26.1.21

“A miséria de um velho não interessa a ninguém”

Carmen Garcia, in Público on-line

Há tempos uma amiga perguntava-me porque é que gosto tanto de “velhos”. E a verdade é que não sei explicar. Mas acho que os vejo quase como livros que falam e respiram, cheios de histórias para nos contar, assim os queiramos ouvir.

Ensinaram-me há muitos anos, numa aula de Enfermagem Médico-Cirúrgica, que o primeiro sinal de alerta relativo à nossa respiração é o momento em que começamos a aperceber-nos dela. E é nesse ponto, quando a respiração deixa de ser um processo natural e começa a implicar um esforço, que sabemos que alguma coisa errada se passa. Hoje, muitos anos depois, olho para ela, tão pequenina e frágil, com o rosto marcado por rugas e cheio de pêlos que nunca mais ninguém tirou, e lembro-me dessas palavras. Será que esta doente, com nome de menina perdida no país das maravilhas, percebeu o momento em que os pulmões lhe começaram a falhar?

De repente tomo consciência que não sei quase nada sobre ela e abro a pasta que lhe repousa à cabeceira. Não sei exactamente porque o faço, uma vez que os escassos ciclos respiratórios por minuto indicam que a hora da partida se aproxima. Ainda assim, folheio a pasta laranja e descubro-lhe o nome completo, o subsistema de saúde e o contacto do filho. Encontro também uma tabela muito básica com a hora e dosagem da medicação habitual e umas análises com mais de dois anos. Como já devia esperar, fico a saber pouco mais que nada. E o que é verdadeiramente triste é que este é o normal nos doentes que chegam de lares, reduzidos a pastas de arquivo com informação demasiado sintetizada, muitas vezes desactualizada, e quase sempre paupérrimas no que realmente importa: quem é de facto aquela pessoa e quais as ocorrências de saúde relevantes dos últimos meses.

Já escrevi muitas vezes sobre a institucionalização de idosos e creio ser mais ou menos do conhecimento geral que defendo uma reformulação completa do modelo de funcionamento dos lares portugueses. O ponto é que, sempre que abordo esta questão, acabo a sentir-me uma espécie de Santo António a pregar aos peixes. É como se, salvo algumas e honrosas excepções, ninguém estivesse verdadeiramente preocupado com a forma como tratamos os nossos mais velhos. E situações que enlouqueceriam a maioria das pessoas se acontecessem na creche dos filhos parecem ser quase desculpáveis no lar onde residem pais ou avós.

Pensemos, por exemplo, no caso dos idosos amarrados a cadeirões e cadeiras de rodas, com as tão famosas imobilizações que servem, segundo é transmitido às famílias, para prevenir quedas e acidentes (nunca se dizendo, é claro, que a esmagadora maioria dos estudos prova que a contenção física não só não reduz o risco de acidentes de forma significativa como é um atentado à integridade do imobilizado, esteja ou não orientado). Aceitaríamos nós ver os nossos filhos imobilizados nas creches para evitar acidentes? Pois… “Mas os idosos são mais frágeis e uma fractura nestas idades tem consequências que não terá durante a infância”, dirão alguns. E eu concordo. É por isso que é necessário, com urgência, voltar a calcular os rácios profissionais/utentes que, ao contrário do esperado, são piores agora do que em 1989.

A esperança média de vida aumentou muito nos últimos anos e é negligente ignorar que o perfil dos utentes a residir nestas instituições também. Cada vez mais os idosos apresentam múltiplas patologias e a esmagadora maioria encontra-se polimedicada. O grau de dependência de quem procura este tipo de apoio também aumentou o que fez com que, cada vez mais, os lares se tornassem mais parecidos com pequenas unidades de saúde do que com simples estruturas residenciais. E é por isso que é urgente que se legisle no sentido de tornar obrigatório que os lares tenham enfermeiro nas instalações 24 horas por dia, sendo que, e nunca pensei escrever isto, seria também importante recuarmos 25 anos e voltarmos ao rácio de um enfermeiro por cada dez utentes, pelo menos em lares onde haja utentes muito dependentes, em vez do actual (e perigoso) rácio de um enfermeiro para cada 20.

Mas as mudanças a realizar não devem ficar por aqui. Numa altura em que vivemos numa sociedade em que tudo é informatizado, não faz sentido que não exista um qualquer software informático transversal a todos os lares, com campos de preenchimento obrigatório e auditorias frequentes, e ao qual seja possível aceder através do Serviço Nacional de Saúde. Só esta mudança facilitaria a vida dos profissionais de uma maneira que poucos imaginam. É que quem trabalha neste meio sabe a quantidade de tempo despropositada que os profissionais de saúde perdem em telefonemas com familiares e instituições, em busca de informação clínica relevante que, não raras vezes, nunca chega a aparecer.

Outro ponto importante passa pela necessidade de aumentar a formação dos profissionais de lares. Na minha opinião que, neste caso, é a de quem conhece o terreno, faria todo o sentido que se criassem equipas distritais multidisciplinares que assegurassem pelo menos duas formações anuais em cada lar. Nessas formações deveriam tratar-se temas práticos como o posicionamento dos utentes para evitar o aparecimento de úlceras de pressão e a manipulação de cateteres urinários, mas também deveriam ser abordadas outras questões, mais complexas, muito em défice nos lares portugueses. Um bom exemplo é a infantilização constante do idoso que, aos 80 anos, tem de ouvir coisas como “Vá lá, só mais uma colherzinha de sopinha”, tal como eu digo ao meu filho de dois.

De inspecções então prefiro nem falar. Tenho só a esperança de que um dia alguém perceba que inspecções que acontecem com aviso prévio nunca vão produzir o objectivo desejado. E esse objectivo tem necessariamente de passar pela melhoria dos cuidados prestados, o aumento do conforto e o respeito absoluto pela individualidade, escolhas e desejos daqueles que já foram novos um dia.

Há tempos uma amiga perguntava-me porque é que gosto tanto de “velhos”. E a verdade é que não sei explicar. Mas acho que os vejo quase como livros que falam e respiram, cheios de histórias para nos contar, assim os queiramos ouvir. É por isso que não suporto ouvir que os idosos são como as crianças. Como é que se compara um livro em branco com uma história quase completa?

A situação de pandemia que vivemos expôs ao país as fragilidades que quem trabalha ou trabalhou em lares conhece há demasiado tempo. E tudo o que espero é que, quando a tempestade acalmar, e depois de pagarmos essas fragilidades com centenas de mortos, saibamos que muitas vezes é preciso destruir para voltar a erguer melhor e mais forte. Há muito trabalho a fazer nos lares portugueses. Muito mais do que alguma vez conseguirei resumir em sete mil caracteres.

Victor Hugo escreveu, em Os Miseráveis, que “a miséria de um velho não interessa a ninguém”. E eu quero muito que ele esteja errado. Mais que não seja porque seja-nos a vida favorável e todos lá chegaremos. Pela minha parte, garanto que estou disponível para dar o corpo a esta luta. Só não agora – porque agora vou voltar para a cabeceira da Alice, dar-lhe a mão e acompanhá-la nos últimos minutos deste lado. Sou enfermeira. E comigo ninguém parte sozinho.