Rui Pedro Paiva, in Público on-line
Os Açores são a região com a maior percentagem de beneficiários do Rendimento Social de Inserção face à população. Os beneficiários dão grande importância ao apoio, que muitas vezes ainda é insuficiente face à realidade complexa em que estão inseridos.Várias casas iguais, pequenas, mas de diferentes cores, com a tinta já escassa. Algumas chegam a albergar famílias de 14 pessoas. Outras estão com a porta aberta e há àquelas não têm fechadura. Ali, toda a gente se conhece e, por isso, quem não é de ali e ali vai dá logo nas vistas. O bairro ficou conhecido por uma designação cunhada na rua. Um nome que é só um número: 13.
O bairro 13 fica em Rabo de Peixe e é uma das zonas mais pobres de São Miguel. É ali que Crisálida Vieira vive, em frente a um pequeno campo de futebol, com um relvado sintético já gasto, e com o mar em pano de fundo. “Eu sempre vivi aqui e é aqui que gosto de viver”, começa por dizer ao PÚBLICO, num tom assertivo e desinibido, característico dos rabo-peixenses: “Isso aqui é mais fama do que outra coisa”.
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Crisálida tem 21 anos, é casada e tem dois filhos: um rapaz com três anos e uma bebé de um ano. É o Rendimento Social de Inserção (RSI) que lhe ajuda a alimentar os filhos. “Se não fosse o rendimento, como é que era? Eu ia pedir esmola para a cidade. O abono não dá para um mês”. Recebe um apoio de 430 euros, um valor para quatro pessoas e que aumentou 80 euros no último ano, devido ao nascimento do segundo filho. Continua a ser insuficiente: “o fiado ajuda a viver”.
O marido de Crisálida é toxicodependente e não trabalha. Ela também não tem emprego, nunca teve, porque precisa de cuidar dos filhos. “Eu vou arranjar emprego? E os meus dois filhos? O emprego é bom, mas depois sou despedida e não tenho nem subsídio nem emprego”, diz. O RSI é para ela “uma grande ajuda” e serve para “pagar uma água, uma luz ou para comprar uma roupinha para os meninos”. E assim vai-se sobrevivendo.
Crisálida foi uma das 15.109 pessoas que receberam o RSI nos Açores durante o mês de Agosto. O rendimento mínimo, com ainda é popularmente chamado, tem sido a arma de arremesso política mais mediática dos últimos tempos. Sobretudo nos Açores: a região do país com o maior número de beneficiários do RSI quanto à sua população residente. Em Agosto, 6,1% da população açoriana (243 mil residentes) recebeu o RSI, enquanto a média nacional foi de 2,0%.
Naquele mês, os beneficiários dos Açores representaram 7,2% do número total do país, mas os indicadores até têm vindo a baixar. Em Agosto de 2019 existiam 16.253 beneficiários (7,8% do total nacional, equivalente a 6,6% da população açoriana) e no mesmo mês, um ano antes, 18.114 pessoas receberam o rendimento na região (8,1% do total nacional e 7,3% da população regional).
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Há dois anos que Emanuel faz parte desses números. Vive a escassos metros Crisálida. Tem 23 anos, tem o 9.ºano e é “doméstico” – di-lo sem qualquer pejo. “Não tenho problema nenhum em dizer que ajudo minha mãe com as tarefas todas da casa”, afirma. Recebe 180 euros de RSI, um “apoio muito importante para ajudar as pessoas”. Chegou a arranjar barcos numa carpintaria que, entretanto, fechou. “Não há trabalho, está difícil aqui e com a pandemia ainda está pior”, refere. Por isso, quanto às possíveis reduções no apoio, defende que por uns não podem pagar os outros. “Muita gente precisa do rendimento. Há pessoas que o podem utilizar mal, mas mesmo essas precisam do dinheiro. Se não fosse o rendimento, isto andava tudo a matar-se uns aos outros”.
O valor recebido por Emanuel é superior ao da média regional que, por sua vez, é o mais baixo do país. “As pessoas focalizam-se no facto de existirem muitos beneficiários do RSI nos Açores, esquecem-se que a prestação por beneficiário nos Açores é de longe a mais baixa do país”, explica ao PÚBLICO Fernando Diogo, professor da Universidade dos Açores e investigador Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.
Os números confirmam. Nos Açores, a prestação média por beneficiário paga em Agosto foi de 86,7 euros, enquanto o valor da segunda mais baixa foi de 116,7 euros, registada em Évora (organização por distritos). “E porque é que a prestação nos Açores é mais pequena? Porque as pessoas têm outros rendimentos, em maior número do que no resto pais”, explica o sociólogo, apontando os “biscates” e “trabalhos precários”, relacionados com a “especialidade produtiva da economia açoriana”, assente na agricultura, no turismo, na construção civil e na pesca. Dos números de Agosto, 45% dos titulares (a pessoa que recebe o subsídio em nome da família) apresentava outros rendimentos. “O RSI é mesmo para os mais pobres entre os pobres”.
Décia Amaral, 44 anos, conhece bem a precariedade de quem depende dos proveitos do mar. O marido é pescador e os dias não têm andando fáceis para quem anda na pesca. “Ele hoje não trouxe nada do mar, zero, não trouxe lula. Ontem ganhou dez euros. O que é que eu vou fazer com dez euros para uma casa de família”, questiona.
Décia já não mora no bairro, mas vive ali perto, numa das ruas que dão para o centro da vila. Vai esfregando as janelas da casa com água e sabão, uma prática rotineira devido à salinidade do mar. O que não lhe retira a atenção da conversa. Recebe 60 euros mensais de RSI e longe vão os tempos em que chegou a receber 350 euros.
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Décia sabe de cor o número do diploma que lhe impingiu um corte no RSI. “Foi o decreto de lei 70/2010, começaram a apertar e a primeira vítima fui eu. Cortaram o rendimento por causa da reforma dos meus pais”, diz, irritada. Há nove anos o seu valor de RSI foi reduzido por viver em casa do pais. É lá que reside há 25 anos com o marido.
Sempre foi doméstica porque “nunca” lhe chamaram do centro de emprego, a não ser para integrar um programa ocupacional durante nove meses em que fazia cinco horas por dia para receber 100 euros por mês. “Era uma injustiça! Se querem que eu trabalhe, eu faço as oito horas, mas é para ganhar um ordenado”.
Enquanto isso não acontece, Décia vai “fazendo contas” para pôr comida na mesa, quando o peixe não chega do mar. Contas dificultadas pelas dívidas acumuladas. “Se conseguir comer duas vezes por dia, já agradeço a Nosso Senhor. Se os meus cabelos fossem oiro, e eu pegasse neles para vender, ainda era pouco para pagar as dividas que eu tenho”, declara em voz alta e de sorriso aberto.
“Eu cá não recebo nada, já recebi o rendimento, mas foi há muitos anos”, comenta uma vizinha que acompanhou a conversa. Os 250 euros que Maria da Graça recebia de RSI foram-lhe retirados quando os filhos “fugiram da escola”. Tem 57 anos e uma deficiência motora, que a impede de trabalhar. Vive com o marido, com o filho, com a nora e os dois netos e não tem direito a RSI, nem pensão de invalidez, nem reforma. A pensão do marido de 410 euros sustenta a família. “Eu precisava tanto do rendimento, enquanto há outros para aí que têm e não merecem, nesse lugar é o que não falta”.
“Nunca pensei em vir a estar nesta situação”
O lugar é Rabo de Peixe, terra de heróis sofridos pelo mar, uma das maiores freguesias da ilha, com uma realidade demasiado complexa para caber num estigma. Uma terra que já se habituou a ser o símbolo dos problemas dos Açores. Ali encontra-se de tudo – para o bem e para o mal -, mas, à medida que o mar se aproxima, os flagelos sociais tornam-se evidentes. E continuam a persistir, ano após ano.
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Com nove mil habitantes, Rabo de Peixe é a maior freguesia do concelho da Ribeira Grande, praticamente o dobro da segunda maior freguesia. Se São Miguel tem 79% dos beneficiários de RSI nos Açores, o concelho da Ribeira Grande regista 28,8% do número total. Aquele concelho da costa norte da maior ilha açoriana tem também o menor índice de envelhecimento do país (36,8%), um dado a ter em conta para Fernando Diogo, uma vez que as crianças e jovens “são especialmente vulneráveis à pobreza”.
Um indicador também aplicável ao todo regional, porque os Açores são a região mais jovem e com mais pobres do país. A taxa de pobreza no arquipélago é de 31,8%, já após transferências sociais, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), enquanto a taxa nacional é de 17,2%. É provável que a pobreza nos Açores já tenha aumentado, consequência inevitável da pandemia da covid-19, mas a previsão não é confirmada pelo número de beneficiários. De Março para Abril, o apoio foi atribuído a mais 107 pessoas, mas desde ai tem vindo a diminuir e o valor de Agosto é inferior ao de Fevereiro (15.371).
Mas há quem tenha passado a receber o RSI devido às consequências da pandemia. João (nome fictício) é um exemplo. Tem 33 anos, é de uma freguesia rural de Ponta Delgada e saiu da escola aos 18 anos com o 11.º ano concluído. Estava ligado ao sector do turismo há seis anos e agora está sem trabalho desde Junho. Recebe um subsídio de 100 euros e sobrevive da “caridade”. “Nunca pensei vir a estar nesta situação, sempre me conseguir desenrascar toda a vida”, diz.
Os 100 euros “são importantes”, mas “não dão para muito”, nem para fazer uma vida sozinho. Sem querer fazer muitas previsões a longo prazo, João já pensa em voltar para casa dos pais, sete anos após ter saído. O dinheiro, esse, “não estica para tudo” e “não está nada fácil arranjar trabalho”.
Sobre atribuição do RSI, João, que não percebe “nada de política”, pede “atenção” quando se fala do rendimento. “Os políticos falam todos do rendimento mínimo, mas depois não saem do Parlamento. As pessoas não podem falar sem conhecer a realidade”. A realidade, esta, já é dura há muito tempo e o pior é que as previsões não são melhores.