Texto de Tiago Coelho, in Público on-line
O fim da Guerra Fria não fez mais do que colocar a descoberto as fragilidades associadas ao processo de descolonização
Volta e meia os cidadãos europeus são confrontados com as imagens arrepiantes de barcos a abarrotar de imigrantes ilegais que atravessam as águas do Mediterrâneo. Sempre que sou confrontado com elas lembro-me de que sem a realização de uma discussão profunda à escala Atlântica sobre a natureza do "estado falhado", o problema da emigração clandestina em direcção ao velho continente jamais será combatido de forma eficiente. Dito de outra forma, o Ocidente precisa de interiorizar duas ideias essenciais.
Em primeiro lugar, as democracias ocidentais têm de assumir que a importação do modelo europeu do "estado-nação" para muitos dos países do hemisfério sul falhou redondamente. Enquanto na Europa a existência de um governo estável e legítimo pressuponha a existência de uma comunidade política que partilhasse a mesma "identidade nacional"; em vários estados do continente africano as antigas fronteiras coloniais delineadas entre 1885 e 1902 limitaram- se a circunscrever várias identidades dentro de um só estado. Depois de 1945 a entrada das antigas colonias europeias para o clube de estados soberanos foi facilitada pelo princípio "wilsoniano" da autodeterminação dos povos.
Porém, a atribuição do estatuto de soberano aos territórios que se libertavam do jugo colonial por decreto administrativo da ONU, não só não foi acompanhada pelo redesenhar das fronteiras dos novos estados africanos, como também representou uma tremenda ruptura com as práticas tradicionais ou "vestefalianas" que definiam um estado como sendo soberano.
O fim da Guerra Fria não fez mais do que colocar a descoberto as fragilidades associadas ao processo de descolonização, deixando bem claro que sem mecanismos que permitam assegurar a legitimidade de um governo nacional, estes estados estão condenados a ser dirigidos por governos clientelares que atuam em prol de um determinado grupo étnico. Em segundo lugar, o Ocidente precisa de perceber que a euforia gerada em torno da vitória da democracia liberal no pós-Guerra Fria, expressa no "Fim da História" de Fukuyama, deve ser posta de lado.
Durante as últimas duas décadas, o recuo da democracia e a emergência de novos regimes autoritários num número assinável de países incluídos na "terceira vaga de democratização", para usar a célebre expressão de Samuel Huntington, deveria servir de aviso. Quer isto dizer que o idealismo que subjaz à crença de que é possível criar uma democracia do nada, deve ser substituído por uma postura mais pragmática.
A democracia não pode ser imposta quando não existe um estado funcional que detenha o monopólio "weberiano" do uso legítimo da força, que controle as suas fronteiras, território e população de modo eficaz. Aliás, não é por acaso que o processo de "state-building" começa, geralmente, pela criação de instituições que garantam a defesa do estado e a ordem pública. Mais, o florescimento de uma democracia funcional depende da existência de uma classe média e, por conseguinte, só é sustentável a partir de um determinado patamar de desenvolvimento económico.
Sem debater estas questões, a imigração ilegal em direção à Europa não só continuará, mas piorará sempre que despoletar mais uma guerra civil no continente africano. Atacar este problema requer, por isso, a realização de uma reflexão profunda sobre esta matéria e ir mais longe do que o simples lançamento de novas operações de patrulha no Mar Mediterrâneo. Em particular, as democracias atlânticas precisam de rever o atual paradigma de "state-building" e abandonar a ficção de que a estrutura do estado-nação europeu e a construção de democracias sem uma base económica mínima são viáveis em todo o continente africano.