forçosamente excepcional, para que lhe antecipem a morte (provavelmente, muito poucos conhecerão o termo “eutanásia”), será fácil desincentivá-lo, a começar pela invocação da lei penal.
Obviamente, tudo se complica quando as pessoas têm outro tipo de cultura, ou seja, quando se trata do que se designou de “intelectuais”, mas que no fundo não precisam de ter altos níveis de cultura ou escolaridade, mas terem vivido em ambientes mais informados e críticos, talvez laicos, que os tenham ajudado a ter opiniões próprias fortemente individualizadas e fundamentadas. As gerações que lutaram pelos direitos individuais como a contracepção ou a não discriminação de género, entre tantos outros, vão deixar que o Estado, quanto aos seus tempos finais, lhes imponha concepções que não são as suas?
Em 2007, quando pela primeira vez discuti estas questões num programa televisivo (Sociedade Civil) juntamente com a Dr.ª Galriça Neto e o Dr. Carlos Abreu, falou-se de Ramón Sampedro, o galego tetraplégico durante 29 anos a quem os Tribunais espanhóis recusaram o pedido de assistência na morte e cuja história deu origem ao filme Mar Adentro. Nessa altura, fez-me muita impressão ouvir a Dr.ª Galriça classificar Ramón como um “controller”, pela sua insistência em querer morrer de acordo com as suas convicções reflectidas, ele que se via a si próprio como uma cabeça sem corpo. Quase 10 anos depois, a Dr.ª Galriça continua a classificar os defensores da morte assistida como “controladores”, por quererem ter algum domínio sobre a forma como morrem. Mas perguntemo-nos: quem é mais controlador? Quem apenas pede espaço para que todos possam minimamente morrer de acordo com as suas convicções, ou quem quer impor a todos as suas convicções sobre a vida e a morte, assunto tão íntimo como o são as convicções religiosas?
Apenas duas notas. No debate referido, a Dr. Galriça informou que nos últimos dias tinha sido pedido às Faculdades de Medicina que criassem áreas de CP. Tanta luta pelos CP, e só agora este pedido? Trata-se já, com certeza, de uma vitória do Manifesto.
Finalmente: o Dr. Oliveira e Silva disse ter conhecimento de alguns casos de eutanásia em hospitais públicos, e de ter ouvido falar de outros. Será que o Bastonário da Ordem dos Médicos também lhe vai abrir um processo de averiguações?