29.1.21

Cama Solidária: como os portugueses se uniram para dar descanso aos heróis da saúde

Patrícia Naves, in Nit

Começou com a ideia de usar caravanas para que os profissionais repousassem. Agora, são verdadeiras casas.

Nos últimos dias, Portugal tem sido assolado por imagens que tão cedo não deverá esquecer: hospitais cheios, médicos e enfermeiros sobrecarregados, filas de ambulâncias às portas das principais unidades de saúde horas a fio, sem haver espaço ou lugar para os doentes entrarem. Ao ver essas imagens, em todos os noticiários, há quem fique triste, angustiado; há quem tenha tendência quase a dissociar-se daquilo a que assiste, por parecer tão irreal; há quem ainda ache tudo exagerado e mal contado, e não se coíba de o expressar nas redes sociais; e finalmente, mas não por último, há quem decida agir.

Ainda esta quinta-feira, 28 de janeiro de 2021, depois de mais uma noite de filas intermináveis de ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria, uma reportagem da TVI revelava que, espontaneamente, houve marcas a enviar pizzas, hambúrguers, para médicos, enfermeiros, bombeiros; e cidadãos comuns a lembrarem-se, ao assistir, de fazer sopa que depois foi entregue aos profissionais de saúde.

Nesta onda de solidariedade que parece trazer luz a um inverno particularmente difícil no nosso Pais, há um grupo que se destaca pela ajuda que tem dado aos combatentes da linha da frente contra a Covid.

Ricardo Paiágua faz parte desse grupo. Tem 38 anos, é lisboeta e fundador da agência de criatividade uppOut. Quando a NiT falou com Ricardo, por email, ele pediu desculpa pelas eventuais incorreções. Estava sem dormir há demasiado tempo. “É esta noite que tenho de descansar”, explicou.

Tudo começou há menos de dez dias, quando, como tantos outros portugueses, na quarta-feira, 20 de janeiro, assistia no conforto de sua casa às fotos e imagens de ambulâncias, paradas à porta de vários hospitais. Ficou impressionado, por isso, decidiu criar nessa mesma noite a “Cama Solidária“.

Ricardo começou a desenhar o projeto com Gonçalo Carvalho, 25 anos, designer da uppOut. No dia seguinte, o site já estava online e, em poucas horas, tinham sido doadas mais de 60 caravanas.

Manuel Palma, 25 anos, copy na agência, começou a colaborar nessa quinta-feira e nunca mais saiu do grupo. Luisa Fonseca, 31 anos, juntou-se na sexta, dia 22, e também nunca mais os largou. Diogo Maroco, 36 anos, marketing manager da Inventa, “ia buscar só uma caravana num sábado, foi enganado, e nunca mais saiu”, conta-nos Ricardo.

E no que consiste exatamente esta corrente solidária? “É muito simples: os profissionais de saúde que precisam de um espaço junto ao hospital, lar, centro de saúde, para dormir vão ao site www.camasolidaria.pt e expressam a sua necessidade”.

Do outro lado, uma pessoa que quer facultar uma autocaravana ou casa para esta causa vai também ao site, regista-se e diz a sua disponibilidade. Um voluntário que se queira juntar, segue os mesmos passos: entra na plataforma e expressa o que quer fazer. “Depois, os sistemas de informação e a Luísa Fonseca fazem a magia de cruzar toda a informação”, explica-nos o fundador da causa. A plataforma faz a ligação entre quem precisa de algo e quem o tem. Além de espaços para descanso — casas ou caravanas —, assegura comida, produtos de higiene e limpeza dos espaços. Tudo para que aos heróis da saúde não falte nada.

Em apenas oito dias, o crescimento foi impressionante. “A adesão foi brutal”, diz Ricardo. Primeiro, dezenas de caravanas foram disponibilizadas pela Federação de Autocaravanismo e por cidadãos comuns. Depois, veio o resto. “Voluntários temos acima de 1000. Caravanas mais de 600. Casas temos mais de 200”.

“Hoje, temos associação de empresas de aluguer de caravanas que fazem todo o processo operacional de entrega de caravanas. Temos a Leaseplan a emprestar carros; a Free Now a dar viagens para deslocações… Inúmeras entidades a facultar tudo. Está a ser incrível, mesmo”, acrescenta.

Se ao principio havia a questão da ser proibido dormir em autocaravanas quando estacionadas na cidade, também isso se resolveu com solidariedade: a EMEL disponibilizou os seus parques de forma gratuita.

Além das entidades, o criador da iniciativa não se cansa de elogiar os colegas: “A Luísa, por exemplo, é o maior Tinder solidário. A ela, devemos toda a gestão da parte operacional que tem realizado de uma forma única. Mesmo”.

Como se isto não bastasse, neste momento, o grupo tem também caravanas de recolha de donativos à porta de quase todos os grandes centros hospitalares em Lisboa e está a implementar o mesmo sistema noutras cidades. As caravanas começaram por ficar junto ao Hospital Santa Maria, mas estão a chegar ao Amadora-Sintra, Cascais, S. Francisco Xavier ou D. Estefânia. E daí para outros pontos do País.

Além de tudo isto, criaram um novo movimento que é a carta solidária: “As pessoas entregam-nos donativos, e nós não só damos os donativos, como lemos cartas com conforto”.

Entre os voluntários, há desempregados, gestores ou hospedeiros. “Tantas funções, todos a ajudar-nos de forma brutal, trabalham mais de 16 horas por dia. Sem receberem nada! O ser humano é incrível. E isto só existe porque temos voluntários como a Marta, Joana, Ines, Francisco, a Ana, todos”, frisa Ricardo.

Várias figuras públicas já se juntaram para ajudar a divulgar o projeto. “Não há nada apontar. Temos tudo para criar e superar tudo. Com disciplina, resiliência, paixão, integridade e muita atitude vamos ultrapassar todo este momento”.

A situação que motiva a causa está longe de resolvida. Esta quinta-feira, 28, as filas de ambulâncias continuam e os casos também: foi o pior dia de sempre em termos de evolução da pandemia, com mais 16.432 infetados e 303 mortes por Covid-19 em Portugal.

Um dia, espera Ricardo, tudo isto passará. “Nós queremos ser esquecidos já amanhã. Sim, no primeiro confinamento todos estavam a ajudar, houve inúmeros gestos solidários. Neste, estávamos adormecidos e sem resiliência não vamos ultrapassar este momento menos simpático. Daí que sim, queiramos ser esquecidos. Queremos que existam mais e mais movimentos. E que o nosso seja o movimento que ninguém se vai lembrar amanhã. Até porque toda a equipa de gestão, a Ricardo, Gonçalo, Luísa, Diogo e o Manuel têm os seus empregos e estão a fazer diretas atrás de diretas para fazer esta mega operação de “exército” acontecer”.

“Hoje, temos administradores de grandes centros hospitalares a ligarem-nos e agilizar todas as operações com as necessidades. Não há palavras para descrever o que está acontecer. Não há mesmo. Mas sim, os mentores do conceito precisam mesmo de descansar, mesmo. Pois estamos a trabalhar 72 horas seguidas, a Redbull, café, etc e sem comer. Mas o que nos motiva é o pequeno e curto obrigado que os grandes profissionais de saúde nos dão. E quando digo um profissional de saúde, digo o diretor de impressões, o segurança e até o administrador. Todos eles estão a fazer um trabalho brutal. Mas também preciso de descansar, precisamos de algum auxilio de cooperação talvez de uma grande organização”, apela.

E conclui: “Só queremos passar a mensagem que o ser humano é mágico e temos que ultrapassar tudo isto juntos. Vamos voltar a bater palmas, vamos voltar a fazer concertos à janela, vamos voltar a sorrir em casa. São só dois meses, o que estamos a sofrer é o paraíso comparado com quem está mesmo a sofrer”.