Natália Faria, in Público on-line
O sector profissional do alojamento e restauração é aquele em que mais trabalhadores ganham os actuais 600 euros brutos do salário mínimo: 32,5%. Como se vive com um salário que, descontadas as contribuições para a Segurança Social, desce para os 504 líquidos? “Não se vive, emigra-se”.
Não há férias nem idas ao cinema. As refeições fora de casa e os brinquedos para o filho foram-se deixando só mesmo para “quando o rei faz anos e o rei passa muito tempo sem fazer anos”. Os sumos e as bolachas também começaram a rarear na despensa do T2 que Catarina Sousa, 32 anos e embaladora numa fábrica de edredons em Guimarães, partilha com o marido e o filho de quatro anos. “Para a renda de casa são 350 euros, mais 40 e poucos para a luz e gás, a água são 25 euros, e a creche 70”, enumera a empregada fabril quando o PÚBLICO lhe pergunta como se vive com os actuais 504 euros do salário mínimo nacional (são 600 euros brutos, aos quais os trabalhadores descontam a contribuição de 11% para a Segurança Social).
Àquelas despesas fixas, somam-se outras variáveis mas nem por isso dispensáveis. “Para o supermercado são 200 euros quase todas as semanas e outros duzentos para a gasolina, que é muito, mas o carro é de 1993 e não há dinheiro para comprar um mais poupado”, acrescenta, para explicar que, mesmo somando os seus 504 euros líquidos aos 504 euros do marido que também ganha o salário mínimo – num valor a que ambos somam os 2,5 euros que cada um recebe por dia como subsídio de refeição – o deve e haver doméstico não comporta, por exemplo, a factura de Internet. “Quando preciso, vou a casa da minha mãe e partilhamos a despesa”.
Apesar de trabalhar desde os 15 anos de idade, Catarina Sousa está com um contrato de três meses. O marido idem. “Nas empresas da zona é um ‘entra e sai’ de trabalhadores a cada três ou seis meses, porque às empresas interessam os subsídios que vão buscar à Segurança Social”. E, com tal instabilidade, não há, entre os 755,9 mil trabalhadores que, em Abril ganhavam o salário mínimo, segundo o Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, “como lutar por um salário melhor”. “Se país tratasse bem os seus trabalhadores, já estávamos há muito nos 850 euros”, defende Catarina. E como se vive então com o salário mínimo nacional? “Não se vive, emigra-se”, responde de rajada, para explicar que, com o seu contrato de trabalho a terminar no final deste mês, os planos de médio prazo passam por tentarem a sorte na Escócia. “Vai ter que ser, infelizmente”.
Alojamento e restauração são “campeões”
E quem são, afinal, os 755,9 mil trabalhadores portugueses que auferem os 600 euros brutos de salário por um trabalho a tempo inteiro? No sector em que Catarina trabalha, o da indústria transformadora, 25,8% dos trabalhadores recebem aquele mínimo. Mas o sector que soma a maior percentagem destes trabalhadores é o do “alojamento e restauração”: 32,5% - ainda assim abaixo dos 42,4% que se registavam em Abril de 2017, ainda segundo o GEP. Destacam-se ainda os sectores das “actividades administrativas e serviços de apoio”, com 28,1%, das “actividades de saúde humana e apoio social”, com 24,6%, da construção, com 23,7%, e da “captação, tratamento e distribuição de água”, com 21,6%.
No somatório dos trabalhadores portugueses por contra de outrem, 22,1% dos trabalhadores a tempo inteiro por conta de outrem ganhavam o salário mínimo nacional, em Outubro de 2018, contava o GEP. Esta percentagem tem variado muito: eram apenas 9,4% em 2010, ano em que o valor pago era de 475 euros brutos, estava nos 25,7% em Abril de 2017 (557 euros brutos). Isto acontece porque, se o salário mínimo aumenta e os outros não, “as pessoas imediatamente acima são ‘engolidas’ nesta categoria”, como lembra o investigador Frederico Cantante, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do Instituto Universitário de Lisboa.
Em Outubro do ano passado, estavam, portanto, nos referidos 22,1%. São mais mulheres do que homens (26,8% e 17,9%), respectivamente, o que demonstra que a desigualdade salarial não poupa as fasquias mais baixas dos rendimentos. Quanto a idades, entre os jovens com menos de 25 anos, a proporção de trabalhadores com salários iguais ao salário mínimo nacional “manteve-se próxima dos 30%”, ainda segundo o GEP, referindo-se ao primeiro trimestre deste ano. Já entre os 25 e os 29 anos de idade, 23,6% dos trabalhadores a tempo inteiro por conta de outrem ganhavam o salário mínimo. A proporção baixa para os 21,8% no universo dos trabalhadores com mais de 30 anos de idade.
Valorização de 14% em quatro anos
Nas contas do GEP, entre Abril de 2018 e Abril de 2019, houve menos 12 mil trabalhadores a declarar o salário mínimo. O que leva o Governo a concluir que o crescimento do emprego em 4,2% verificado no primeiro trimestre deste ano se traduziu na criação de postos de trabalho remunerados acima da remuneração mínima legal – instrumento criado em 1974. O objectivo então era duplo: “abrir caminho para a satisfação de justas e prementes aspirações das classes trabalhadoras e dinamizar a actividade económica”.
Mas nem sempre, ao longo destes 45 anos, os propósitos foram cumpridos. Entre meados de 2012 e meados de 2014, por exemplo, não houve aumentos do salário mínimo. A pretexto da presença da “troika” em Portugal, o valor manteve-se nos 485 euros brutos. E, no capítulo dedicado à pobreza e exclusão social, o próprio GEP reconhece que a taxa de risco de pobreza entre a população que trabalha se mantinha nos 9,7% em 2017. Teria sido pior se, entre 2016 e 2019, o salário mínimo nacional não tivesse aumentado perto de 19% em termos nominais, “o que se traduziu numa valorização real próxima dos 14%”.
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“A relação entre risco de pobreza e salário mínimo não é linear, até porque a taxa de risco de pobreza é calculada em termos de agregado enquanto o salário se refere ao indivíduo, mas é verdade que, num país em que os salários representam entre 75% a 80% dos rendimentos dos agregados, o salário mínimo pode ser um instrumento decisivo no combate à pobreza”, enfatiza Frederico Cantante. Para o investigador, é “absolutamente necessário” que o país continue a aumentar o salário mínimo de forma “gradual mas ambiciosa”. “Penso que há espaço para se ser um bocadinho mais ambicioso do que os 635 euros”, considera.
E justifica: “Um dos pontos positivos da anterior legislatura é que permitiu constatar que o aumento do salário mínimo em quantias relativamente consideráveis não teve como impacto directo o aumento do desemprego e a diminuição do emprego, como tinha sido veiculado no tempo da ‘troika’ e do governo liderado por Pedro Passos Coelho.”. Acresce que “o aumento do salário mínimo tende ainda a fazer com que os trabalhadores que ganhem um pouco acima sejam também beneficiados, porque independentemente da negociação colectiva, algumas empresas sentem-se obrigadas, até como forma de atraírem os trabalhadores, a pagar um pouco acima do salário mínimo”.
Na óptica de Carvalho da Silva, sociólogo e ex-líder da CGTP, para além da discussão “sempre importante” do salário mínimo, o país precisa é de mudar o seu perfil económico. “Houve uma política de desvalorização do trabalho em nome da competitividade cujos resultados são agora visíveis na fuga da mão-de-obra qualificada. Se tivermos um salário mínimo de 750 euros em 2023 mas a Espanha chegar entretanto aos 1300 ou 1400 euros, o problema vai-se manter”, alerta, para sublinhar que, “sem políticas de mobilidade e de transportes e de acesso à saúde, por exemplo, o país continuará a ver fugir a sua mão-de-obra qualificada”.
A esperança de Catarina Sousa e do marido é que na Escócia o filho possa ter acesso a outro mundo que não seja o de tostões contados até ao limite todos os meses. “Eu estudei até ao 12º ano, fui subchefe, tenho currículo e a língua inglesa não me atrapalha nada, se não me deixam viver com dignidade cá, saio”, resigna-se a operária.