Ana Maria Henriques, in "P3"
Por causa de uma intoxicação alimentar, Sara Almeida e Jack Lewis decidiram fazer voluntariado com refugiados. Juntos viajaram até à ilha de Lesbos, na Grécia, e lá ficaram cinco semanas. "Uma das coisas que mudou em nós foi o respeito que temos por qualquer pessoa que encontremos na rua", confessou a jovem portuguesa ao P3. Um testemunho na primeira pessoa
“Depois de termos vivido na Nova Zelândia por um ano, o meu namorado [Jack Lewis] e eu fizemos uma viagem pela Ásia. Quando estávamos no Laos tivemos uma intoxicação alimentar e ficámos presos no hotel, onde a CNN era o único canal em inglês. Foi no dia em que o Aylan Kurdi morreu. Todas as notícias que víamos eram sobre refugiados. Fez-se um clique e decidimos que tínhamos de fazer algo. Estávamos numa fase sem compromissos, sem emprego, sem casa e tínhamos algum dinheiro poupado. Começámos logo a tentar contactar organizações e, três ou quatro dias depois, os Médicos do Mundo disseram-nos onde éramos precisos e marcámos a viagem. Tínhamos completa noção de que não percebíamos nada do que se estava a passar e deixámos tudo a cargo da organização.
Fizeram-nos uma espécie de entrevista, pediram-nos currículos e diplomas da universidade e enviaram-nos um e-mail a dizer que o sítio onde precisavam de nós era Lesbos, na Grécia. Chegámos à ilha a 2 de Outubro e ficámos lá, no campo de Moria, perto de cinco semanas.
O primeiro impacto foi logo na viagem. Íamos num voo ‘charter’ de uma empresa de viagens e o avião ia cheio de turistas que bebiam ‘cocktails’. Lembro-me de o piloto dizer para nos divertirmos nas férias e fomos os únicos que, quando saímos do avião, não fomos ter com os agentes de viagem. Ao apanharmos o autocarro do aeroporto para a cidade vimos logo que estávamos no sítio certo: em todos os espaços verdes havia sinais de que já lá tinham estado pessoas a viver ou a acampar, em algumas rotundas ainda havia pessoas.
Os coletes salva-vidas também faziam parte da cidade. Era impossível ignorar o que estava a acontecer. Só fomos dois dias ao Norte da ilha, aonde chegavam os barcos, a 50 quilómetros do campo. Essa é a distância que os refugiados têm que fazer a pé. Era surreal porque o caminho estava cheio de coletes, em penhascos ou em cima de árvores, e conseguíamos imaginar as pessoas a chegar lá, a meio da noite. Os escuteiros limpavam as praias, mas no dia seguinte estavam na mesma. Muitos dos coletes não eram de boa qualidade e os refugiados, em vez de apertarem o fecho, amarravam as tiras para se sentirem seguros. Quando chegavam, rompiam com uma faca para os tirarem e deixavam-nos.
No primeiro dia, quando decidimos ir passear no centro da cidade, voltámos para casa 10 minutos depois porque eu estava com medo. Eram milhares de refugiados à minha volta. O porto onde as pessoas apanham o ‘ferry’ para Atenas é no meio da cidade e, quando já compraram o bilhete ou estão à espera do barco, elas amontoam-se todas no centro. No dia seguinte percebi quão estúpida tinha sido. Quando lá fomos durante o dia foi uma situação completamente diferente: todas as pessoas que conhecíamos davam-nos comida, faziam perguntas, abraçavam-nos, agradeciam-nos. A partir daí percebi que havia uma discrepância entre aquilo que ouvia nas notícias e a realidade.
Num dia normal começávamos às 14horas e acabávamos pelas 22horas. Escolhemos esse turno porque era o que tinha menos voluntários e muita gente não o queria fazer. No campo onde estávamos é feito o registo dos refugiados e os Médicos do Mundo têm um gabinete. Os contentores estavam organizados da seguinte forma: polícia, roupas, Médicos do Mundo. Toda a gente que passava pela polícia passava também por nós, que estávamos à porta do contentor das roupas e víamos aquilo de que as pessoas podiam precisar. Havia crianças sem sapatos ou sem casaco, pessoas molhadas do barco. O nosso trabalho era distribuir o mais possível por toda a gente.
O drama que acontece todos os dias é o pior. O desespero das pessoas quando não sabem de algum familiar que desapareceu e que não é possível encontrar… Quando choveu, o desespero atingiu níveis incompreensíveis. Num dia normal dávamos roupa a qualquer pessoa molhada. Com chuva, toda a gente estava molhada e era impossível dar a todos. Como tínhamos muitos lençóis de cama, achámos que os podiam usar como cobertores ou toalhas. Depois de fecharmos o contentor, eu estava a caminhar e vi um dos lençóis de cama a tremer, no meio do lixo. Era uma criança, com quatro ou cinco anos, nua e sozinha. Fiquei a olhar para ela e achei que aquilo não estava a acontecer… Peguei na criança, embrulhei-a no lençol e perguntei de quem era. Um pai desesperado, também ele encharcado, que estava na fila para os papéis, disse que era dele. Abri de novo o contentor e fiquei agarrada à criança, a tentar recompor-me. Tirei-lhe o lençol, sequei-a, vesti-a e fiz um dos sacos que nós dávamos, com fraldas, água, pasta e escova dos dentes, champô. Aquele pai tinha mais duas crianças na mesma situação: nuas num lençol, a única coisa seca.
Tal como eu, muito poucos voluntários sabem como se devem fazer as coisas em condições. Fazem o melhor que podem com aquilo que sabem, e às vezes não é o suficiente.
O número de pessoas no campo variava muito. Havia dias em que eram 4.000, outros 500. Quando chegam dos barcos, vão a pé até a campo e têm que ir imediatamente para a fila dos papéis [para a obtenção do estatuto de refugiado]. Ficam na fila o tempo que for preciso para os conseguirem. Depois vão-se embora. Percorrem os dez quilómetros até ao porto de Lesbos e compram o bilhete do ‘ferry’. No porto, a situação ainda é pior porque não há organizações, é um parque de estacionamento. Quem acampa em Moria é quem já não tem dinheiro para continuar a viagem.
A situação muda todos os dias. Neste momento não estão a chegar barcos a Lesbos e qualquer informação que tenha sido dada na semana passada já está desactualizada. A melhor maneira de saber o que é necessário é consultar o site Refugeemap.com, que todos os dias é actualizado e tem um ponto para cada localização. Em termos gerais, é preciso encontrar uma maneira segura de as pessoas chegarem a Lesbos. Esse é o maior problema a ser resolvido e não passa por voluntários. Em termos particulares, são precisas meias, casacos de Inverno.
Existem muitas pessoas a organizarem-se e a fazerem ‘kits’ ou mochilas. Eu sou de Ovar e criámos um movimento civil, o ‘Ovar, Vamos Ajudar?', com um evento solidário para angariar fundos. O Jack e eu vamos distribuir essas mochilas com uma barrita de energia, gorros, meias, cachecóis, garrafas de água. Ainda não sabemos para onde nos vão mandar, mas estamos em contacto com os Médicos do Mundo de França e talvez Calais seja o destino. Quando estava em Lesbos, se alguém me contactasse a dizer que tinha uma quantia para gastar, eu sabia o que fazer. Se eram precisos medicamentos, ia à farmácia e comprava. Ou então comprava meias ou pão de forma para distribuir por quem estava nas filas. Acho que a melhor maneira de ajudar é acolher as pessoas nas suas cidades, como Ovar fez agora com a família do Ali. É preciso confiar nos refugiados, da mesma maneira que eles vieram à confiança para encontrar algo melhor na Europa, e fazê-los sentirem-se bem vindos.
Ainda estou um bocadinho adormecida pela experiência, não tive tempo de não falar do assunto. O Jack e eu apercebemo-nos de que uma das coisas que mudou em nós foi o respeito que temos por qualquer pessoa que encontremos na rua.”