12.11.20

“Há empresas que obrigam as pessoas a ir trabalhar mesmo estando infetadas e isso gera ansiedade e desespero”

Helena Bento, in Expresso

Consequências psicológicas do vírus existem, isso já se sabe, mas na sua origem começam a estar agora razões diferentes. Antes havia ansiedade e outros sintomas devido a “situações de estigma”, agora “há o medo de voltar a ser contagiado” e preocupação com a “gravidade da doença e suas sequelas”. “A pessoa encontra-se estável mas tem um grande receio de necessitar de um ventilador de um momento para o outro”, diz Eduardo Carqueja, diretor do Serviço de Psicologia do Hospital de São João, no Porto, que tem dado apoio psicológico a doentes infectados com covid-19 seguidos no hospital

As consequências psicológicas do vírus da covid-19 são indesmentíveis e, a acreditar nos estudos que têm sido publicados, são também muitas. A quase uma em cada cinco pessoas infectadas com o vírus da covid-19 foi diagnosticada depressão, ansiedade ou perturbação do sono (insónias) nos três meses que se seguiram à infeção, segundo um estudo realizado por investigadores da Universidade de Oxford, e publicado na terça-feira.

É uma realidade que Eduardo Carqueja conhece bem, ou não tivesse o serviço de que é diretor — o Serviço de Psicologia do Hospital de São João, no Porto — a dar apoio psicológico a pessoas infetadas com o vírus que estão a ser seguidas no hospital, em alguns casos há vários meses. Há “ansiedade” e “muitos receios”, sobretudo o “receio de voltar a ser contagiado”. E se, no início, se destacavam as situações de estigma contra profissionais de saúde infetados - um deles viu ser colocado, aliás, “um monte de cocó à sua porta” - neste momento há mais preocupação com a gravidade da doença e as suas sequelas. “A pessoa encontra-se estável mas tem um grande receio de necessitar de um ventilador de um momento para o outro”, conta o especialista.

A quase uma em cada cinco pessoas infetadas com covid-19 foi diagnosticada depressão, ansiedade ou insónias, segundo um estudo britânico. Estes dados estão em linha com os do hospital São João?
Na primeira vaga da pandemia acompanhámos 450 pessoas a quem havia sido diagnosticado covid-19 e que estavam a ser seguidas no hospital de São João, no Porto. Destas, cerca de 40, isto é, 10%, manifestaram algum tipo de sintoma psicológico, e houve a necessidade de continuarem a ser acompanhadas por nós. Estou a falar de pessoas com ansiedade e muitos receios, pessoas que já tinham algum tipo de fobia e têm medo do contágio pelo vírus. Algumas delas são acompanhadas presencialmente, outras preferem continuar a receber apoio através do telefone.

Quais os principais sintomas que manifestam?
Muitas destas pessoas mantêm quadros de medo, medo da retoma mas sobretudo de voltarem a ser contagiadas. Isso é muito frequente. Há também reações àquilo que foi a sua vivência na altura em que estavam infetadas, que em alguns casos envolveu situações de estigma. E ainda fenómenos de maior ansiedade e alterações do sono — pessoas com sono intermitente, que acordam várias vezes com pesadelos, com insónias. Há, sobretudo, muito receio associado ao facto de não se saber quando é que a pandemia vai acabar. São pessoas que, devido à infeção pelo vírus, passaram por uma experiência intensa e, com este prolongamento, parece-lhes que o caminho que iniciaram há meses não vai ter fim. Também temos algumas situações de pessoas que tinham perturbações obsessivas e cujos quadros se agravaram face ao receio de contágio.

E depressão?
Quadros graves de depressão, que exijam muita medicação, não temos tanto. Temos sobretudo sintomatologia decorrente da vivência destas pessoas. O que não pode ser, claro, descurado. São sintomas que causam desconforto psicológico e sofrimento.

Falou da questão do estigma. A que situações em concreto se refere?
Situações que envolveram profissionais de saúde que estavam infectados com o vírus. Tivemos conhecimento de casos em que foram colocados papéis nos prédios onde vivem com mensagens pejorativas e insultos. Coisas como: “Não queremos aqui pessoas que tragam doenças” ou “Vai viver para outro sítio”. Há também o relato de alguém que terá colocado um monte de cocó à porta desse profissional de saúde. Várias pessoas queixaram-se de ser olhadas pelos vizinhos como as causadoras de todo o mal no edifício onde vivem e de se sentirem marginalizadas durante todo este processo. Viram as outras pessoas afastar-se de si e dizer coisas aos filhos como: “Não vás a casa dela porque está doente”. Hoje em dia já não acontece tanto, até porque os profissionais de saúde infetados também já não ficam tão isolados quanto ficavam antes. Continuam a ter cuidados mas retomam a sua vida e rotinas. Por outro lado, os casos positivos também aumentaram, portanto estar infetado já é uma realidade para muita gente.

Que situações estão agora na origem dos sintomas psicológicos?
Os sintomas que os pacientes manifestam nesta fase têm que ver, sobretudo, com o facto de a pandemia ainda não ter terminado. Muitas pessoas esperavam que, por esta altura, a situação já estivesse resolvida de uma forma ou de outra. Prepararam-se para uma corrida de cinco mil metros quando isto está a ser, afinal, uma maratona. Também estão mais preocupadas com a gravidade da doença e com as suas sequelas. Veem ser adotadas novas medidas muito mais restritivas e com um impacto direto nas suas vidas. Isto assusta e cria medos, medo de vir a contrair a doença, mas também de perder o emprego. Por causa disso, algumas até escondem o seu estado de saúde e a infeção com receio de serem penalizadas a nível laboral. Noutros casos, são as próprias empresas que obrigam as pessoas a ir trabalhar mesmo estando infetadas. Tudo isto gera ansiedade e desespero. São situações pontuais, ainda assim, não a maioria.

São mais os homens ou as mulheres que manifestam esses sintomas?
Curiosamente, não há grandes diferenças. Costuma dizer-se que os homens têm mais dificuldade em procurar apoio psicológico, mas nós não nos apercebemos disso. Curiosamente, e no caso de pessoas que perderam familiares, vítimas do vírus, até acompanhámos mais homens do que mulheres. Uma explicação possível é que as mulheres, por terem mais suporte familiar, não sentiram necessidade de ter um apoio continuado. Os homens, por seu lado, ficaram mais solitários. Também pode estar relacionado com o facto de o tratamento ser oferecido, de não terem de ser os pacientes a procurá-lo ou a deslocar-se para receber este apoio.

Lembra-se de alguma situação em que os sintomas psicológicos ou as queixas tenham sido diferentes do habitual?
As situações que se destacam são naturalmente as que envolvem condições de pobreza, tanto na primeira fase como agora. O impacto psicológico do vírus em famílias que vivem em casas pequenas, com uma sala, uma cozinha e um único quarto, é sempre maior. Confinar em espaços assim é muito difícil, a tensão aumenta. Há situações que se destacaram por outras razões. Ao longo do primeiro confinamento, tivemos algumas pessoas que perderam familiares a dizer que se sentiam aliviadas por não serem permitidos velórios: diziam que, ao menos assim, não tinham de passar por essa “farsa”. Há dias, uma senhora a quem foi detetado o vírus disse-me que se sentia muito contente porque ao menos assim, confinada em casa, não tinha de sair para a rua e lidar com pessoas. Normalmente, sentia-se ameaçada por quem passava por ela, com receio do contágio.

Neste momento, só acompanham doentes internados com covid-19. As consequências psicológicas são mais graves?
Sendo a condição clínica mais grave, também os sintomas psicológicos o são. Há um grande receio do agravamento da doença. A pessoa encontra-se estável mas tem um grande receio de necessitar de um ventilador de um momento para o outro. É precisamente isso que me dizem: “Eu estou agora bem mas o meu medo é que isto piore de repente”.