5.11.19

“A maior parte dos cuidadores sente que ninguém cuida deles”


Raquel Albuquerque, in Expresso

No Dia do Cuidador Informal, que se assinala esta terça-feira, a presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais lamenta o que ainda não se sabe sobre o efeito e impacto do estatuto aprovado em setembro, que ainda tem de ser regulamentado. E lembra que assumir a responsabilidade perante a vida de outra pessoa, muitas vezes um familiar, “é abismal”

Com o estatuto do cuidador informal publicado em Diário da República desde setembro, o Governo tem quatro meses para o regulamentar. Para a Associação Nacional de Cuidadores Informais, criada há pouco mais de um ano, falta ainda muita informação sobre os detalhes desse estatuto e o impacto direto que terá na vida de quem há já tanto tempo cuida de alguém.

A assinalar o dia do Cuidador Informal, Marcelo Rebelo de Sousa publicou uma nota no site da Presidência, lembrando a importância deste estatuto. "Uma causa que reuniu o apoio de todos os partidos políticos que o aprovaram, e que o Presidente da República sempre defendeu e continuará a defender."

Em entrevista ao Expresso, a presidente da associação nacional de Cuidadores Informais, Sílvia Artilheiro, lembra que "um cuidador hipoteca a sua vida em função de cuidar de alguém que dele depende" e lista o que fica de fora deste estatuto.

O que é que os cuidadores conseguiram conquistar com o novo estatuto?
Com o novo estatuto, os cuidadores informais conseguiram o reconhecimento jurídico, tendo sido criada uma estrutura na qual estão contemplados alguns direitos e deveres, tanto para os cuidadores como para a pessoa cuidada. Prevê-se que os cuidadores informais possam ter acompanhamento e apoio psicossocial, formação e capacitação, descanso e conciliação com a vida profissional. É importante o reconhecimento que os cuidadores receberam, deixando de ser vistos como quem tem a obrigação de cuidar. Em muitos casos, os cuidadores deixam de desempenhar o papel que têm num determinado grau de parentesco, como ser mãe, para assumir a responsabilidade perante a vida de outra pessoa. E isso é abismal.

O que é que já está em funcionamento que influencie a vida de um cuidador?
Por enquanto ainda nada influencia diretamente a vida de um cuidador informal, pois a lei [n.º 100/2019 publicada a 6 de Setembro] só produzirá efeitos depois da sua regulamentação, cujo prazo ainda está a decorrer. Contudo, na Região Autónoma da Madeira o Estatuto Regional aprovado entrará agora em vigor, faltando apenas a articulação com as entidades regionais.

O que é que ficou de fora do estatuto?
A primeira falha é logo na definição de cuidador informal, uma vez que apenas se reconhece como cuidador quem tem relação familiar até ao 4º grau, ignorando todos os cuidadores que não têm parentesco com as pessoas de quem cuidam. Os projectos-piloto que estão previstos para o primeiro ano de funcionamento deste estatuto são de uma grande injustiça para todos os que não serão contemplados. E temos sérias dúvidas acerca da organização destes projetos-piloto, porque não sabemos pormenores nenhuns sobre eles, não sabemos sequer como serão desenhados. Neste estatuto também falha o efeito retroactivo na carreira contributiva de quem já cuida há vários anos e que continuará a sentir-se injustiçado por saber que o seu empenho e abnegação ao cuidar de outras vidas em prol da sua própria, além de lhe tirar qualidade de vida também lhe tira a possibilidade de ter uma reforma condigna. Falha ainda uma Rede de Cuidados Continuados e Serviços de Apoio Domiciliário, capazes de dar resposta às reais necessidades dos cuidadores informais e das pessoas cuidadas. E ficou de fora, por enquanto, a alteração necessária à legislação laboral, de forma a proteger os cuidadores não principais, que ainda conseguem conciliar o trabalho e o cuidar.

O que é que define um cuidador?
Em primeiro lugar a necessidade premente de apoiar um familiar ou amigo que, inesperadamente, por motivo de doença ou acidente ficou com algum tipo de incapacidade. Quando se assume o papel voluntário de cuidador informal, isto exige, muitas vezes, que se deixe de ter vida própria, não só na dimensão laboral, mas também social e pessoal, porque a pessoa cuidada passa a ser o centro de tudo e colocam-se todas as suas necessidades à frente das próprias. Um cuidador hipoteca a sua vida para cuidar de alguém que dele depende.

E quem é que cuida do cuidador?
Por enquanto, a maior parte dos cuidadores sente que ninguém cuida deles. Há alguns projetos de apoio ao cuidador ativos e de iniciativa de instituições, municípios e serviços de saúde, mas que abrangem poucas pessoas e há dificuldade de subsistência, muitas vezes por falta de continuidade no financiamento e apoio aos mesmos. Quando for regulamentada a lei e dependendo dos pormenores que esta trará, o cuidador poderá vir a usufruir de medidas que assegurem o seu descanso, mas para isso as estruturas existentes deverão ter capacidade de resposta, tanto no internamento provisório ou de curta duração assim como no descanso no próprio domicílio, com equipas diferenciadas. Cuidarão do cuidador informal quando, por exemplo, forem criadas equipas multidisciplinares capazes de responder às necessidades dos cuidadores e dos cuidados atempadamente e com uma frequência aceitável, que permita ao cuidador sentir segurança e autoconfiança, nomeadamente com apoio psicossocial; quando forem desburocratizados os processos quer ao nível da saúde quer ao nível da segurança social.

Quantos cuidadores estimam que existam em Portugal?
As estimativas europeias da Eurocarers (European Association Working for Carers) indicam que haja cerca de 10% da população a precisar de cuidadores informais, dos quais cerca de 240 mil a tempo inteiro. A maior parte dos cuidadores são mulheres: esposas, mães, filhas, noras, também havendo filhos, irmãos e pessoas amigas/vizinhas como cuidadores.

O que é que ainda fica por fazer? Que outros exemplos, em países europeus, por exemplo, poderiam ou deveriam ser seguidos?
Muito fica por fazer. Há que continuar a lutar pela dignificação de quem cuida, resultando numa melhoria na qualidade de vida dos cuidadores e de quem é cuidado. Em Espanha, embora não haja um estatuto, existem apoios diferenciados para quem opta por cuidar em casa. Outros países já têm as suas estratégias no apoio aos cuidadores, quer seja com estatuto próprio, quer seja com planos estratégicos criados, como Áustria, Suécia, Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Luxemburgo, Malta, Noruega e Suíça. Reino Unido e Finlândia são óptimos exemplos a seguir.