Ana Kotowicz, in o Observador
O ano letivo chegou ao fim, mas a flexibilidade curricular não. Em Alcanena e Alvalade fomos visitar dois dos agrupamentos que fizeram parte do projeto-piloto. Ali, a experiência é para continuar.
O telefone de Ana Cláudia Cohen não para. Há presidentes de junta a ligar-lhe, professores e coordenadores de ciclo, e uma mão-cheia de funcionários das 23 escolas do agrupamento de Alcanena. Entre um telefonema e outro, ainda recebe a visita da GNR, enquanto nos faz uma visita guiada pela escola-sede do agrupamento em passo apressado.
Está tudo bem, a lei e a ordem estão a ser respeitadas, nenhum dos seus 1600 alunos está metido em sarilhos, mas a GNR tem dúvidas sobre as estradas que vão estar cortadas por causa do cortejo dos alunos que começa daqui a nada. “Isto hoje vai ser sempre assim”, diz-nos a diretora do agrupamento que tem de atender mais um telefonema, antes de nos poder explicar como é que a flexibilidade curricular funciona na sua esfera de influência. E, mais importante, o que é esta Feira do Tempo, a iniciativa que tomou conta de Alcanena no dia em que a visitámos.
Vamos lá, então. A flexibilidade curricular é um projeto-piloto que chegou a 235 escolas durante o ano letivo que agora termina. Em traços gerais, confere uma boa dose de autonomia curricular — entre 0% e 25% — às escolas que aderiram. Os diretores de agrupamento podem usá-la de diversas formas: criar novas disciplinas ou fundir cadeiras já existentes, mexer nos tempos letivos, aumentando-os ou diminuindo-os, e introduzir novidades curriculares e novas metodologias de ensino. Tudo de acordo com as características dos alunos, dos professores e da região onde se encontra a escola.
Foi isso que Ana Cláudia Cohen, diretora há 4 anos, mas com 25 anos de serviço nesta escola, fez. Criou novas equipas pedagógicas, introduziu paragens no ano letivo que não existiam, e há momentos em que os alunos do 5.º ano não estão agrupados por turmas, mas antes por projetos. A semente desta ideia foi plantada há três anos, quando percebeu que era preciso mudar a forma de trabalhar com os alunos.
Ana Cláudia Cohen, diretora do agrupamento de escolas de Alcanena
“Em 2015, comecei a sentir, através de conversas com as minhas professoras do Pré-Escolar e do 1.º ciclo que os alunos estavam diferentes. Há quatro anos, a indisciplina que nos preocupava era entre os alunos do 3.º ciclo e do Secundário. De repente, ficou controlada nesses níveis etários e começámos a ver crianças do Pré-Escolar e do Básico cada vez mais agressivas e com comportamentos desajustados”, conta-nos Ana Cláudia Cohen.
Um novo dado juntou-se a este: as crianças aprendiam os mecanismos de leitura cada vez mais tarde e a diretora do agrupamento de escolas de Alcanena não hesitou. “Achei que devíamos fazer uma reflexão coletiva: questionarmos-nos como é que estamos a ensinar e como é que os alunos estão a aprender. E a nossa primeira tentativa foi com a Sala do Futuro, um espaço onde podemos respeitar o ritmo de cada um.”
A Escola Secundária de Alcanena é uma das várias escolas portuguesas onde foram inaugurados os Ambientes Educativos Inovadores, também conhecidos como Salas de Aulas do Futuro. Pretendem ser laboratórios de aprendizagem, espaços de inovação para a comunidade educativa e um sítio seguro para testar novos métodos de ensino.
Em Alcanena, professores e alunos tiveram formação e os estudantes são hoje os monitores-residentes, responsáveis pelo que se passa entre aquelas quatro paredes. Rafael, aluno do secundário, recebe-nos na sala e rapidamente nos mostra como uma mesa se transforma num gigantesco monitor. Ali, vemos uma aplicação que estes alunos criaram para ajudar os colegas do Básico nas suas aprendizagens. Num canto da sala, outro finalista do Secundário monta um robot, no canto oposto há mais dois alunos a estudar e um professor concentrado nas suas tarefas. E há ainda a zona de chill out, também pensada para alunos com necessidades educativas especiais.
Depois da Sala do Futuro, houve um outro momento decisivo para este agrupamento, quando em 2016 o atual ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, lançou o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar. A ideia base deste projeto é que são as comunidades educativas quem melhor conhece os seus alunos e, por isso, quem melhor pode elaborar planos de ação estratégica para melhorar aprendizagens.
“Com o Plano de Ação Estratégica, aprendemos a trabalhar em equipas pedagógicas. Estávamos habituados a pensar assim: se havia exames no 4.º ano, era aí que estavam todos os apoios. Erro estratégico. Aprendemos com o plano que nos devemos centrar nos primeiros anos do ciclo. E aprendemos que ter dois professores de Português — ou Inglês ou Matemática — para duas turmas, podendo os alunos estar agrupados consoante o seu desempenho, era positivo. Nestas três disciplinas não há turma, é consoante as necessidades deles. E começámos assim.”
"É outra forma de aprender. Fizemos muitas visitas de estudo, perdemos aulas com isso, mas ainda bem. Não deixamos de aprender e é muito mais fixe aprender assim."
A Feira do Tempo de Alcanena
Quando o Secretário de Estado da Educação, João Costa, começou a falar de flexibilidade, também Ana Cláudia Cohen começou a falar sobre ela nos conselhos pedagógicos. Quando saiu o despacho do ministério, reuniu toda a gente e perguntou: “Sim ou não?” A resposta foi positiva. A interrogação seguinte era: “Em que anos?” Todos. Só faltava saber em que turmas. E a resposta foi, também, em todas. A diretora não votou, mas o seu sim não foi sequer necessário para o agrupamento decidir ir em frente. E a flexibilidade curricular passou a ser parte do dia-a-dia de todos os alunos em anos de início de ciclo — 1.º, 5.º, 7.º e 10.º — os únicos que podiam integrar o projeto-piloto.
Para que tudo fizesse sentido, Ana Cláudia Cohen reuniu em setembro uma equipa de 10 pessoas, representativa das diferentes escolas e ciclos do agrupamento. Desse encontro, saiu o tema aglutinador de toda a flexibilidade: “Caminhando ao Longo da nossa História”. Na parede da escola, uma espécie de diptíco — que atrai logo o olho pela explosão cromática que ali se vê — mostra como o projeto está dividido pelos diferentes ciclos.
Ao primeiro ano, por exemplo, coube explorar a alimentação dos nossos antepassados. As turmas de 5.º ano ficaram responsáveis pela presença árabe na região, dividida em várias categorias: lendas, lutas, música, tecelagem e animação do mercado árabe. O 10.º ano tinha a responsabilidade de tratar de abordagens científicas e projetos de investigação.
O culminar do projeto foi a Feira do Tempo, dia em que os alunos desfilaram pelas ruas de Alcanena e montaram um mercado para todos os que os quisessem visitar. O final do dia culminou com um porco assado à antiga.
Claro que este projeto implicou encontrar novas formas de trabalhar, a começar pelas paragens letivas que foram instituídas.
“As grandes diferenças no dia-a-dia foram as equipas pedagógicas e as paragens — os alunos trabalhavam no projeto em todas as aulas, mas alternavam com paragens. E durante o período letivo, cada turma decidia quando parava, umas vezes eram dois dias, outras vezes quatro. Uns aproveitam para ir para as universidades validar os projetos de investigação do 10.º ano, outros iam ao Centro de Ciência Viva, outros foram à serra ter aulas com um pastor, outros foram visitar as grutas da região. Tudo isto faz parte, como faz parte trabalhar em equipa, investigar, pesquisar, fazer brainstorming. Também criámos disciplinas novas, e os projetos que eram extracurriculares estão agora integrados no currículo.”
Acima de tudo, explica Ana Cláudia Cohen, era importante que o que fosse integrado no currículo fosse mesmo curricular. “Temos 25% de margem para introduzir este currículo local, mas ele tem de estar entroncado nas Aprendizagens Essenciais. Tem de fazer sentido, tem de enriquecer o currículo. O que vamos mostrar na Feira do Tempo é uma abordagem histórica, artística, cultural, tecnológica, geológica e geográfica do território em determinados cortes ao longo da história. Estas disciplinas todas vão dar o conjunto que vão ver na Feira do Tempo.”
Agora não somos avaliados só por nós, mas também pelo que fazemos em grupo. É bom não serem só os testes a contar. Num teste podemos estar nervosos e assim sabemos que ainda temos a possibilidade de contar com o que fazemos na sala de aula para ter uma boa nota.”
Antes de assistirmos ao cortejo dos alunos, carregamos no botão de rewind e andamos uma semana para trás. Em Lisboa, o dia está bem mais quente do que em Alcanena e quase se acredita que o verão está para ficar. Era tudo uma ilusão, mas esta história não é sobre meteorologia.
O sorriso com que Dulce Chagas nos recebe no agrupamento de escolas Padre António Vieira, em Lisboa, compete em simpatia com o de Ana Cláudia Cohen. Em menos de nada, estamos a conhecer a escola que foi reabilitada em 2011 e que viu, nessa altura, o seu tamanho aumentar. Nos corredores da escola, reina o silêncio. Dentro das salas de aulas, para a maioria dos estudantes é dia de teste, os últimos de um ano letivo que está a chegar ao final.
Diretora há 18 anos, Dulce Chagas já anda na Secundária Padre António Vieira desde 1992. Nesses 26 anos, viu um pouco de tudo, como a fusão da sua escola com outra secundária (a Cidade Universitária) e a criação do chamado mega agrupamento. A flexibilidade é só mais uma novidade, entre tantas que os governos de diferentes cores políticas vão trazendo para a Educação.
Dulce Chagas, diretora do agrupamento de escolas Padre António Vieira
E tal como em Alcanena, também nesta escola de Alvalade, o Plano de Ação Estratégia serviu de embrião para o que veio a seguir.
“Quando as escolas tiveram a oportunidade de fazer um plano estratégico de promoção de sucesso escolar, criámos um grupo de reflexão e avançámos com cinco grandes medidas de ação. A principal era a mudança na sala de aulas, mas havia outras — como o trabalho colaborativo dos professores — que não tínhamos maneira de viabilizar. Queríamos mudar algumas práticas na sala de aula, mas não era fácil. Quando as pessoas não querem, refugiam-se na lei. E a lei não nos dava grande abertura.”
Acima de tudo, Dulce Chagas sentia que era preciso pôr os estudantes a participar mais, já que os sentia muito alheados de todo o processo educativo. Quando surgiu a flexibilidade curricular tornou-se claro que seria assim que iriam conseguir fazer as alterações desejadas.
“Concluímos que aderir à flexibilidade e puder fazer um ano antes dos outros, ia-nos deixar um passo à frente e com consciência do que devia e não devia ser feito. Com a flexibilidade, acabámos por não fazer nada de novo em relação ao que já tínhamos pensado, viabilizamos foi algumas dessas medidas”, explica a diretora de agrupamento.
Quando chegou a altura de decidir que alunos entravam na flexibilidade, a decisão foi igual à de Alcanena. Ou vão todos ou não vai nenhum. “Não fazia sentido escolhermos duas ou três turmas. É preciso haver igualdade de oportunidades, e por isso avançámos com todas as turmas de primeiro ano de cada ciclo. Se fossem escolhidas as turmas a dedo, não íamos ter uma visão real”, explica, acrescentando que no total do agrupamento são mais de 600 alunos envolvidos no projeto.
Em Alvalade, poucas são as turmas que não estão a braços com testes. O fim do ano letivo está à porta
Mas, afinal, o que foi feito? “Criámos um espaço de trabalho interdisciplinar — os chamados DAC, Domínios de Autonomia Curricular. As Aprendizagens Essenciais deram-nos alguma folga: os professores estavam agarrados às metas curriculares e quase não tinham tempo para respirar, mas acho que por cautela este documento ainda não foi aproveitado a 100%. Os conteúdos não desapareceram, o nível de profundidade com que são abordados é que muda um pouco. Agora tem-se uma postura mais holística, aproveitando mais as sinergias entre as diferentes disciplinas para trabalhar um conjunto. E com isso ganhamos tempo para outras metodologias e outros tipos de trabalho.”
As Aprendizagens Essenciais são documentos de orientação curricular e que vieram substituir as metas curriculares aprovadas durante o mandato de Nuno Crato como ministro de Educação (2011-2015). As alterações têm recebido tanto de aplausos como de vaias.
A partir do momento em que uma escola adere à flexibilidade, tudo pode acontecer. “Podemos não ter disciplinas, há escolas que estão a trabalhar com áreas disciplinares, que têm as Ciências Sociais e Humanas em vez de terem a Geografia, a História, etc. Por isso não há uma flexibilidade, não há uma forma única de fazê-la, essa é a parte boa e responsabiliza muito as escolas. Dizia no outro dia aos meus colegas, em tom provocatório: vocês já viram a autonomia que nós temos em termos pedagógicos? Até podemos deixar de ter turmas. Em Óbidos, não têm turmas. Têm um conjunto de alunos do mesmo ano e os professores dividem-nos consoante o tipo de trabalho que estão a fazer, organizam grupos e funcionam assim.”
Tudo isto é possível, acredita Dulce Chagas, no Ensino Básico. Chegando ao secundário, os entraves são outros. “Enquanto o secundário servir o interesse do Ensino Superior, não vamos conseguir descolar muito. Aqui temos a flexibilidade nos quatro anos que podíamos ter, mas no 10.º ano tivemos algumas cautelas. As horas das disciplinas estão mais ou menos intocadas para se cumprir o programa porque estes alunos vão fazer os mesmos exames nacionais que os outros. Para além disso, conseguimos uma folga de tempo e criámos dois blocos semanais de 90 minutos partilhados por professores de várias disciplinas para trabalhar de forma diferente.”
"Não estou a gostar nada dos DAC. Acho que nos está a roubar tempo de estudo, tempo que também precisamos para fazer as nossas coisas. Acho que não fazem falta porque não fazemos nada de muito interessante. O que acontece depende muito dos professores."
Joana, aluna do 10.º ano da secundária Padre António Vieira
A pensar nos exames nacionais, Dulce Chagas quis salvaguardar que no 10.º ano haveria um espaço onde as coisas decorriam normalmente e um outro, complementar, onde se trabalharia noutro tipo de projetos. “Correu melhor ou pior conforme a dinâmica que os diretores de turma conseguiram imprimir. Os alunos do 10.º ano estão muito formatados para um tipo de escola e não é com bons olhos que vêem a mudança.”
Também nos critérios de avaliação houve alterações que agora terão de ser elas próprias avaliadas. “Retiramos o peso que os testes tinham na avaliação final. Porquê? Tínhamos de valorizar o processo, a participação dos alunos nas aulas e eles tinham de perceber que tudo o que fazem na sala de aula é valorizado, que não conta só o dia do teste”, argumenta.
“No Ensino Básico, o peso dos testes nunca passa dos 50% — demoramos um mês a chegar a este valor e eu ainda acho que é muito — para que o restante trabalho seja avaliado. Agora isto estoura quando temos professores que têm oito turmas e têm grande dificuldade em fazer este trabalho personalizado”, acrescenta Dulce Chagas.
Por isso mesmo, nenhum professor do agrupamento está envolvido ao mesmo tempo na flexibilização de mais do que um ano de ensino.