9.8.16

Rafaela Silva enfrentou pobreza e racismo para chegar ao ouro

Marco Vaza (no Rio de Janeiro), in Público on-line

O primeiro título do Brasil nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro começou a ser construído há 20 anos, na Cidade de Deus, uma favela carioca na zona oeste da cidade.

O rosto de Rafaela Silva não revela qualquer tipo de emoção, antes, durante e após um combate. Cara fechada, dentes provavelmente cerrados, concentração total. As vitórias parciais não lhe interessavam festejar. Só a última, final e irrevogável. Só quando se esgotou o último segundo da final categoria de -57kg no judo olímpico é que o rosto se abriu, ela celebrou e um país celebrou com ela. Rafaela conquistou a primeira medalha de ouro para o Brasil nos Jogos do Rio de Janeiro e com uma proximidade espantosa de casa. O Arena Carioca 2, no Parque Olímpico, fica próximo da Cidade de Deus, uma das mais famosas favelas cariocas. Rafaela Silva veio de lá.

“Mostrei aqui que uma pessoa saída da favela pode tornar-se campeã. A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, batalhem. Assim, podem alcançá-lo. Pode demorar. Eu não consegui há quatro anos, mas agora alcancei”, disse a judoca brasileira após ter derrotado a mongol Sumiva Dorjsuren no “golden score” pontuando com wazari, na mesma competição em que Telma Monteiro conquistou a medalha de bronze. Há 20 anos, antes de ser o exemplo em que se transformou, Rafaela era uma dessas crianças que nasceu e cresceu exposta à pobreza na comunidade que o filme de Fernando Meirelles tornou mundialmente célebre em 2002.

Quando tinha cinco anos, Rafaela era uma menina que gostava de bater nos rapazes e os pais colocaram-na, e às irmãs, a fazer judo no Instituto Reação, um projecto criado em várias comunidades pobres por Flávio Canto (medalha de bronze em Atenas 2004) para promover o desenvolvimento e a inclusão social através do desporto. O antigo judoca conta a história: “Rafaela entrou com uns cinco, seis anos, e desde novinha o Geraldo [treinador] falava que ela iria chegar à Olimpíada. Quando começou no Reação, eu e todo o mundo que está lá sempre pensou que o ouro podia acontecer. Mas desse jeito?”

A verdade é que Rafaela cresceu a praticar judo (ou judô, como se diz no Brasil) na favela e foi-se afirmando como uma das melhores. Mas, depois de superar as dificuldades impostas pelas origens humildes, Rafaela teve de enfrentar outro bloqueio. Em Londres 2012, era já uma forte candidata às medalhas olímpicas, mas foi desqualificada num combate por ter utilizado uma técnica ilegal. O que se seguiu da parte de muita gente não foi compreensão, mas críticas bem para lá dos limites do razoável. E desses, Rafaela também não se esqueceu quando venceu no “seu quintal”: “O macaco que tinha de estar na jaula em Londres é campeã olímpica em casa. Hoje, eu não sou a vergonha para a minha família.”

Pensou em abandonar a carreira após esses jogos, mas a reacção a Londres não podia ter sido melhor. Em 2013, conquistava o seu primeiro título mundial no Rio de Janeiro, tal como aconteceu agora com o seu primeiro título olímpico, mesmo que, depois, tenha andado num limbo competitivo durante três anos, até se reencontrar na hora certa com o desporto que lhe mudou a vida: “Se não fosse o judo, eu nem sei onde estaria agora. Poderia estar a brincar na Cidade de Deus, mas conheci este desporto e estou aqui como campeã.”


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