Texto de Mariana Correia Pinto, in Público on-line (P3)
São “quase metade da força de trabalho” e um desafio para partidos e sindicatos. Sociólogo e deputado José Soeiro mergulhou nas vidas do “precariado” português e estudou “novos reportórios de acção” deste grupo heterogéneo e crescente. Podem eles virar o mapa político?
Amigos com contratos a termo, recibos verdes, temporários. Colegas bolseiros e (eternos) estagiários. Filhos que regressam a casa dos pais, adiam a criação de família, reciclam projectos de vida. Pais que são o suporte e pais que já não podem ser o suporte. Avós que ficaram sem pensões. Não foi um sociólogo distante do objecto de estudo aquele que defendeu a tese de doutoramento no início deste mês na Universidade de Coimbra. José Soeiro assumiu-se “observador-participante” — “não é esta a realidade à nossa volta?” — e mergulhou nas vidas do “precariado” português: mais do que um retrato histórico, o também deputado bloquista fez uma cartografia das formas de luta deste grupo na última década e meia. O poder de mudar o futuro do país pode estar neles.
Em 2011, depois de a "geração à rasca" surpreender com uma das mais expressivas manifestações do país democrático, desenhou-se “a primeira e única grande vitória” dos precários do ponto de vista legislativo. Um grupo de trabalhadores recolheu assinaturas suficientes para levar à Assembleia da República (AR) uma proposta que originaria a lei contra a precariedade (braço direito da recente luta da Linha Saúde 24). “Há outras pequenas vitórias além desta, mas conseguir que a legislação fosse no sentido de dar alguns mecanismos de protecção, e não de precarizar, tem neste caso o único exemplo de sucesso”, concluiu José Soeiro na tese “A formação do precariado — transformações no trabalho e mobilizações de precários em Portugal”, a primeira que estuda as formas de luta dos precários.
Esta constatação não é um atestado de fracasso à luta deste grupo heterogéneo e crescente. O “precariado” (a expressão, usada pela primeira vez na sociologia nos anos 90, é uma junção das palavras precário e proletário) teve, por exemplo, a conquista de ver-se inscrito na agenda pública. Para o demonstrar, o sociólogo analisou todos os discursos onde a palavra precariedade (e seus derivados) foi utilizada na AR entre os anos de 1976 e 2014 (quase sete mil registos). Conclusão: o “boom de discussão sobre esses temas” surge em 2008, depois do primeiro MayDay, e em 2011, depois da manifestação da "geração à rasca". Na revisão das lutas do “precariado” feita por José Soeiro são evidentes as conquistas deste grupo, sobretudo ao nível da capacidade de mobilização: nos últimos anos, Portugal viveu nas ruas movimentos contestatários que só encontram paralelo nos ocorridos no período revolucionário, foram criadas diversas associações de resistência e combate à precariedade e, entre 2011 e 2014, houve tantas greves gerais como as que tinham ocorrido em todo o período democrático anterior.
Como se explica, então, tão poucas vitórias no terreno? “Os casos de sucesso aconteceram quando as pessoas encontraram forma de dar continuidade aos movimentos. Em alguns países isso aconteceu, encontrando sujeitos políticos que responderam a isso e inventaram uma gramática política a partir da experiência destas movimentações sociais.” Em Portugal, o surgimento de novos partidos não só “não recompôs o mapa político” como significou “uma fragmentação do espaço à esquerda”, analisa na entrevista ao P3 o deputado, recentemente regressado ao parlamento para substituir João Semedo.
Para o jovem, de 30 anos, uma resposta às políticas de direita passa pela criação de “um polo alternativo aos partidos de austeridade” (PS não incluído), representativo do grupo analisado na tese com mais de 400 páginas, a ser publicada em livro nos próximos meses. “A capacidade de constituir um sujeito político que expresse as reivindicações dos precários” será decisiva nas próximos eleições legislativas", acredita. É que este grupo de pessoas já representa “quase metade da força de trabalho” — e se a estes juntarmos os desempregados sem qualquer tipo de apoio verifica-se que “os ‘desemprecários’ [desempregados e precários] são hoje a esmagadora maioria” dessa classe trabalhadora. “Os precários farão a diferença”, vaticina.
"Precariedade assistida pelo Estado"
A precarização em Portugal ganhou expressão com os contratos a termo (criados por uma lei de 1978) e com os recibos verdes (representativos a partir do final da década de 80). Nos últimos anos, concluiu José Soeiro através de dados do IEFP, “é o trabalho temporário o que mais tem crescido”: Em 2010, eram 266 as empresas de trabalho temporário legalmente registadas, sendo que 198 intervieram no mercado, empregando 279.924 trabalhadores durante esse ano e alcançando uma facturação de 960 milhões de euros. “Mesmo quando houve uma destruição de emprego, o trabalho temporário cresceu. Significa que há também uma substituição de outras formas de precariedade por trabalho temporário”, lamenta.
Uma outra modalidade destacada é aquilo a que o sociólogo chama de “precariedade assistida pelo Estado”: estágios, bolsas e contratos de emprego inserção. Em 2013, havia 74.849 pessoas com contratos de emprego inserção. O fenómeno motivou já uma queixa à Organização Internacional do Trabalho e a intervenção crítica do Provedor de Justiça. “[O provedor] calculava que houvesse 45 mil contratos a serem utilizados para cumprir funções permanentes do Estado. Esta modalidade tem vindo a ser chamada, na própria Europa, de um novo trabalho forçado. As pessoas não podem recusar, trabalham a tempo inteiro, mas não têm um contrato de trabalho, um salário e um conjunto de direitos”, refere Soeiro. Também os estágios, “concebidos inicialmente como um trampolim para um emprego, funcionam agora como um alçapão da precariedade” e são “uma forma encapotada de apoio às grandes empresas”, acusa: “Há estágios na EDP, na Efacec, na Sonae...” Em 2014, os estágios do IEFP abrangeram 39 mil jovens, mas “a maior parte não se transformou depois num posto de trabalho”.
Entre os “novos reportórios de acção” do precariado relatados na investigação — onde Soeiro ensaia 15 teses sobre as transformações no trabalho e estas mobilizações de precários —, destaca-se a força do online. De facto, tanto manifestações que mobilizaram milhares de pessoas (12 de Março e 15 de Outubro de 2011) como alguma da organização de lutas colectivas (FERVE, Saúde 24 etc.) foram iniciadas na Internet, seja através de blogues ou de redes sociais. “O precariado sente que nos locais de trabalho não pode abordar este assunto e o online foi um local de encontro. Ocupou o espaço das tabernas, onde as comunidades operárias criavam consciência de classe no século XIX.”
Estas novas formas de união reagem também à “resposta insuficiente” do sindicalismo. A maioria dos activistas entrevistados pelo sociólogo nunca tinha contactado com um sindicato e outros consideravam que não respondiam às suas necessidades. Perante o júri, no qual estava Carvalho da Silva (ex-líder da CGTP), Soeiro defendeu a necessidade destas estruturas se reinventarem “em cooperação” com as organizações que vão surgindo: “Não são dois universos em conflito. Basta ver que algumas destas associações até se transformaram em sindicatos.”