22.12.20

Só um em cada dez crimes de tráfico de pessoas registados pelas polícias foram julgados

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Nenhum dos seis acusados no processo relativo à maior operação do SEF de combate ao tráfico para exploração laboral foi condenado neste âmbito e apenas foi confirmado o auxílio à imigração ilegal.

A sentença em tribunal daquela que foi designada em Dezembro de 2018 “a maior operação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no combate ao tráfico de pessoas” resultou na absolvição de todos os oito acusados desse crime.

O Ministério Público tinha igualmente imputado a estes cidadãos romenos e moldavos, com residência em Portugal e actividade no Baixo Alentejo, crimes de auxílio à imigração ilegal, pelos quais foram condenadas seis pessoas (cinco homens e uma mulher) e as duas sociedades por eles constituídas desde 2013.

Para trás, ficaram as acusações de tráfico de pessoas, que se apoiavam nos relatos de eventuais vítimas e testemunhas, que não foram valorados como prova por não ter sido confirmada a sua gravidade nos testemunhos dirigidos ao tribunal (presenciais ou registados em fase anterior para memória futura).

Tais depoimentos foram recolhidos na fase de inquérito pela autoridade policial com competência, neste caso a GNR, e depois pelo SEF encarregue da investigação liderada pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (do Ministério Público) de Évora.

Seis trabalhadores romenos começaram por denunciar “condições muito duras, constantes ameaças verbais e insultos” no posto territorial da GNR em Dezembro de 2016. “Por se sentirem receosos solicitaram auxílio à Guarda Nacional Republicana”, lê-se no processo consultado pelo PÚBLICO.

Queriam regressar à Roménia mas tinham sido ameaçados pela pessoa para quem trabalhavam e que ficara com os seus passaportes. Três meses depois, outro grupo (cinco cidadãos romenos e moldavos) denunciou que a cidadã romena para quem faziam trabalhos agrícolas nada lhes pagava, cobrando-lhes valores sem qualquer controlo relativo ao alojamento, à alimentação (que não lhes dava). Contaram que passavam frio e fome, além de serem sujeitos a frequentes ameaças. Estes relatos constam do despacho de acusação.

Dados globais

Entre 2015 e 2019, houve 282 crimes registados pelas autoridades policiais. Alguns deram origem a inquéritos outros não resultaram em nenhuma investigação (por exemplo, por não haver indícios de crime suficientemente fortes). Destes, apenas 30 crimes deram origem a processos cujo julgamento chegou ao fim. Tais números, solicitados pelo PÚBLICO ao Ministério da Justiça (MJ), permitem concluir que, nos últimos cinco anos, só cerca de um em cada dez crimes por tráfico de pessoas chegou a tribunal e foi alvo de uma decisão. Alguns (o ministério não quantifica, mas serão poucos) continuarão ainda em julgamento e aguardam sentença.



Estes são dados globais contidos nos cinco anos, embora os crimes registados pelas polícias num determinado ano possam ou não corresponder aos processos em julgamento terminados nesse ano, ressalva o gabinete de imprensa do MJ. O número de inquéritos abertos para estes crimes (tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal) não foram enviados “por não estar disponível a informação desagregada por tipo de crime”, acrescentou.

Ainda de acordo com as estatísticas disponíveis, entre 2015 e 2019, houve 115 acusados em julgamentos e 63 condenações – ou seja, quase metade das pessoas acusadas foi absolvida.

Neste recente processo, que terminou com a leitura da sentença em 4 de Dezembro passado, o Tribunal de Beja condenou, sim, mas por auxílio à imigração ilegal, não por tráfico. O colectivo presidido pela juíza Ana Reis Baptista decretou uma pena de prisão efectiva de quatro anos e nove meses para o principal arguido do grupo, e penas suspensas para os restantes cinco condenados.

No acórdão enviado a pedido do PÚBLICO, foi confirmada “a intenção lucrativa” dos actos de “favorecimento ou facilitação da entrada e permanência ilegais de cidadãos estrangeiros em Portugal”, prevista no Código Penal.


Foi porém excluída o cenário de “condições desumanas ou degradantes” subjacente, nalguns casos, ao crime de auxílio à imigração ilegal da lei criminal portuguesa, e isso permitiu a condenação a penas suspensas.

"Sem manobra fraudulenta"

Não foi decidida nenhuma compensação aos trabalhadores como tinha pedido o MP. Para isso, teria sido preciso o tribunal considerar os 58 trabalhadores como vítimas, se concluísse que tinham sofrido “um dano emocional ou moral" ou patrimonial, mas não o fez.

As condições de vida precárias na Moldávia explicam a vinda para Portugal destes cidadãos, disse a juíza que invocou a vinda por “livre iniciativa” dos trabalhadores para rejeitar a existência de um crime de tráfico de pessoas.

Do mesmo modo, excluiu que estas pessoas tenham sido recrutadas e trazidas para Portugal “através de ardil ou de manobra fraudulenta” ou que tenham sido sujeitas a abuso de autoridade, resultante de uma dependência económica (ou outra) pelo que, concluiu, não foi provado o crime de tráfico de pessoas.

O grupo trouxe em poucos anos, da Roménia e da Moldávia, mais de 255 pessoas (a maioria moldavos) a quem diziam oferecer contratos que a esmagadora maioria nunca teve. Eram colocadas em habitações húmidas, sem aquecimento e mal conservadas onde quatro ou cinco pessoas partilhavam quartos ou divisões em contentores pré-fabricados de 12 metros quadrados.

Por esse alojamento pagavam um euro por dia ou 50 euros por mês, quantias que lhes eram descontadas das horas que trabalhavam a valores abaixo dos mínimos previstos nos contratos colectivos neste sector.

Dezenas de empresas agrícolas portuguesas e espanholas recorreram aos serviços das sociedades constituídas pelos arguidos – a Verde Prioritário Lda e a Semelhantajuda Unipessoal, Lda, igualmente condenadas ao pagamento de multas de 75 mil euros.

De acordo com a investigação, e como consta no processo, só em 2018, três empresas constituídas pelos arguidos (das quais duas são as condenadas) facturaram 2,5 milhões de euros, e registaram lucros de mais de um milhão (1,1) de euros, com a utilização do trabalho destes cidadãos estrangeiros.

O tribunal considerou que as empresas agrícolas luso-espanholas que recorreram aos serviços das condenadas, e que também foram investigadas, não tiveram conhecimento da situação ilegal dos trabalhadores. Teve também em consideração o facto de os empresários terem uma necessidade urgente de reunirem muita mão-de-obra em pouco tempo, em épocas curtas de culturas intensivas, o que justificou o facto de nem sempre terem procurado saber em que condições estes cidadãos moldavos e romenos estavam em Portugal. Os processos foram suspensos mediante pagamento de 400 euros a instituições de solidariedade social.

A principal dessas empresas facturou quase meio milhão de euros em 2018, através da mão-de-obra fornecida pelos arguidos em Beja. Foi neste distrito, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, que foram identificados já em 2019 cidadãos da Moldávia a trabalhar nas explorações agrícolas como representando a esmagadora maioria dos 44 casos confirmados de tráfico de pessoas nesse ano em Portugal.