Maria João Monteiro, in Público on-line
Showbusiness é o espectáculo que parte do projecto homónimo do programa Partis e funciona como ponte entre a sala de aula da Escola do Comércio do Porto e o palco da Mala Voadora.
Há dois anos, tudo isto era novo para Beatriz e Rita. O palco, o texto, os figurinos, o cenário, a coreografia, os ensaios – o teatro era uma linguagem distante, mas as duas alunas do segundo ano do curso profissional de técnico de vendas da Escola do Comércio do Porto não pisavam território totalmente desconhecido. À semelhança do resto da turma, iniciavam a cruzada pelo mundo artístico munidas de conceitos como actividade comercial, necessidade de financiamento e capacidade negocial.
O destino era Showbusiness, o novo espectáculo da Mala Voadora desenvolvido no âmbito do projecto homónimo apoiado pelo programa Partis – Práticas artísticas para a intervenção social da Fundação Calouste Gulbenkian, que sobe a palco esta terça e quarta-feira na sede da companhia no Porto. “Queríamos questionar os conteúdos curriculares e a empregabilidade do próprio curso e, ao mesmo tempo, usar os dispositivos artísticos ao serviço da inclusão social”, afirma Vânia Rodrigues, gestora da Mala Voadora e coordenadora do projecto que conta com a parceria da Escola do Comércio do Porto e da A3S.
A experimentação foi a palavra de ordem para construir um projecto artístico que acompanhasse um grupo de jovens em risco de exclusão social ao longo dos três anos de duração do curso profissional. Havia apenas uma certeza – os holofotes não estariam sobre as dificuldades dos seus percursos de vida individuais ou a alta taxa de retenção da turma, mas antes sobre a aproximação que se procurava entre dois mundos aparentemente incompatíveis. “[Aplicar os conceitos aprendidos na escola] deixa-nos mais à vontade para falar sobre certas matérias, porque aqui conseguimos aprofundá-las e usá-las como exemplos”, explica Beatriz Lopes ao PÚBLICO. A colega Rita Gabriel partilha da opinião e acrescenta que “[o teatro] também ajuda a perder a vergonha para se falar em frente às outras pessoas e se ter mais à vontade”.
Não foi fácil nem rápido chegar aqui. A primeira fase do projecto, que correspondeu ao 10.º ano dos alunos e primeiro ano de curso profissional, foi dedicada ao estabelecimento de um background cultural de que careciam e que funcionaria como uma base de trabalho comum. “Queríamos que eles fossem obrigados a aproximar-se do nosso universo e a travar conhecimento com tudo o que está por trás de um espectáculo”, justifica Vânia Rodrigues. Beatriz, Rita e os colegas foram a museus, viram espectáculos, contactaram com diversas práticas culturais artísticas e discutiram toda a arte que absorveram.
O trabalho de campo amplificou o desfasamento entre os dois mundos. A coordenadora do projecto recorda que, numa saída a propósito do festival Dias da Dança, “alguns alunos perguntaram se iria haver passadeira vermelha” e “outros quiseram saber como é que deveriam ir vestidos”. O romantismo e o glamour associados à esfera artística, “muito aproximados a determinados fetiches de televisão”, dissiparam-se à medida que os alunos foram mergulhando na exigente e repetitiva realidade de preparação do espectáculo. Esta foi a segunda etapa do projecto, que começou com uma brincadeira dos alunos sobre hipotéticas lojas que gostariam de abrir. “O texto foi feito a partir de tudo o que nós falámos”, conta Rita Gabriel. É mesmo essa a premissa da peça – um grupo de jovens que procura ter uma ideia de negócio para abrir uma loja.
O olhar crítico de quem está de fora
A ponte criada entre a escola e o palco procurou funcionar nos dois sentidos. Tiago Gomes, professor na Escola de Comércio do Porto, realça que além de fazer uso dos termos técnicos, o espectáculo permitiu aos alunos desenvolver uma maior capacidade de comunicação e relação com o outro, assim como um grande sentido de criatividade e iniciativa. “Através desta experiência, eles acabam por ter estas competências mais trabalhadas e isso acaba por ser uma mais valia tanto na sua formação como técnicos de vendas como enquanto pessoas”.
A escola colocou o programa curricular ao serviço da arte e o retorno tem sido notório a nível de aprendizagem e de comportamento da turma. “Muitos dos conteúdos tratados em palco são leccionados na escola, o que potencia a capacidade de memorização e de atenção”, clarifica Tiago Gomes. A concentração foi, aliás, um dos maiores desafios para conseguir erguer uma peça de teatro com todos os mecanismos envolvidos. “Inicialmente demorávamos 45 minutos até haver um silêncio mínimo e o primeiro ano de trabalho tratou sobretudo disso”, relembra Vânia Rodrigues. A materialização de Showbusiness é o culminar de um trabalho consistente a nível comportamental. “É uma conquista extraordinária, mais para eles do que para nós, do ponto de vista da capacidade de foco, da compreensão do sentido daquilo que estão a fazer e da pertinência da especulação artística para o seu próprio percurso”.
O levantamento das inquietações do mundo artístico só foi possível quando Beatriz, Rita e os colegas abraçaram o sentido de compromisso e de entreajuda necessário para a montagem de um espectáculo. “Claro que se criam outros laços, porque conversámos sobre outras coisas”, nota Beatriz. O olhar renovado de quem vem de fora do circuito artístico deu aos alunos um maior espírito crítico sobre este universo. “Eles são os primeiros a escrutinar a relevância artística para o seu percurso. Vale a pena experimentar? Em nome de que é que fazemos isto?”, reflecte Vânia Rodrigues, adiantando que estas “são questões que se pretendem deixar em aberto”.
O questionamento artístico é feito com mestria na fábrica da imaginação que é Showbusiness. Ao longo de 58 minutos da peça, os jovens discutem inúmeras ideias de negócio até que acabam num teatro. E, se num momento consideram seriamente tornar aquele espaço numa fonte de rendimento, rapidamente se apercebem da máquina gigantesca que é preciso alimentar. “O teatro pode ser um mau negócio, mas que é um negócio é”, atira uma das vozes. Entre a loja que imprime uma fotografia em tamanho real dos patrões para as pessoas descarregarem frustrações após o trabalho ou o call center para idosos solitários, o chamado “ganhar dinheiro com os velhinhos”, a turma questiona a viabilidade da criação artística e teatral no presente.
O projecto vai a meio e a meta do próximo (e último) ano é emergir a escola na esfera artística, fazendo com que troque o discurso mais recto e objectivo pelo pensamento livre e inventivo. Para isso, a Mala Voadora trabalhará com os alunos nas provas de aptidão pedagógica, o exame final para o ensino profissional. “Não vamos mexer nos conteúdos, vamos tentar ajudá-los a organizar o pensamento de outra forma e a serem pessoas mais seguras”, explica Vânia Rodrigues.
A contaminação do sistema pedagógico pela criatividade artística tem sido uma tarefa hercúlea, mas um encontro que parecia improvável tornou-se uma fonte de reflexão que fala do teatro dentro do teatro e discute o futuro profissional destes jovens. Agora, Beatriz e Rita já não são novatas. Falam como se percebessem muito de teatro. E feitas as contas à vida, percebem que são melhores dentro e fora do palco por causa dele.