José Manuel Fernandes, in o Observador
Não somos bem como os outros europeus e não há melhor exemplo que a atitude perante a imigração. Mas não nos iludamos: não somos mais gentis nem mais solidários. Estamos apenas mais longe do problema.
1. Irrita-me a hipocrisia. Tal como me irrita darem-se lições de moral aos outros que dificilmente aplicaríamos a nós próprios. O debate sobre a imigração é um bom exemplo desses irritantes, pelo que não há nada como ser frontal.
Primeiro que tudo, vamos imaginar que todos os verões uma flotilha de barcos de ONG’s (de países nórdicos) andava pelas costas de Marrocos (em vez de andar pelas costas da Líbia) a recolher imigrantes que tinham sido abandonados à sua sorte pelos traficantes que os haviam trazido da África subsaariana. Esses traficantes tinham-lhes extorquido milhares de euros (ou dólares) e, depois, tinham-nos lançado ao mar na expectativa de que esses barcos os salvassem – esses ou outros das frotas dos países da União Europeia.
Vamos continuar a imaginar que esses barcos rumavam depois ao porto de Faro, ou de Portimão (e não a Roterdão, Hamburgo ou Oslo), e aí deixavam os desgraçados que tinham recolhido, pedindo que os acolhêssemos em nome de princípios humanitários. E que há vários anos que era assim todos os verões, sendo já centenas de milhar os imigrantes que, de uma forma ou outra, tinham acabado a cargo do Estado português.
Vamos agora pensar que a Espanha fazia connosco o que a França fez com Itália: suspendia Schengen, fechava as fronteiras, caçava os imigrantes que mesmo assim conseguissem passar e devolvi-os ao nosso país. Isto sabendo que a “quotas” acordadas entre os países da União Europeia são uma brincadeira de mau gosto, pois na prática o país onde os imigrantes desembarcam é aquele que tem de tratar deles – e que neste cenário esse país seria Portugal.
Vamos por fim fazer algumas contas para ficarmos a saber que os encargos com estas vagas de imigrantes (na sua quase totalidade imigrantes económicos, só excepcionalmente verdadeiros refugiados) pesava no Orçamento português o equivalente ao que pesa no italiano, o que poderia ficar não muito longe dos mil milhões de euros. Ou seja, aquilo que muitos dizem faltar ao Serviço Nacional de Saúde. Mais: que a chegada destes imigrantes fazia com que muitos deles competissem com os portugueses com menos qualificações pelos empregos que, por fim, estão agora a ser criados.
E agora vamos ser honestos: acham sinceramente que se Portugal estivesse a viver esta experiência o nosso sistema político continuaria intacto e politicamente correcto? Têm mesmo a certeza de que continuaríamos a ser a honrosa “excepção à vaga de populismo” que varre os outros países da Europa?
Os portugueses têm fama de ser mansos, mas há mansidões que não duram para sempre. E talvez até já exista por aí uma bolsa de eleitores que só espera uma oportunidade para se exprimir de forma menos convencional, pois temos uma das mais elevadas taxas de abstenção da Europa. Mais: nos últimos 20 anos a participação eleitoral em eleições legislativas desceu 500 mil votos e em presidenciais desceu um milhão de votos. Mais ainda: nesse mesmo período de duas décadas PS, PSD e CDS perderam em conjunto 1,25 milhões de votos. Um dia podemos mesmo ter uma surpresa.
2. Porque é que digo isso? Porque não creio que os dois terços de italianos que apoiam as políticas anti-imigração de Mateo Salvini, o líder da Liga, sejam todos xenófobos e racistas — tal como não tenho fé na eterna mansidão dos portugueses. Esses eleitores sentem é que têm um problema grave para o qual a União Europeia não encontrou solução. Por mais lamentável que seja a linguagem do senhor Salvini, a verdade é que ela tocou num ponto sensível – e visou sobretudo um problema para o qual temos de ter a honestidade de aceitar que não há boas soluções. E que não se resolve apenas com bons corações.
Primeiro ponto: a dimensão dos fluxos migratórios tem hoje uma escala que desafia os equilíbrios globais. E que é também um problema global: de acordo com uma sondagem da Gallup, mais de 700 milhões de pessoas gostariam de imigrar se pudessem, quase todas vindas de países pobres, a esmagadora maioria declarando ter como destino desejado ou os Estados Unidos (21%) ou a União Europeia (23%). É compreensível: mesmo os mais pobres no mundo desenvolvido têm condições de vida inalcançáveis pelos que vivem nos países de origem dos imigrantes.
Esta é uma onda que não se para com as mãos. Pior: se este movimento de populações se materializasse mesmo que só muito parcialmente ele submergiria os países mais desenvolvidos. Esta é uma onda que só numa pequena parte gera verdadeiros refugiados, pois estamos a falar de migrantes económicos. Em Portugal, por exemplo, de acordo com o mais recente relatório do SEF, relativo a 2017, dos 1750 pedidos de estatuto de refugiado só 119 foram deferidos. Excluindo períodos excepcionais, como o de 2015, quando ocorreu a grande vaga de fugitivos da guerra da Síria, a regra é mesmo esta: quase todos os que chegam às nossas fronteiras chegam por motivos económicos.
Podem as fronteiras estar totalmente abertas quando é esta a dimensão da procura? Será razoável pensar que é acolhendo uns milhões de migrantes económicos que se resolve o problema da pobreza nos seus países de origem? E até que ponto é que as acções de resgate que têm lugar no Mediterrâneo não acabam por ser cúmplices dos traficantes, sendo que estes até confessam que, depois de lançarem à água os botes precários que encheram com desgraçados a que espoliaram centenas ou milhares de euros, tratam de dar o alarme para que uma ONG ou um navio europeu os recolha quando chegam a alto mar?
Nenhuma destas perguntas tem uma resposta simpática, e é precisamente por não terem que a “solidariedade europeia” que deverá sair do Conselho Europeu desta semana deverá corresponder sobretudo a uma tentativa de tornar o problema menos visível – mas também é uma solução com muito pouco de “coração”.
3. Olhar para estes problemas a partir de Portugal é tão fácil como enganador. Primeiro, porque se trata de um problema que verdadeiramente não temos, pois apesar de o ano passado ter aumentado o número de imigrantes a chegar para Portugal, boa parte desses imigrantes vêm de países ricos para viverem cá as suas reformas, enquanto a maioria dos outros chega de países com uma cultura muito semelhante à nossa (Brasil e Cabo Verde, por exemplo). Mesmo assim, quando olhamos para os números, verificamos que, em toda a União Europeia, e considerando a relação entre número de imigrantes vindos de fora da Europa e a população do país, somos o segundo Estado que proporcionalmente menos imigrantes recebeu (o equivalente a 0,08% da nossa população em 2016), logo a seguir à “xenófoba” Eslováquia (com 0,01%), mas menos do que a “odiosa” Hungria (0,14%) e muito, muito menos do que a Suécia (1,06%). Esta generosidade da Suécia está contudo a ter um custo político, com os partidos anti-imigração a crescerem e os partidos de Governo, incluindo os socialistas, a adoptarem um discurso mais duro. Pior: no caso da Suécia é mesmo verdade (ao contrário do que sucede na Alemanha) que se está a assistir a uma subida da violência associada a gangues e a comunidades imigrantes, uma realidade que mesmo a imprensa bem comportada já não consegue disfarçar.
Depois, porque a imigração parece ser um problema que pouco ou nada preocupa os portugueses. O mais recente eurobarómetro continua a colocar a imigração como o problema europeu que mais preocupa os cidadãos da União Europeia, o que é verdade em todos os países menos num, precisamente Portugal, em que esse tema não surge senão em quarto lugar na preocupação dos inquiridos. Como ainda se tem dado o caso de boa parte dos refugiados que “generosamente” acolhemos, nomeadamente aquando da crise síria, terem preferido ignorar a nossa hospitalidade e usado o nosso país apenas como ponto de entrada na Europa, não surpreende que o tema não seja tema no debate político, onde todos têm imenso “coração” e onde não faltam manifestações quase unânimes de indignação pelo que os outros países europeus estão a fazer.
A imigração, a par com o terrorismo, é o problema que mais preocupa os europeus, em especial depois da crise do Verão de 2015. Os europeus todos não: os portugueses são a única excepção
4. A Europa, sobre este tema, concordou em discordar. E em assumir que o máximo que se conseguirá na reunião de líderes desta semana é encontrar alguns acordos bilaterais ou trilaterais ao mesmo tempo que se procurará repetir no norte de África o que se fez na Turquia para estancar a crise dos refugiados da Síria: conseguir quem fique com os imigrantes, ou os envie de regresso à origem, a troco de um cheque mais ou menos generoso. A Turquia já o faz utilizando métodos de que nem queremos tomar conhecimento. A Argélia já o fez de forma que nos incomodou, mas verdadeiramente não indignou nem comoveu – na verdade, cinicamente, acabaremos a olhar para outro lado.
O que se propõe não será muito bonito: campos de acolhimento na costa do norte de África onde se fará a triagem dos imigrantes, eventualmente separando os verdadeiros refugiados, eventualmente tratando de distribuir uma (pequena) parte dos outros através de um sistema de quotas. A Hungria tem uma vedação de arame farpado na sua fronteira sul? A Europa vai, “humanitariamente”, tratar de colocar o Mediterrâneo entre os imigrantes e a margem sul do nosso continente — o que representará, suponho, uma barreira mais eficaz. De resto, neste dispositivo, os muros que já existem em Ceuta e Melilha, os enclaves espanhóis em Marrocos, são – continuarão a ser – o detalhe a que não se presta atenção.
Vou ser franco: esta solução que nos venderão com sinal da “solidariedade europeia” é, provavelmente, a menos má das soluções. Talvez mesmo a que nos permita escapar ao sucesso eleitoral dos Salvini deste mundo. Por isso mesmo não tenho grandes estados de alma – mas também não vendo gato por lebre nem cultivo a hipocrisia: pouco a pouco estamos a construir uma fortaleza Europa e essa é, provavelmente, a melhor forma de a salvar.
5. Não tenhamos porém ilusões: este é um continente em decadência. Ainda é, estou seguro, a melhor parte do mundo para se viver, mas vai progressivamente deixar de ser a mais rica. E, se calhar, isso é mesmo o melhor que nos pode acontecer.
A Europa tem um problema demográfico e a demografia não muda senão em gerações. Os imigrantes podem ajudar a mitigar essa crise? Podem, e estou seguro que esse foi um dos motivos por que, em 2015, Angela Merkel decidiu abrir as fronteiras a um milhão de refugiados. Só que esse foi um raciocínio tecnocrático, pouco político: entre manterem a sua identidade e empobrecerem ou diluírem a sua identidade e continuarem competitivos, os eleitorados parecem preferir manter a sua identidade – até porque o empobrecimento relativo é uma coisa do futuro, não uma realidade dos dias que correm. Foi este erro de percepção de Angela Merkel que abriu caminho à AfD.
E Portugal, que tem um problema demográfico pelo menos tão grave como o alemão? Os políticos olham para os estudos académicos e para as suas contas, e decretam: é preciso atrair 75 mil imigrantes por ano. Claro que nos falam dos imigrantes fofinhos, simpáticos, os que vêm fazer start ups, mas a verdade é que para alcançar mesmo esse tal equilíbrio demográfico necessitamos de muitos dos outros. Dos menos fofinhos. Dos que não são louros nem de cultura judaico-cristã.
Pensemos um pouco. Olhando para o estudo (da FFMS), e para o seu conceito de “migração de substituição”, até podemos ver os números a bater certo e a população portuguesa a manter-se estável num horizonte de 40 anos. O que porém não se valoriza politicamente é que nesse mesmo horizonte temporal ocorreria uma transformação potencialmente radical daquilo que Portugal é: em 40 anos passaríamos a ser um país onde cerca de um quarto da população não seria de origem portuguesa. Não sei mesmo se na Lisboa do tempo da Descobertas (termo que ainda escrevo e escreverei com letra grande) existiria essa proporção.
Este cenário suscita-me duas questões. Primeiro, se é mesmo esse o país que desejamos. Segundo, e mais importante, se esse país pode algum dia ser aceite pelos portugueses sem que, pelo caminho, tropecemos naqueles fenómenos políticos a que hoje dizemos estar imunes.
É de facto muito bonito fazer proclamações grandiloquentes sobre princípios humanitários e uma política guiada pelo coração. É menos bonito constatar que um pouco de realpolitik, com todo o seu cinismo, pode causar menos danos e até fazer mais o bem.
Por mim, e apesar de tudo, prefiro viver em democracia, mesmo que às vezes mais pobre – é que, como dizia Churchill, esta é a pior forma de governo, à excepção de todas as outras. Ora se a democracia nos dá Salvinis o antídoto só pode ser perceber que talvez seja melhor entender o porquê e tratar de tomar medidas preventivas em vez de fazer apenas discursos moralistas.