28.12.20

“Tudo o que tinha foi enfiado em dois sacos. Foi como se me tivessem enfiado a mim naqueles sacos”

Natália Faria, in Público on-line

Maria Júlia Costa e Almeida, 93 anos, utente d’ O Lar do Comércio, em Matosinhos. Relato de uma conversa mantida através de vídeochamada, dada a interdição de entradas e saídas do lar.

Quando fiz 93 anos de idade, no dia 1 de Maio, estávamos aqui largados no bar do lar. Tinham-me batido à porta do quarto, pelas oito e meia da noite, e disseram-me: “Pegue na sua almofada e vá lá para baixo”. E eu fui, sem saber o que se passava. Estava o bar com umas 30 camas em fila, com uma cadeira cada, e ali ficámos durante três semanas. Nem direito a banho tivemos. A única pessoa que lá entrou durante esse tempo todo foi o senhor Amândio com a comida. O que me valeu foi que, no momento em que me foram chamar, calhou de estar com o telefone e enfiei-o no bolso do roupão. E com isso fui podendo falar com os meus filhos, porque aqui dentro ninguém nos dizia nada. Mas não gosto muito de falar disso.

Sabe o que me aconteceu nesse dia em que fiz 93 anos? O meu filho arranjou maneira de me fazer chegar um aparelho, como se fosse um telemóvel, e, quando carreguei no botão, apareceu-me um filme com a minha família toda a dar-me os parabéns. Foi uma surpresa tão boa, tão boa. Isso e a rosa que a minha filha Isabel também me fez chegar. Até a fotografei depois, já com este telemóvel que a minha afilhada me deu – ela sempre que muda para um telemóvel de gama alta dá-me o antigo - e que já me permite vê-los a todos por vídeo: filhos, netos e bisnetos. E olhe que eu ainda sou do tempo em que apareceram aquelas máquinas – não me recordo do nome - em que mandavam uns papéis de Lisboa e no mesmo segundo estava a apanhá-los no Porto. Eu não saía de ao pé daquela máquina. Como é que podia ser tal maravilha? E o mesmo digo agora: como é possível estarem as pessoas a ver-se, estando tão distantes? Já viu como o mundo mudou? Mudou muito, muito, muito.

Depois daquelas três semanas em que estivemos no bar (e durante as quais nem os dentes pudemos lavar, porque nem tempo deram para levar escova ou pasta e também ninguém no-las ofereceu) mudaram-nos para o infantário, onde passámos mais 15 dias. E ainda foi pior: num sítio como no outro, só havia uma sanita. Conseguíamos lavar a cara e por baixo no bidé e mais nada. Andávamos todos fardados porque ninguém tinha tido tempo de trazer roupa.

Eu no início fiquei muito nervosa porque não tinha a medicação comigo. E, como estava aflita, liguei para a farmácia, onde são todos muito meus amigos e já sabem do que sofro, para ver se me mandavam os meus comprimidos. E lá mandaram. Nessa altura, a gente não sabia o que era a covid nem nada. E eu julguei que estava bem, porque não me doía nada. Só depois é que a minha filha Manuela me explicou que uma daquelas coisinhas que me tinham metido no nariz tinha apanhado alguma coisa. Foi ela que me trouxe uma pilha para eu na altura poder ir à casa de banho de noite, porque eles a uma certa hora desligavam a luz e nós ali ficávamos às escuras. Ainda a tenho comigo, à pilha, até lhe chamo Manelinha.

Quando pude voltar ao meu quarto tive outra decepção. Tudo o que tinha na parede foi enfiado em dois sacos. Senti uma tristeza medonha. A minha vida estava toda naquela parede: fotografias, desenhos, enfeites de Natal, um vaso com flores de papel, recordações disto e daquilo. Toda a gente que cá vinha ficava admirada, porque aquilo ficava muito bem, pronto. Quanto a estar mal ou bem, cá me vou remediando, mas custa-me muito agora olhar para aquela parede e ver aqueles buracos todos.

Como tenho uma pequena estante fixa na parede, há tempos lá arranjei coragem para abrir um dos sacos e recuperei algumas fotografias. Se eu rodar o telemóvel até lhas consigo mostrar, mas veja lá não me desapareça: esta sou eu (gosto muito desta fotografia porque, e desculpe-me, mas eu aos 20 anos era mesmo muito bonita); esta mais pequena é do meu marido, Manuel, que morreu aos 60 anos, e aqui estão os meus três filhos novinhos ainda.

Quando fiz a inscrição para poder vir para aqui, há 42 anos, este lar era um sonho: tinha cabeleireiro, biblioteca, sala de jogos, com um bilhar e uns joguitos de mesa, muita coisa. Havia dois médicos cá dentro. E havia ginástica e canto coral. Na altura, fiquei encantada e disse: “Se ficar viúva, é para aqui que venho”. E, no início, foi bom. Antes disto ter começado a morrer, eu saía e entrava quando queria e os meus filhos também, que eu, graças a Deus, tenho uns filhos que fazem tudo por mim, admito que por ter sido uma boa mãe para eles. Enquanto pude, fiz questão de os levar a todo o lado: a Lisboa, para lhes mostrar aqueles museus todos, ao cinema, e se se fosse preciso mentir na idade para que pudessem entrar, mentia. Queria que fossem instruídos como eu era antes de a doença ter começado a dar cabo de mim.

Sempre fui muito amiga de ajudar toda a gente - a minha mãe, a minha sogra, uma tia-avó, fui eu que tratei delas todas. Já eu, não gosto que cuidem de mim. Pode ser uma tolice, mas é assim que sou. Nunca quis maçar ninguém. Por isso é que não penso sair do lar. Nem nesta época de festas, porque, se sair, já sei que depois tenho de ficar em quarentena e antes quero morrer do que ter de passar por isso outra vez. Ainda se me pusessem de quarentena aqui no meu quarto, onde sempre me vou entretendo com as minhas palavras cruzadas, lavando uma peça ou outra de roupa que ponho a secar na varanda, onde posso beber as minhas quatro garrafinhas de chã. Há dias, pedi ao meu filho que me trouxesse um papel com o hino francês escrito. O português ainda sei todo, mas do francês já estava esquecida. E ele arranjou-mo. Já me consigo pôr agora a cantá-lo baixinho. Por isso, se me deixassem fazer a quarentena aqui, ainda admitia. Mas não é assim que eles fazem. Põe-nos num sítio e limitam-se a levar a comida numa marmita: se eu gostasse comia, se não gostasse não comia. Não.

Custa-me muito não poder estar um bocadinho com os meus filhos, com os meus netos. De sair já nem tanto porque envelheci muito nos últimos meses e já não me consigo mexer como dantes. Há tempos pedi ao meu filho que me arranjasse um banquinho, só para eu poder crescer mais um palmo para os poder ver pela janela quando me vêm trazer as encomendas. Ainda não me medi, mas parece que já minguei. Com o banco, eles dizem a hora a que chegam, e eu ponho-me à janela a dizer adeus e a mandar beijinhos. Com isso e com o telemóvel, lá vou andando.

Se a vacina chegar aqui, e as coisas começarem a melhorar cá dentro e lá fora, vou pedir que deixem entrar o meu filho para ele me colocar as coisas todas na parede outra vez. Não sei o que me parece olhar para o chão e ver as coisas todas enfiadas nos sacos. Foi como se me tivessem enfiado a mim naqueles sacos. Será por isso que também ando mais abatida.

Mas, olhe, não ligue. Acredito que as coisas vão melhorar e, enquanto falei, estive entretida. Já sabe que não estive sentada, porque não me dou parada. Fui falando e andando aqui pelo quarto. Desculpe se a chateei. Sei que aí por fora andam todos muito ocupados. Se calhar de voltar a falar com a minha Manuela, diga-lhe que não se esqueça das rabanadas que lhe pedi.

Texto escrito a partir de uma conversa com Natália Faria