21.1.21

Imigração para Portugal cai 9% em ano de pandemia. Mas Segun, Aoani e Ana Vitória vieram na mesma

texto Sabrina Lima e Raquel Moleiro, vídeo e fotografia Sabrina Lima, in Expresso

Descida Em 2020, o SEF emitiu menos 11.608 autorizações de residência. Portugal ganhou, ainda assim, quase 120 mil estrangeiros, como Segun, Aoaní e Ana Vitória

Não se esperava outra coisa. À medida que o novo coronavírus foi avançando, alimentando medos, fechando países inteiros e as fronteiras entre eles, emagrecendo economias e oportunidades de emprego, cortou também as rotas e adiou os sonhos de quem queria imigrar em 2020. De um ano para o outro, Portugal emitiu menos 11.608 autorizações de residência (AR) do que em 2019, ano em que quase 130 mil estrangeiros (129.155) tinham escolhido o país para residir legalmente — o que representou então uma subida de 39% — e se tinha ultrapassado a fasquia do meio milhão de estrangeiros a viver no país. No primeiro ano de pandemia, os novos imigrantes ficaram-se pelos 117.547, quase menos 10%. O vírus, porém, não travou a chegada do cabeleireiro nigeriano Segun Solomon, da atriz e jornalista são-tomense Aoaní d’Alva ou da doutoranda brasileira Ana Vitória (ver histórias em baixo).

Mostram os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que os estrangeiros que passaram a residir legalmente em Portugal a partir de 2020 vieram principalmente do Brasil (quase 42 mil), Reino Unido, Índia, Angola, Itália, Cabo Verde, França, Nepal, Guiné-Bissau e Espanha, num top 10 descendente que mantém as nacionalidades do ano anterior, com ligeiras alterações de lugares. Os nepaleses, que numa década aumentaram 25 vezes em Portugal, desceram pela primeira vez; brasileiros foram menos 7 mil.

A cumprir a exceção à regra, subiram as autorizações de residência atribuídas a angolanos e ingleses. Os britânicos, aliás, dispararam 58% (de 8353 em 2019 para 13.161 em 2020), mas o número engana. A maioria já viveria no país antes. Por causa do ‘Brexit’, e para assegurarem a manutenção da livre circulação no espaço europeu, os britânicos que nunca tinham declarado morada em território nacional correram a pedir autorização de residência.

MENOS NASCIMENTOS

Com menos entradas, a comunidade estrangeira em Portugal abrandou o seu crescimento, mantendo-se ainda abaixo dos quase 8% da média da União Europeia. Mas há consequências bem mais gravosas. Em 2019, os imigrantes contribuíram para 12% dos nascimentos (10.683 nados-vivos) em Portugal, atingindo um peso inédito na natalidade. Um em cada oito bebés tinha mãe de nacionalidade estrangeira, segundo a Pordata. Uma diminuição dos fluxos migratórios reduzirá necessariamente este número, num ano em que a elevada mortalidade provocada pela covid-19 tornará ainda mais negativo o saldo natural. O ano de 2020 fechou com mais de 123 mil óbitos, o valor mais alto desde 1920, e os dados preliminares do teste do pezinho, realizado a todos os recém-nascidos, já permite saber que o número de nascimentos em 2020 ficará abaixo do registado no ano passado. O resultado óbvio é a retração da população nacional.

Há ainda um outro dano colateral da vinda de menos imigrantes, este de natureza financeira. De acordo com o Observatório das Migrações, 81% dos estrangeiros a residir em Portugal trabalham e em 2019 contribuíram para a Segurança Social com 884 milhões de euros. Menos entradas é também menos dinheiro que entra nos cofres do Estado

“Bom dia. Boa tarde. Boa noite. Como vai?”. A aprender e a ensaiar as primeiras frases em português, o nigeriano Segun Adebayo Solomon, 20 anos, divide-se entre o que chama de sonoridade divertida do “sim” e as dificuldades do real “não” que a pandemia impôs.

“Quando cheguei a Portugal, pensei: 'Uau, isto é muito bonito!', mas não tive muitas experiências cá antes da pandemia. Fui a alguns sítios, fui ao cinema, mas na semana seguinte a que cheguei começou a pandemia e tive de ficar em casa por dois meses. Fiquei muito entediado por não poder sair. Com o coronavírus, é muito difícil encontrar trabalho, é muito difícil. Estou à procura de emprego há seis meses e não há. Fazer amigos também é muito complicado. Em Portugal existe a barreira da língua, para conseguir emprego em Portugal é preciso falar o português. As escolas fecharam por causa da pandemia, por isso não consegui estudar português. Assim é muito difícil conseguir trabalho, fazer amigos, qualquer coisa."

Cabeleireiro, Segun conta que na Nigéria "trabalhava muito bem", com vários clientes, algo que por cá ainda tem de conquistar. "Eu até estou a trabalhar cá, mas é muito difícil fazer novos clientes. Às vezes fico sentado uma semana sem trabalho. Tem muita gente com a mesma profissão e eu sou novato, então é muito difícil conseguir os meus próprios clientes. Por isso estou à procura de outro emprego, para poder pagar as minhas contas. Gostaria de trabalhar para realizar os meus sonhos, ter as minhas coisas, para ajudar a minha família e os meus amigos. As pessoas que chegam aqui realmente querem trabalhar. A maioria das pessoas negras que eu conheci em Portugal não tem uma vida fácil. Eu gosto da sua cor, você deveria gostar da minha. Eu sei que os mesmos sentimentos que eu tenho, você tem também, apenas a pele é diferente. Mas a minha cor não define quem eu sou. Nossa cor não define quem nós somos. Nós somos todos iguais, se um é branco e o outro é negro, isso é simplesmente a cor da pele. O que você faz eu também posso fazer.”

Talvez não seja apenas a “sonoridade divertida” que faça do “sim” a palavra preferida de Segun em português. É a olhar para o futuro e para as novas possibilidades com curiosidade e otimismo que o jovem se move. “É bom visitar países diferentes para ver o que está a acontecer nos outros lugares, para ganhar experiência. Na Nigéria eu me divertia muito, tinha muitos amigos, família… Mas é preciso movimentar-se de um lugar para outro para conseguir o que se quer na vida. Eu gosto de Portugal, as cidades são fixes e muito tranquilas. Acho que vai ser bom para mim, pois o país é muito fixe. É um dos sítios mais bonitos que eu já conheci até hoje. E vejo este problema do coronavírus como algo temporário. Se eu encontrar um trabalho, estou pronto. Vou ser feliz. Este ano vai ser bom. Vou encontrar emprego, vou conseguir alcançar algumas coisas.

“Sou jornalista, sou atriz, e sou são-tomense, em dois tempos estava pronta”. Foi assim de repente que Aoaní d´Alva, 36 anos, deixou uma vida de três anos nos EUA e migrou para Portugal no meio da pandemia. Já há 20 anos vive fora da sua São Tomé e Príncipe natal - a primeira paragem foi justamente Portugal, para concluir o ensino secundário. Depois decidiu cursar o ensino superior e experimentar uma nova variedade da língua portuguesa no Brasil. De lá partiu para Angola, onde viveu por oito anos: “Sinto-me são-tomense e angolana”. Até que mais uma mudança, desta vez não apenas física, aconteceu.

“Depois de trabalhar oito anos como jornalista, decidi que queria voltar a estudar e mudar de profissão: queria ser atriz, que é um sonho que sempre existiu, mas acabou sendo relegado. Então fui para os Estados Unidos. Foi uma experiência interessante, mas os gastos acabaram por se acumular e não consegui terminar o curso. Sozinha com uma filha pequena, sem uma rede de apoio, ficou complicado. Um pouco antes da pandemia já pensava voltar a estudar e decidi vir para Portugal, porque os cursos são mais em conta e tenho cá família. Então candidatei-me para a Escola Superior de Teatro e Cinema e fui aprovada. Foi uma loucura, tive que correr com tudo, e em agosto viemos, no meio da pandemia.

Encontrei Portugal bastante diferente, mudou muita coisa. A Aoaní também está muito diferente. Vinte anos depois voltou a Portugal outra pessoa. Uma das mudanças que achei mais interessantes cá foi a questão da integração dos imigrantes. Agora já se ouve kizomba nas rádios e nos centros comerciais. Eu nunca tinha percebido o peso de ser negra até chegar a Portugal. Em São Tomé isso nunca foi importante, não era uma questão até chegar aqui, e isso pesou bastante na época. E é uma coisa que hoje é diferente. Por exemplo, se vou a algum lado e me pedem a identificação, não pedem passaporte ou cartão de residência, pedem o BI. E acho que isso é muito significativo, é porque partem do princípio de que um negro pode ser português. Há 20 anos não era assim. Já é um avanço.

Apesar dessas mudanças, Aoaní considera que ainda falta fazer muito pelos imigrantes em Portugal. "Há dias foi assinado um acordo de isenção de vistos entre Angola e São Tomé. Eu tenho esperança que isso seja um pequeno passo para a livre circulação de pessoas e bens na CPLP. Até agora, a CPLP era vista como uma instituição mais simbólica, sem impacto real na vida dos cidadãos que dela fazem parte. Acho que já era época de haver menos entraves a essa migração. Por que fazer com que as pessoas passem pela situação de serem indocumentadas? É uma situação que só vai trazer sofrimento - tanto para as do PALOP quanto para todos os imigrantes -, e que só vai trazer benefício para as pessoas que se aproveitam dessa situação oferecendo trabalhos precários. Os imigrantes indocumentados têm medo de ser deportados, então acabam por ceder a algumas situações, ou simplesmente não conseguem trabalho porque não têm os documentos."

Neste momento a são tomense tem cartão de residência por ser estudante estrangeira, mas "essa residência não me permite automaticamente trabalhar", o que considera um retrocesso. E explica: "antes bastava ter o visto de estudante e podia-se trabalhar, não era preciso ter autorização do SEF. Com a pandemia está ainda pior, conseguir trabalho tem sido difícil, não consigo trabalho. Já mandei mais de uma centena de currículos e na maioria dos casos nem respondem."

O sonho de Aoaní passa por trabalhar como atriz ou até como jornalista. "Sonho com a possibilidade, não só para mim, mas para qualquer imigrante, de que se consiga trabalhar na sua área. De não ter essa limitação só por ser imigrante. Eu nem sequer comecei esse processo, mas ouvi dizer que tem que pagar cerca de 500 euros para fazer a validação do diploma. A maior parte das pessoas não tem esses 500 euros. Acredito que seja um processo complicado, mas será que é preciso mesmo esses 500 euros ou é só mais um empecilho? No caso dos imigrantes que são médicos, por exemplo, que são da área de saúde… Não estão sempre a dizer que é preciso mais médicos e mais pessoal da saúde? Uma pessoa que chega aqui, só porque não fala português ou porque não tem os 500 euros, vai para a obra ou para a limpeza. Não que seja mal, mas a pessoa não devia ser desvalorizada só porque veio de outro país. Além disso, um estudante internacional paga mais que o estudante nacional. Não entendo qual é a lógica. Partindo do princípio de que a pessoa não tem família cá, não tem estadia, tem mais despesas, não tem trabalho logo à partida, por que é mais caro? É mais benéfico para todo mundo levar de uma forma positiva, agregar as coisas positivas que os imigrantes trazem.”

No encerrar das cortinas de 2020, Aoaní refaz, mais uma vez, as suas rotas: “Deixei de fazer grandes planos depois que essa pandemia começou. Tudo mudou tão drasticamente que não sei se vale a pena fazer esses planos todos. Tem algumas coisas na minha cabeça que quero fazer, mas deixei de fazer planos. É bom organizar, poupar dinheiro, mas acho que a pandemia trouxe um bocado de espontaneidade também. Para 2021, espero paz. Com a vacina, que as pessoas possam estar mais tranquilas e as coisas voltem à “normalidade”. Voltar aos espaços públicos, ao teatro, aos concertos… Se tudo correr bem, se formos imunizados, que essa vacina traga realmente essa tranquilidade de viver, de ser.”

No início de 2020, Portugal era apenas um destino de férias para a brasileira Ana Vitória Alkmim, de 46 anos. Quando a sua viagem prevista para abril foi cancelada, ela não imaginava que o mesmo motivo do cancelamento - a pandemia - seria a sua motivação para aterrar cá meses depois para fazer um doutoramento em Ecologia Humana.

“Sou formada em Comunicação, fiz um mestrado em Marketing Internacional, e quando comecei a trabalhar neste mercado, percebi o impacto socioambiental que as empresas provocam. Na ecologia, tradicionalmente, nós nos colocamos fora dela, como se a ecologia fosse algo distante. Essa interferência que nós temos sobre o meio ambiente tem que ser mais discutida, e a Ecologia Humana faz exatamente isso. Neste cenário da pandemia, acho que começamos a ver em que ponto chegámos em vários aspetos, os extremos aos quais podemos chegar. E eu decidi aproveitar a pausa forçada na minha rotina de trabalho para estudar, para entender melhor como posso atuar nessa questão. Comecei a pesquisar e conheci o trabalho da professora Iva Pires, da Universidade Nova de Lisboa, que é uma das maiores autoridades mundiais desse assunto e trabalha no combate ao desperdício alimentar. Então conversei com ela e falei: “Vou para Lisboa estudar sobre isso”. Decidi fazer o doutoramento, que já era um sonho antigo, e aqui estou. Antes de vir para cá, um colega do meio da sustentabilidade me disse que eu ficaria surpresa ao ver como em Portugal, especialmente em Lisboa, este setor é dinâmico. Você vai conhecendo as pessoas pela rua, é impressionante. Você conhece uma pessoa e ela fala: 'Olha, eu estou desenvolvendo um projeto de hortas comunitárias em Campolide… Olha, eu trabalho em uma ONG que tem um projeto tal…'. A impressão que eu tenho é que as pessoas e os projetos vão brotando no caminho. São centenas de iniciativas que acontecem aqui, é muito fervilhante. O que eu espero realmente é aprender com a prática e me envolver cada vez mais.”

Convicta de que é preciso transformar a teoria em ação, os três meses em solo português já foram suficientes para Ana Vitória estar a viver no terreno um desejo despertado no início da pandemia, ainda no Brasil. “Eu sempre gostei de estar envolvida em alguma iniciativa que lide com o social. E quando chegou a pandemia, comecei a ver que a população de rua estava aumentando, porque as pessoas foram demitidas do trabalho e não tinham dinheiro para pagar o aluguel, elas foram despejadas. E elas levaram os móveis, o sofá, a cama, a mesa, para a frente das lojas que estavam fechadas. Em paralelo a isso, as pessoas que moram na rua deixaram de ter onde conseguir água e sobra de alimentos porque os restaurantes estavam fechados. E isso começou a me perturbar. Eu sempre gostei de cozinhar e comecei a ter vontade de cozinhar para essas pessoas em algum projeto. Eu venho de um lugar onde o alimento é muito importante, o alimento é da alma, do coração, as pessoas demonstram amor com comida em Minas Gerais. Então descobri um projeto que fazia e distribuía comida para a população de rua. E a gente fazia muita questão de preparar sempre uma comida muito gostosa, aquele feijãozinho bem temperado, aquela comida que você come domingo na sua casa. Foi uma vivência muito forte. Quando cheguei a Lisboa, tinha dois amigos que já estavam envolvidos com a Refood. E comecei a participar e a trabalhar lá. Mais uma vez, muito no contacto. Eu entrego a comida e converso com as pessoas, vou conhecendo o nome delas, começo a escutar as histórias… E é surreal o quanto se desperdiça de comida no mundo. Eu não estou falando de comida velha que não presta, estou falando de comida boa, de comida feita naquele dia, que não foi servida, por exemplo, em um restaurante. Uma comida maravilhosa que iria para o lixo."

Para Ana Vitória é urgente mudar, apesar de não existirem soluções fáceis e individuais. "A gente está numa sociedade, num coletivo, e o principal é entender que o que eu mexo aqui vai ter um efeito em vários lugares, que é sistêmico, e que num futuro muito próximo pode ter consequências. A pandemia nos ensinou muito sobre isso. Não é uma questão de eu adoecer ou não. Eu posso escolher morrer? Posso. Mas se eu estiver contaminada, eu posso contaminar sete ou oito pessoas, que vão para casa e vão contaminar mais sete ou oito pessoas, e daqui a pouco eu sou a responsável por quatro ou cinco mortes. Então não se trata só de mim. Nós precisamos reaprender a sentar em volta da mesa, servir um café e conversar. E tenho esperança. Tanto que eu abandonei muita coisa no Brasil para vir para cá estudar”.