17.11.14

O estado da meritocracia em Portugal

Paulo Moura, in Público on-line

Portugal é uma meritocracia ou a república da “cunha”, do nepotismo e do amiguismo? Consegue o emprego ou a promoção quem é melhor ou quem tem amigos? Nas empresas, na administração pública, no ensino, nas instituições ou nos partidos, são os mais competentes, talentosos e trabalhadores que têm êxito? Ou esses são afastados?

Alberto tinha a certeza de que o lugar seria seu. Ninguém, na empresa, tinha as competências e o talento dele, ninguém trabalhara tanto. Os comentários dos clientes confirmavam a sua convicção de que seria ele a entrar no quadro da agência de design onde há dois anos trabalhava a tempo inteiro, a recibos verdes. Dos três colaboradores, só ele cumpria horários, respeitava prazos, atingia padrões de qualidade verdadeiramente profissionais. A empresa não poderia dar-se ao luxo de o dispensar, mesmo que quisesse. Vários contratos em curso dependiam do seu contributo. Ele sabia-o, todos o sabiam. Naquele momento, Alberto era indispensável à empresa. Ao fim de dois anos, um dos três colaboradores, como fora prometido, entraria para o quadro e seria ele. Só podia ser ele.

Alberto sempre pensou que só precisaria de uma oportunidade. O difícil era entrar nalguma empresa, ou instituição, onde o deixassem mostrar o seu valor. Isso demorou vários anos, desde que terminou a licenciatura em Design pelo IADE. Mas quando conseguiu colaborar com esta agência, por recomendação de um professor, encheu-se de autoconfiança. Agora, nada o poderia deter. Seria excelente em tudo o que fizesse, criativo, engenhoso, diligente, irrepreensível.

“Nestes dois anos, fiz o que me pediram e muito mais”, diz Alberto. “Ultrapassei sempre os objectivos e as expectativas. Sentia que as coisas dependiam apenas de mim, portanto era para mim que trabalhava. Não pensava na recompensa imediata, mas no futuro. Empenhava-me, reflectia, estudava, trabalhava pela noite dentro. Era impossível fazer melhor. Fiz disso o meu lema: ninguém poderia fazer melhor. Dessa forma sentia-me livre, independente. Aos comandos da minha própria vida.” Não podia falhar. “Se a sociedade era justa, eu tinha de vencer. E uma pessoa justa acredita sempre que a sociedade é justa.”

Um dos outros colaboradores era amigo e antigo colega de escola do dono da agência. No dia da grande decisão, foi ele o escolhido. Alberto foi chamado para uma explicação sumária: o outro era de “mais confiança”, estava mais “dentro da lógica da agência”.

Se Alberto tivesse estudado Gestão de Recursos Humanos, saberia da importância das soft skills na condução de uma carreira profissional. Não basta ser bom tecnicamente, é também necessário dominar as subtilezas do relacionamento pessoal, os nexos da trama social. Isto está sistematizado nos manuais de ciência empresarial e a sua latitude de aplicação é muito vasta.

João Bilhim, professor catedrático de Gestão de Recursos Humanos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS) e presidente da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP), explica à Revista 2 que a avaliação das soft skills é fundamental na selecção de candidatos a todos os cargos, principalmente os de gestão e chefia. Definiu este tipo de capacidades como “saber estar, saber ser”, uma fórmula que parece equidistante dos códigos de ética e das regras de etiqueta. “Isto é diferente das hard skills, que são a capacidade técnica, o saber fazer.” E contou o caso de um jovem muitíssimo competente que seleccionou para uma empresa e que acabou despedido por ter mandado um cliente “para a puta que o pariu”.

Não se pode descurar o factor humano, e no humano cabe quase tudo, incluindo o imponderável. No processo de selecção para um emprego ou um cargo, as hard skills são mais fáceis de identificar, através de testes, análise curricular e outros métodos objectivos. Já para detectar as soft skills é necessária alguma intuição e subjectividade. O que, como reconhece João Bilhim, torna o seleccionador vulnerável a vários tipos de armadilhas. Se for dono de uma sólida formação ética, “tentará identificar e combater essas armadilhas”. Se não for…

“Se um candidato me diz que foi vereador municipal ou deputado, eu interrompo logo: ‘Tudo bem, mas eu não quero saber qual foi o partido através do qual entrou para essa função’.” Para João Bilhim, é mais relevante o escrúpulo ético de quem escolhe do que as regras objectivas, gerais e universais que têm de ser aplicadas nos processos de selecção, designadamente da Administração Pública.

“Quem apenas aplica cegamente as regras corre o risco de ser mais injusto e incorrecto, porque obtém facilmente uma justificação formal para a decisão, sem se preocupar com o verdadeiro valor dessa decisão.” É o que se passa muitas vezes na Administração Pública, por oposição ao sector privado. Para João Bilhim, que já trabalhou em ambos os universos, a diferença é esta: “No sector privado, o profissional de selecção tem de justificar muito bem os motivos da sua escolha. Os três nomes que apresenta ao cliente têm de ser muito bem justificados na sua relação com o perfil. No sector público, passa-se precisamente o oposto: todo o empenho tem de ser colocado na justificação dos candidatos que não foram escolhidos.”

Isto significa que no sector público, onde se deve mais obediência às regras e à transparência, o peso das chamadas soft skills diminui forçosamente, porque se, obviamente, não há problemas em apontar as “qualidades moles” a quem as possui, já não será tão fácil falar do assunto a quem delas carece. “Não se corre risco, desde que a afirmação seja fundamentada, em afirmar que um candidato possui a ‘humildade’, a ‘agradabilidade’ necessárias ao desempenho do perfil definido. Mas, pelo contrário, se eu afirmar que um candidato não possui tais capacidades, corro o risco de ser processado por difamação”, explica Bilhim.

“A Administração Pública e os seus órgãos de controlo laboram a partir do princípio da desconfiança. Assim, não raras vezes, admito que o profissional da selecção tenha de colocar no prato da balança a seguinte opção: escolher o candidato mais próximo do perfil ou aquele que menos probabilidade terá de nos trazer problemas com os tribunais administrativos.”

Carla candidatou-se por três vezes a uma bolsa de doutoramento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). “A primeira recusa foi uma desilusão, não recebi bolsa por um cabelo: atribuíram 12 bolsas. À ínfima distância de 0,02 centésimas estava eu na 13.ª posição. Entretanto, mesmo sem a bolsa tão desejada e que tanta falta me fez, fui ao banco, pedi um empréstimo e abalei para Inglaterra com a ideia de fazer mais currículo, o que, no fim de mais um ano lectivo, se materializou numa pós-graduação e numa série de conferências proferidas em universidades inglesas. Foi com renovada confiança que me atirei à segunda tentativa.”

Mas correu ainda pior. O seu nome tinha descido várias posições, apesar de ter obtido pontuação máxima no critério “unidade de investigação” e quase máxima no “relevância do projecto”. Já o critério “mérito pessoal” teve nota negativa, muito inferior à obtida (positiva) no primeiro concurso. “Em dívida e com os bolsos praticamente vazios, agora eu mesma valia muito menos do que no ano anterior”, diz Carla. “Estava perplexa: o meu projecto era excelente, mas aparentemente eu não era a pessoa certa para o levar em diante. Então escrevi ao director dos serviços e foi-me dada autorização para aceder aos CV e aos projectos dos candidatos premiados. Só depois de ter constatado certas estranhezas nas avaliações dos processos é que me senti verdadeiramente indignada e esmagada.”

Carla viu que, no top 10 das poucas bolsas atribuídas a nível nacional, havia duas pessoas da mesma família, um nome muito conhecido da elite portuguesa. No caso de uma dessas pessoas, o projecto e o interesse do projecto obtiveram pontuações inferiores aos seus. Mas, em “mérito pessoal”, a socialite teve nota superior. “Percebi que a minha nota de mérito teve de ser diminuída para que alguém figurasse na lista final dos felizes contemplados. Na terceira e última vez que concorri, a recusa foi recebida com indiferença — tinha perdido toda e qualquer confiança naquela instituição.”

É comum afirmar-se que Portugal é o reino da “cunha”, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo. Não se consegue um emprego ou uma promoção por mérito próprio, mas só quando se tem amigos ou familiares bem posicionados ou se pertence a um grupo privilegiado. A crise provocou desemprego, congelamento de carreiras, mas que influência teve, se alguma, no modo como se acede (e quem) ao mercado de trabalho e à promoção? Portugal é, alguma vez foi, uma meritocracia?

Quando o termo foi usado pela primeira vez, em 1958, no livro The Rise of Meritocracy, pelo sociólogo e membro do Partido Trabalhista britânico Michael Young, o sentido era pejorativo. A excessiva importância atribuída aos testes e métodos quantitativos como forma de medir o talento e escolher líderes era vista como um desvio tecnocrático. No seu ensaio satírico escrito em forma de ficção futurista, Young resumia a sua crítica na fórmula: “Cada escolha de um representa a rejeição de muitos.”