21.12.20

"No Porto há fome, em muitas casas e na rua". O alerta das paróquias ao Estado e à sociedade

Margarida Cardoso, in Expresso

A Paróquia Nossa Senhora da Conceição é apenas um exemplo do que se está a passar na cidade. Antes da pandemia servia 160 refeições por dia. Agora serve 550. Das 123 mil refeições que serviu desde o início da pandemia, 75 mil foram para crianças com menos de 10 anos

É um apelo inédito da igreja do Porto: "A pandemia levou a fome a muitas casas, para além da rua, e as capacidades das paróquias para acudirem a tanta situação de emergência está a esgotar-se". É assim que os párocos da cidade dão a conhecer a sua preocupação num comunicado que é também um alerta para o Estado e para a sociedade civil porque perceberam que "não poderão ir muito mais além" e "os números dos que procuram comida continuam a aumentar".

A Paróquia Nossa Senhora da Conceição, no Marquês, é apenas um exemplo do que se passa na cidade, mas pode ajudar a compreender a dimensão de um problema que parece crescer como uma bola de neve: em 2019, o grupo de voluntários que aqui trabalha servia, em média 160 refeições por dia, entre as 17h30 e as 20h00. Agora, está a servir 550. "Entre o início da pandemia, em março, e o dia 14 de dezembro, servimos 123.895 refeições. 75.145 foram para crianças com menos de 10 anos", contra o padre Rubens Marques, que lançou o projeto Porta Solidária para responder às necessidade dos que ficaram sem abrigo noutra crise, em 2009, e mesmo assim se surpreende com a forma como vê, agora, a fome alastrar.

"Para além dos sem-abrigo, passamos a ter os reformados que vivem sozinhos, num quarto, e só têm dinheiro para a renda, e temos cada vez mais pessoas aflitas depois de perderam os empregos na pandemia. Em maio, fizemos um inquérito e concluímos que os desempregados eram 52% das pessoas apoiadas na Porta Solidária", refere este padre que tem visto aumentar, também, o número de cidadãos estrangeiros à procura de ajuda, "em especial brasileiros que estavam no sector da restauração ou no turismo".

No verão, "tivemos grande afluência de jovens que trabalhavam em empresas de entrega ao domicílio, personal trainers dos ginásios, esteticistas, mas agora desapareceram porque foram voltando a ter trabalho", refere Rubens Marques consciente de que no trabalho que faz com um grupo de 73 voluntários fixos acaba por ir recebendo o impacto de todas as variações da atividade economica ao longo da crise.

"TODOS OS QUE AQUI VÊM PRECISAM MESMO DE AJUDA"

E todo o trabalho se ressente, também, das regras impostas pelas medidas de segurança. "As pessoas comiam na igreja, agora tudo passa pelo take away, o que exigiu um enorme esforço de adaptação em apenas dois dias em termos de logística, para passar a oferecer o serviço no alpendre, já embalado", comenta.

Tem uma certeza: "Todos os que aqui vêm precisam mesmo de ajuda senão não se sujeitavam a ficar tanto tempo à espera numa fila debaixo de chuva torrencial, como acontece agora, ou sob sol intenso, como aconteceu no verão".

A Paróquia Nossa Senhora da Conceição serviu mais de 7.500 refeições a crianças com menos de 10 anos entre março e 14 de dezembro

Em Campanhã, na zona Oriental do Porto, o seu colega Fernando Milheiro ajuda mensalmente 70 famílias, com cabazes alimentares, a que junta alguns casos em que a própria paróquia paga contas de água e luz. Quem precisa de alimentação diária é encaminhado para o Marquês porque Campanhã não tem estrutura para oferecer esse apoio. "Aqui, o número de famílias apoiadas tem-se mantido estável porque o que fazemos é apoiar quem não tem outro apoio. Quando os casos passam a ser acompanhados por outra entidade, vamos prestar socorro a outros", explica já a preparar a tradição do Natal dos Sós que promove desde 1987 na noite de consoada com o intuito de combater a solidão. Este ano, como as pessoas não podem juntar-se para a ceia em grupo no salão paroquial, haverá ceia distribuída em 21 casas e 70 cabazes especiais de Natal.

"É URGENTE COLOCAR O PROBLEMA DA FOME NA AGENDA"

Um inquérito que juntou 16 das 26 paróquias da cidade apresenta as contas dos apoios prestados para mostrar o que está em causa. Desde março, estas paróquias doaram 665 mil euros para travar a fome e dar outros apoios sociais não institucionais. Em cabazes e alimentos os diferentes grupos paroquiais entregaram 81.330, tendo beneficiado 942 famílias num total de 2.558 pessoas. Em medicamentos, farmácia, rendas de casa, faturas de eletricidade e água somam mais 63.532 euros. Nas refeições oferecidas nas paróquias, o valor ascende a 506.543 euros.

Por causa das medidas de segurança, a logística do serviço de apoio mudou e as refeições passaram a ser servidas em take away, o que obriga as pessoas que pedem ajuda a esperar muito tempo numa fila

Assim, as paróquias do Porto vêm deixar clara a sua posição e dizer que "o Estado tem que responder ao problema do muito alto desemprego real quando há tantas pequenas empresas a fechar por não poderem aguentar mais". E "é necessário que a sociedade civil colabore no apoio aos que, de repente, se tornaram pobres ou caíram em situação de desespero", acrescentam num comunicado em que não esquecem uma nota "ao grande trabalho realizado pela Câmara Municipal e pelas associações voluntárias que servem alimentação na rua".

"Parece urgente que se reforcem as respostas e seja definido um programa integrado de apoio nesta que é a maior crise das últimas décadas", conclui este apelo.

E porque surgiu este movimento de alerta sem precedentes? "Porque é urgente colocar o problema da fome na agenda dos media e dos políticos", responde Rubens Marques.