18.12.20

Reforma do SEF: “Ser imigrante não é caso de polícia”

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

O que pensam as organizações que há anos trabalham no terreno e lidam diariamente com o sistema? Divisão entre a parte documental e policial é aprovada, mas pedem urgência para acabar com a demora dos processos.

Desde a saída da directora nacional, Cristina Gatões, que a restruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) tem estado em debate. A fusão com a PSP já parece afastada pelo ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e pelo próprio primeiro-ministro, António Costa.

Mas o que está no programa do Governo desde 2019, e foi reafirmado nos últimos dias, é a intenção de separar a parte policial e a parte administrativa de autorização e documentação de imigrantes. De acordo com Cabrita, esta reestruturação — acelerada em sequência da morte de Ihor Homenyuk a 12 de Março no centro de Instalação temporária do aeroporto alegadamente por três inspectores do SEF — envolve quatro ministérios: além da Administração Interna, Justiça, Negócios Estrangeiros e Presidência.

Pouco mais se sabe oficialmente. Ao PÚBLICO a secretaria de Estado para a Integração e as Migrações diz apenas que está a trabalhar “para reconfigurar a forma como os serviços públicos lidam com o fenómeno da imigração, adoptando uma abordagem mais humanista e menos burocrática, e assegurando que os imigrantes se relacionam com o Estado nos mesmos termos que qualquer cidadão”.

O que pensam as organizações que há anos trabalham no terreno e lidam diariamente com o sistema? Como vêem o SEF ideal? A divisão entre a parte documental e policial é unanimemente aprovada, mas com nuances. Uma coisa é certa: todos defendem que o movimento social deve ser ouvido e que é urgente acabar com a demora dos processos.

André Costa Jorge, director do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e da Plataforma de Apoio aos Refugiados, sublinha que o importante é haver uma “perspectiva diferente na forma como o SEF trata os imigrantes”. A mudança decisiva seria alterar este sistema que permite que as pessoas fiquem anos “com a sua vida em espera”. “Não é justo que as pessoas fiquem às mãos do SEF e do Estado numa situação de violência simbólica e sistémica, em que se sentem sozinhos, perdidos, contra uma montanha surda de burocracia que não dá resposta. Defendemos o Simplex no atendimento aos migrantes. É o Ministério da Administração Interna quem tem a faca e o queijo na mão.”

Contactado, o SEF confirma que as vagas para as autorizações de residência de trabalho estão totalmente preenchidas e que até Junho de 2021 estão agendados cerca de 24 mil atendimentos para este assunto.

Uma das propostas que já existem no programa do Governo, mas nunca foi implementada, é a criação de um visto para procura de trabalho — o que teria evitado situações como a de Ihor Homenyuk, barrado à entrada de Portugal alegadamente por vir procurar emprego sem ter visto para tal, defende. “Só foi detido porque o funcionário determinou que ele vinha para procurar trabalho.”

André Jorge contextualiza: “Temos de olhar para as condições de detenção que potenciam abusos e as alternativas. Há muitos anos que pedimos que se implemente nos aeroportos o que já existe na Unidade Habitacional de Santo António no Porto [um centro de detenção do SEF], onde funciona uma parceria com o JRS, a Organização Internacional para as Migrações e a Médicos do Mundo.”

Já sobre a separação da parte policial e documental do SEF André Jorge acha que, a acontecer, “não quer dizer que funcione necessariamente melhor”: “Se o sistema é ineficaz, dividir em dois porventura vai até criar mais entropia.”

"Despoliciar o processo de acolhimento"

Há quem reivindique há anos esta separação, como Timóteo Macedo, porque considera que os documentos dos imigrantes devem ser processados nos serviços públicos usados por todos, “com tratamento igual, mesmo a nível de preços”. “Não se justifica um imigrante pagar um balúrdio” para se regulamentar. O dirigente da Solidariedade Imigrante (Solim) defende a necessidade de se tratar dos documentos fora da polícia: “Não devemos olhar para os imigrantes com desconfiança, como potenciais terroristas e mal feitores.” À polícia cabe, então, “fiscalizar fronteiras e máfias organizadas.”

Para Timóteo Macedo no centro do debate devem estar os imigrantes e não a polícia: “Há uma preocupação muito latente sobre como se vai organizar a parte policial do SEF, mas o fundamental é saber se os direitos das pessoas vão ser respeitados. As ilegalidades em relação aos prazos e cancelamentos que o SEF comete são crimes de violação das leis. Se isso não for ter tido em conta, não vale a pena estarmos a falar de reorganização.”

Veemente contra a fusão do SEF com a PSP, Jakilson Pereira, do Moinho da Juventude, justifica: “Entregar o SEF à PSP é entregar os imigrantes à perseguição. Ser imigrante não é caso de polícia”, afirma.

Concorda “totalmente” com a separação anunciada, e defende que o processo de regularização seja tratado numa Loja do Cidadão ou numa conservatória, não por polícias mas por funcionários públicos. Isso “afasta a colagem de imigrantes a um processo-crime”. E justifica: “Ninguém diz que se deve extinguir a investigação sobre os crimes [ligados às redes de imigração ilegal ou tráfico de seres humanos]. Essa contra-narrativa é criada para alimentar a ideia de que é preciso colocar os imigrantes sob vigilância. Quando um português é vítima de tráfico de seres humanos é a investigação criminal que toma conta do caso, não é uma conservatória.”

Também a presidente da Casa do Brasil, Cyntia de Paula, sublinha a necessidade de o movimento associativo ser ouvido. Mas é assertiva: “O novo modelo não pode ser policial. Precisa de ser um modelo que não tenha racismo estrutural e xenofobia. O SEF age como polícia, coloca as pessoas imigrantes como criminosas quando elas estão a tratar das questões regulamentares. É fundamental despoliciarmos o processo de acolhimento.”