Ana Marques Maia, in Público on-line
Antes de chegar às ruas, Cindy, que é, hoje e há vários anos, sem-abrigo, dedicava-se ao roubo de carros. Não os vendia ou destruía. Usava-os. "Fazia-o para se divertir com os amigos, quando era ainda adolescente", narra a fotógrafa Thilde Jensen, em entrevista ao P3, a partir dos Estados Unidos. "Acelerava nas estradas do deserto e, quando terminava o combustível, abandonava os veículos. Um dia foi apanhada pela polícia" e condenada a vários anos de prisão. "Ela era uma miúda, nunca imaginou que fosse presa. Apesar de roubar os carros, não tinha um passado violento, não era uma 'durona'. Ir para a prisão foi um choque, ela sabia que não tinha defesas suficientes para sobreviver lá dentro." Mas sobreviveu. E quando saiu, os guardas deixaram-na à porta de um abrigo para pessoas sem-abrigo.
Esse foi o primeiro dia de um destino que não mais mudou. "Quando saiu era uma mulher bonita e rapidamente começou a sofrer, na rua, abusos físicos e sexuais. Quem me contou foram pessoas próximas dela, uma vez que o seu discurso já não é muito coerente." Cindy, a mulher retratada na imagem número 13 desta fotogaleria, sofre, hoje, de distúrbios mentais. Mas não foi assim que chegou à rua. "Em muitos casos, os problemas de saúde mental surgem ou agravam-se na rua", explica a fotógrafa dinamarquesa. "Assim como o consumo de drogas. Há pessoas que começam a consumir na rua porque faz parte dos rituais de socialização daquele grupo. E porque existe uma necessidade muito humana de evasão daquela realidade."
Thilde Jensen viu e sentiu o que é ser uma pessoa que vive na rua. Enquanto acompanhava as dezenas de sem-abrigo que fotografou para o projecto e fotolivro The Unwanted (Os Indesejados, em tradução livre), a dinamarquesa viveu no carro durante períodos de um mês, ao longo de cinco anos, nas várias cidades que visitou. Fê-lo por vários motivos. Thilde Jensen sofre de doença ambiental — à semelhança de pessoas que fotografou para o projecto The Canaries, publicado no P3 em 2015. Mas também o fez por questão de contenção de custos: "Fez sentido ser assim. Alguns sem-abrigo aperceberam-se que eu dormia no carro e acabaram por ver-me como apenas mais 'um deles'."
Mas a experiência viria a ter um custo. Thilde começou a ser encarada, por muitas pessoas, como sem-abrigo. "Quando estacionava a minha carrinha numa estação de serviço, os empregados por vezes não me deixavam usar as casas de banho. Se o fizesse ao final da tarde, vinham dizer-me que não podia pernoitar naquele parque de estacionamento." À medida que os dias passavam, sem acesso a uma área de duche e a roupa lavada, o cansaço e uma sensação de desgaste começaram a instalar-se. Assim como os olhares e a atitude dos outros. "Passadas três semanas a viver assim, senti a falta de um lugar ou de hábitos que fossem meus. A minha identidade parece que começou a desaparecer, a esmorecer. É difícil de explicar." Começou a desenvolver hábitos e rituais que não tinha anteriormente, para sentir que algo lhe era familiar. Como se se tratasse de uma tentativa de apropriação dos lugares, de criar um quotidiano que sentisse como seguro. "E, no meu caso, a experiência não se aproximou sequer do que significa ser sem-abrigo", ressalva.
Os desafios de um sem-abrigo incluem a procura de comida, a luta por território, a frequência de albergues, a convivência com a toxicodependência, a imprevisibilidade do comportamento alheio. Mas não só. "Os adolescentes atiram-lhes garrafas, gozam com eles; a polícia aparece, periodicamente, muitas vezes para removê-los dos locais onde vivem. As pessoas das lojas escorraçam-nos dos locais com medo que roubem, impedem-nos de usar as casas de banho. Ao fim de algum tempo a ser tratado deste modo, muitos sentem que não têm qualquer valor. Sentem que são aquilo que os outros vêem. Não é uma boa sensação." E a necessidade de evasão dessa realidade é algo que Thilde considera natural. "Se eu fosse sem-abrigo, acho que recorreria às drogas. Consigo imaginá-lo. É duríssimo, física e psicologicamente, viver naquelas condições."
Em Syracuse, Nova Iorque, uma cidade com 250 mil habitantes que enfrenta, anualmente, "duríssimos invernos", são mais de 700 os que vivem nas ruas. Na zona Sul do Nevada, onde fica Las Vegas, cidade em foco no trabalho de Thilde Jensen, são, segundo dados oficiais, mais de 6500. "A situação nunca foi tão dramática", opina a fotógrafa. "Nos últimos anos, as desigualdades acentuaram-se e a resposta a este tipo de situações tornou-se mais precária."
Há, refere, quem acredite que ser sem-abrigo é resultado das escolhas do indivíduo. "Não acredito que as pessoas pensem isso por maldade", previne. "Quase todos nós vivemos de salário em salário, sem poupanças, no limiar de perdermos a casa, o emprego. Mas acho que qualquer pessoa pode, um dia, tornar-se sem-abrigo. Uma situação de divórcio, de desavença familiar, a perda de um emprego, a incapacidade de suportar os custos elevadíssimos das rendas... há muitas ameaças à nossa estabilidade financeira e emocional." Quando Thilde Jensen se tornou incapaz de viver na cidade, devido à doença ambiental de que padece, "se não tivesse ajuda de familiares que vivem na Dinamarca talvez tivesse caído numa situação desse género". "Estava doente e o Estado nem reconhece a minha doença. O apoio que o Estado me dava, por estar doente, sem trabalhar, era de 300 dólares, valor que não chega sequer para comer, quanto mais para uma renda."
Thilde cresceu na Dinamarca, um país onde o Estado social é mais interventivo nestes casos. "Eu acredito que todas as pessoas têm direito a existir de uma forma digna", afirma. "Mesmo que alguém não tenha capacidade de trabalhar, de produzir, algo haverá que possa dar à sociedade. Acredito que todos viveremos melhor, num ambiente mais seguro e saudável, se não houver casos tão extremos de pobreza. E acho que devemos medir o nosso próprio valor pela forma como tratamos os outros, não pela quantidade de dinheiro que temos."