5.2.18
Ciganos - Uma longa sina
Uma grande reportagem de Victor Bandarra, com imagem de Gonçalo Prego e edição de Miguel Freitas, in TVI
Ler a sina na palma da mão tem sido a sina de muitas velhas ciganas, ao longo de séculos. Dona Prazeres, 80 anos cheios de esperteza e sabedoria, lê as linhas da vida, do passado e do futuro, nos jardins frente ao Palácio de Belém, em Lisboa. O negócio vai mau, muito graças à concorrência de astrólogas e quiromantes com escritório montado, algumas com programas na TV. Ainda assim, são as mulheres ciganas, velhas e novas, que se mantêm as guardiãs da família e das tradições de um povo que veio do noroeste da Índia para a Europa, no século X, e se fixou também na Península Ibérica, há mais de 600 anos. Um povo que, ainda que perseguido, nunca se deixou integrar à força na comunidade maioritária portuguesa. Um povo resistente, teimoso, sobrevivente. Dona Prazeres, psicóloga por força do engenho, mantém a ladainha: "Reza-lhe aqui na sua sina..." E a cliente, ainda que pouco crente, vai abrindo os olhos e abanando a cabeça, como quem diz: "E não é que a cigana vai acertando..."
O velho mito do cigano nómada, filho do vento e das estrelas, já se começou a perder há muito tempo. A maioria dos ciganos portugueses vive hoje nos subúrbios das grandes cidades, sobretudo de Lisboa e Porto. São, quase todos, feirantes ou negociantes. Mas final, quantos são? Não há número exactos (porque nos sensos não se pergunta qual a etnia ou a cor da pele), mas calcula-se que vivam em Portugal entre 40 e 60 mil ciganos. Alguns conhecedores das deambulações ciganas falam em mais de 100 mil.
Pouco letrados, arredios das escolas, só há alguns anos começaram a aparecer ciganos, e sobretudo ciganas, nas universidades. Mas poucos, ainda muito poucos. Cátia Montes, 30 anos, é uma delas. Vive em São Brás de Alportel e é uma algarvia dos sete costados. Trabalha de dia num super-mercado e estuda à noite no Curso Superior de Educação Social da Universidade do Algarve, em Faro. Anda diariamente numa lufa-lufa e ainda consegue arranjar tempo para ser bombeira, com formação em saúde e primeiros-socorros, nos Voluntários de São Brás. É ainda solteira, o que para muita gente tradicionalista cigana é uma vergonha. Mas Cátia não liga. "Eu é que sei da minha vida..." O comandante dos Bombeiros Voluntários de São Brás, Vítor Martins, lança-lhe os maiores elogios. "Tem pulso firme e integrou-se muito bem no corpo de bombeiros!"
Cátia, orgulhosa cigana, mantém as ligações e o respeito à família. Por vezes, pega no pai, Francisco Montes, 76 anos, e leva-o a visitar a irmã, o cunhado e os sobrinhos a Faro. É uma festa! O pai Francisco é uma figura do arco-da-velha. Já foi bombeiro, pedreiro e trabalhador nos montados de cortiça. Agora doente (ficou sem uma perna), Francisco sempre apoiou os estudos da filha, ainda que não saiba ler nem uma letra (apenas assinar o nome). Nos seus tempos de criança, poucos ciganos iam à escola, e ele sempre fugiu à prisão que a escola representava. Do que não fugiu foi à tropa, ao contrário de quase todos os ciganos da sua geração. "Foi só para chatear um tipo da GNR..." Tinha Francisco já os seus 25 anos quando um militar da GNR deu em apostar que havia de apanhar o Xico cigano para o levar a dar o nome ao quartel. Francisco andou fugido durante 2 anos, em casa de familiares em Setúbal. Os amigos de São Brás iam avisando. "Olha que o gajo não desiste de te apanhar!" E um belo dia, Francisco tomou uma decisão. "Digo eu assim: Eh pá! Não me apanhas não senhor! Eu é que me vou entregar para fazer a tropa!" E assim se apresentou voluntariamente no quartel de Faro. E por conta da teimosia em chatear o homem da GNR, Francisco bateu com os costados, durante 3 anos, em Mueda, norte de Moçambique, a região mais violenta e perigosa da então colónia, durante a guerra de África.
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O casamento e a escola
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Os ciganos quase sempre suspeitaram dos "senhores", como chamam aos não-ciganos. E sobretudo desconfiam da escola e da educação não-cigana. A presidente da Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas, Noel Gouveia, sabe que "a tradição cigana não valoriza a escola". Afinal de contas, durante séculos, os ciganos nunca sentiram a necessidade de saber ler ou escrever - bastava-lhes fazer bem as contas e gerir melhor o negócio. A certa altura, muitos rapazes ciganos insistiram em tirar a 4ª classe, simplesmente para poderem ter carta de condução e guiar a carrinha nas idas e voltas das feiras. Em Portugal, calcula-se que 15% dos ciganos são simplesmente analfabetos e, nas mulheres, a percentagem sobe para 25%. Mas as coisas começam a mudar. Orgulhosamente ciganos (mais mulheres que homens) um bom grupo de jovens já frequenta a universidade. Ainda que alguns ainda se envergonhem de assumir a sua cultura cigana, provavelmente por auto-defesa. "Alguns escondem a nossa etnia!", reconhece Noel Gouveia. Cátia Montes é mais contundente. "Não há muitos ciganos com um curso superior porque não há também muitas oportunidades para eles..."Quanto aos mais jovens, Cátia sabe bem o que pode acontecer a um miúdo cigano nalgumas escolas. "É complicado um miúdo cigano numa escola. É logo apontado. E depois o bullyng e o racismo. Não é fácil continuar os estudos..."
Os tempos vão mudando. Além de Cátia e de mais uns quantos, a jovem cigana Alcina Faneca, 24 anos, advogada com mestrado em Direito Criminal, sempre teve o apoio dos pais e irmãos para continuar os estudos. Cresceu numa pequena comunidade, na aldeia de Carvalhal, Torre de Moncorvo, mas nunca desistiu dos seus sonhos. Um deles é vir a ser a primeira cigana juíza portuguesa, mas sem nunca perder a sua identidade cigana.
Bem perto do Carvalhal, na antiga prisão de Moncorvo, são outros os sonhos e costumes das nove famílias ciganas que ali foram instaladas à força há 9 anos. Cigana à antiga, a matriarca da comunidade, Isabel Fragoso, preserva com mão de ferro as diferenças entre ciganos e "aldeanos", como chamam por aqui aos não-ciganos."Antigamente não casavam ciganos com aldeanos! É a nossa tradição!" Dona Isabel acha mal essas misturas e, para que não haja surpresas, já tirou a neta da escola. A miúda tem apenas 15 anos, mas já está prometida a um rapaz cigano do Porto. Para já, insiste Dona Isabel, é preciso que não se deixe contaminar pelos costumes modernos. "Há mais maldade que bondade nas escolas, não acha?!" E assim pensando, a avó escreveu uma carta ao director da escola, a avisar que a neta não ia mais às aulas. A jovem ficou a meio do 5º ano de escolaridade - é a sua sina.
Com outra mentalidade, tanto a trabalhadora-estudante Cátia como a advogada Alcina colocam em primeiro lugar a sua profissão e realização profissional. Casar? Logo se vê. Na margem sul do Tejo, na Arrentela, Seixal, Manuela Maia, 30 anos, ex-feirante desempregada, bem gostava de ter seguido dos estudos mas ficou-se pelo 6ª ano. Casada, mãe de 3 filhos, a viver do Rendimento Social de Inserção, quer pelo menos tirar um curso de cafetaria na Associação das Mulheres Ciganas Portuguesas."Tenho uma filha e não quero que ela se case cedo como eu..."
Há quem tenha várias teorias sobre por que é que os ciganos (sobretudo as ciganas) casam tão novos. Ignoram que casar cedo não é um dogma da comunidade cigana, como muitos julgam, apenas um velho costume, que chegou a ser seguido pela generalidade dos portugueses (incluindo a nobreza), que casavam as filhas ainda adolescentes. E há também alguns equívocos na comunidade maioritária quanto ao casamento cigano. "Ao contrário do que se pensa, hoje os pais não obrigam as filhas a casar! Elas casam porque querem, têm essa liberdade. E os pais e as mães, como é normal, tentam arranjar o melhor marido para as filhas..." Também Manuela Maia sublinha que "muitas miúdas ciganas acabam por casar muito novas para se libertarem dos pais! Porque a liberdade delas é muito pouca..."
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Os três pilares da cultura cigana
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A cultura e tradição ciganas estão assente em três pilares fundamentais, preservados ao longo de século - o casamento, o luto e as chamadas "leis de apaziguamento". Mas afinal, o que são estas leis? Leis que não estão escritas, como nunca estiveram outras tradições cigana. Noel Gouveia explica: "As leis de apaziguamento são aplicadas por pessoas mais velhas, idóneas e com condição profissional limpa. É um pessoa que é boa conselheira e imparcial, caso exista confusão e desavenças entre duas famílias ciganas". Estas pessoas mais velhas, geralmente homens, não são juízes no sentido judicial do termo. São antes conselheiros com a devida sabedoria e sempre muito respeitados. Por exemplo: caso duas famílias se desentendam sobre qualquer problema numa feira, o velho conselheiro aplica a sua decisão - às segundas, quartas e sextas vai uma família à venda, no resto dos dias vai a outra, até que todos se entendam. O secretário de Estado Carlos Miguel lamenta que essa mais-valia da comunidade cigana se vá perdendo aos poucos, ainda que o respeito pelos mais velhos seja ainda um pilar fundamental da tradição. "É quase impossível encontrar um velho cigano num lar de terceira idade! Porquê? Isso seria uma desonra e uma vergonha para a família! O dever da família é tratar dos mais velhos!" Também as crianças são super-protegidas, talvez até demais. Noel Gouveia sabe que "as crianças são muito protegidas, ao contrário do que muitos julgam. E há famílias que, de tanto as protegerem, enviam-nas muito tarde para a escola!"
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O luto e os preconceitos
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A droga é um dos problemas da sociedade dominante, não-cigana. Por muito que parte da comunidade cigana tenha a fama, e respectivo proveito, de estar metida no tráfico de droga, a verdade é que muitos jovens ciganos se deixaram apanhar também pelo vício. Dramático, para algumas famílias, é que os que se deixam agarrar pela droga deixam também de prestar o devido respeito aos mais velhos. Cátia Montes sabe que "a droga destrói qualquer comunidade". Mas insiste que "não são os ciganos os grandes barões da droga, os que trazem a droga para o nosso país".
Nos últimos anos, muitos ciganos, tradicionalmente católicos, têm aderido à Igreja Evangélica. Os evangélicos têm ajudado muitos jovens ciganos a sair da droga. Pena que, segundo os preceitos evangélicos, rapazes e raparigas crentes não possam dançar músicas profanas, nem mesmo as tradicionais danças ciganas. Num convívio cigano organizado no Seixal choca ver as raparigas a ensair meia dúzia de passos estilo "gospel", porque só as danças religiosas de louvor a Deus são permitidas.
Alzinda Carmelo, mediadora sócio-cultural e vice-presidente da Associação das Mulheres Ciganas, tem familiares evangélicos, mas gosta de dar o seu pezinho de dança cigana. Quando tirou o curso, há 17 anos, era difícil convencer ciganos e não-ciganos que uma mulher podia ser activista e trabalhadora. "Foi muito difícil, mas o meu paizinho e os meus irmãos deram-me força!" Os pais de Alzinda beneficiaram do Rendimento Social de Inserção (RSI) e uma assitente social ajudou-a a tirar um curso sócio-profissional. Aliás, muita gente ignora que a lei prevê que, para uma família receber RSI, tem de provar que os filhos frequentam a escola. "É uma boa contrapartida, e ajudou muito as famílias ciganas", considera Noel Gouveia. Quanto a Alzinda, orgulhosamente cigana, sente o preconceito de quem lhe diz, com ar paternalista: "Ó Alzinda! Já nem pareces cigana... Mas sou! E com muito orgulho!" O pior é quando tenta arranjar emprego ou alugar uma casa. Há uns tempos, estava Alzinda de luto pela morte do pai, tentou alugar um apartamento. O luto cigano é de um rigor extremo - vestes negras e compridas, lenço pela cabeça e sandálias, nada de brincos ou berloques, nada de pinturas ou maquilhagem. Carlos Miguel sempre achou exageradas as obrigações do luto. "Aos poucos, o luto vai aligeirando!" Mas Alzinda, mulher moderna e culta, não deixa de cumprir certas normas do luto, sempre rigoroso. Quando chegava de luto à entrevista com o senhorio (com toda a papelada em ordem, do IRS ao fiador) a resposta era sempre igual:"Já está alugada!" Alzinda decidiu "fazer uma ciganice", como ela diz. Arranjou-se, pintou-se, tirou o luto e apresentou-se para alugar a casa, o que conseguiu facilmente. Quando foi receber a chave, de novo em luto rigoroso, o senhorio arregalou os olhos. "Ó Alzinda, mas você é cigana?!" Alzinda respondeu muito seriamente. "No meu Bilhete de Identidade está lá que sou portuguesa, não que sou cigana!"
Os ciganos são senhores de arreigados costumes, alguns bens estranhos para os seus compatriotas. Talvez por isso, segundo a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, os ciganos são hoje a comunidade mais discriminada da Europa. Ainda assim, muitos ciganos têm-se adaptado como podem, mesmo em comunidades mais pequenas. Em Freixo de Espada à Cinta, a comunidade cigana é mais ou menos bem aceite pela autarquia e pelos não-ciganos. José Eduardo dos Santos e António Manuel dos Anjos são ciganos, cunhados e compadres. São cesteiros, dos melhores da região transmontana. A sua arte já vem de há séculos, mas o plástico destruiu o negócio. "Deu cabo desta arte! É pior mas é mais barato..." José e António, como ciganos que se prezam, têm um rancho de filhos, netos e bisnetos. "Mas nunca casei de papel assinado!", explica José. Os dois cunhados casaram segundo as tradições e rituais ciganos. "Vale como qualquer outro casamento..." Cesteiros, latoeiros, negociantes de burros e cavalos, eram estas tradicionais actividades ciganas, que vão desaparecendo aos poucos no interior transmontano, beirão ou alentejano.
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Os sapos e a língua romani
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Ao longo de centenas de anos, os ciganos do sul europeu tentaram preservar a sua língua original - o romi, romani ou romanô. Estudiosos e linguistas encontram várias semelhanças do romi com línguas actuais do Noroeste da Índia. Mas a língua (não escrita) foi-se perdendo aos poucos, graças às perseguições dos povos dominantes, que determinaram a sua proibição. Francisco Montes ainda fala alguma coisa. "A gente cigana tem a sua linguagem... É uma língua muito, muito antiga!" A jovem Cátia conhece umas quantas palavras, mas evita transmiti-las a estranhos. "Temos algumas palavras, mas não temos o romani puro com deve ser, devido a perseguições históricas. Proibiram-nos de falar a nossa língua. Quem falasse era morto. Mesmo assim, após séculos de perseguições, ainda preservamos algumas palavras..."
Outro dos mitos ligados aos ciganos é o seu pretenso medo dos sapos. "Isso é um mito! Há essa ideia, mas isso é porque os sapos estavam muito ligados à bruxaria! E não eram só os ciganos que evitavam os sapos..." O secretário de Estado Carlos Miguel sorri. "A verdade é que, ao meu pai, os sapos davam-lhe asco. Quando aparecia aquele anúncio na Televisão do ´eu vi um sapo´, ele cuspia logo para o chão..." A realidade é que muitas lojas e restaurantes apresentam à porta ou no interior um ou vários sapos de barro. Como que diz: "Ciganos não são bem-vindos!" Cátia Montes, a bombeira, revela que já viu farmácias e até hospitais com sapos à porta. "Acha que um cigano que esteja doente não entra numa farmácia ou num hospital só porque está lá um sapo de barro?! Isso é um mito!" Um mito a que muitos preconceitos dão razão de ser. Quanto aos célebres ajuntamentos ciganos à porta de hospitais e tribunais, Noel Gouveia explica tudo com uma lógica a toda a prova. "A maioria das pessoas tem uma prima que é enfermeira ou um tio que trabalha no tribunal. Nós não temos ninguém. Vamos lá em solidariedade para com quem está a sofrer ou tem problemas. Se for uma rapariga cigana para ter bebé ninguém lá vai à porta da maternidade, não é preciso..."
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Moda cigana
As danças ciganas são únicas e pouco têm a ver com o flamenco andaluz, como muitos pensam. Tal como são únicos os antigos trajes e padrões das roupas ciganas. Não é todos os dias que se assiste em Portugal a uma requintada passagem de modelos de roupa cigana húngara. Aconteceu em finais do ano passado, na Estufa Fria, em Lisboa. Uma conhecida estilista cigana húngara, com marca registada (Romani Design), fez desfilar várias modelos ciganas e não-ciganas. A assistir, muitas jovens ciganas portuguesas, e também a célebre Tia Olga, a mãe de Noel, uma referência do activismo cigano contra a desigualdade, a primeira mulher cigana a tirar a carta de condução. Por lá passaram também várias personalidades, uma ex-secretária de Estado e a embaixadora da Hungria em Lisboa. A actriz Fernanda Serrano apresentou o desfile, mas quem fez o maior sucesso entre as raparigas ciganas foi o jovem actor Pedro Barroso, que dizem fazer muito bem de cigano na novela da TVI "A Herdeira". Algumas ciganas ficam apenas chateadas quando actores e actrizes da novela tentam imitar, mais ou menos mal, o verdadeiro estilo de dança cigana.
Filhos do vento e das estrelas, mas cada vez menos nómadas, os ciganos vão resistindo a ser assimilados pela cultura dominante. Muitos começam a exigir o direito à igualdade, mas também à diferença, cumprindo as leis do país mas também as velhas tradições ciganas. Para muitos, ciganos e não-ciganos, é ainda difícil o entendimento e, sobretudo, o convívio do dia-a-dia. A carga pejorativa da palavra "cigano" vai levar tempo a desaparecer. Mas, como previa a velha Dona Prazeres ao ler a sina na palma da mão da rapariga não-cigana, até pode haver "muitas e muitas surpresas daqui a pouco tempo". Quem sabe!
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Dona Prazeres, cigana das antigas, é uma sobrevivente. Aos 80 anos, é senhora de muitas manhas, costumes, gestos e palavras, que vêm de há muitos, muitos séculos. É a sua sina. Ela que lê a sina na palma da mão de quem para isso se predisponha - pagando, claro está!
A mulher, rugosa, faz pela vida no jardim frente ao Palácio de Belém, em Lisboa, mas não consta que, até hoje, o Presidente Marcelo lhe tenha posto a vista em cima, ou sequer tirado uma "selfie" com ela. E se um dia o vizinho Marcelo, inquilino provisório do palácio, chegar à fala com Dona Prazeres, abrindo sua mão presidencial, há-de cogitar noite dentro sobre o que a velha cigana lhe descobriu na linha da sorte e da vida, do passado e do futuro.
Durante a reportagem da TVI, uma rapariga irónica e atrevida, Glória, aceita abrir a mão aos olhos de Dona Prazeres. E fica desde logo a saber o que lhe marca a sina. Começa Dona Prazeres:"Marca-lhe aqui na sua sina que foi traída pela amizade do homem de que a senhora gostava, e que não era bom no dinheiro..." Glória sorri. E logo Dona Prazeres: "O dinheiro não é tudo! O dinheiro vai e vem! A felicidade é que não..."
Ler a sina, o passado e o presente, tem sido a sina de muitas velhas ciganas, obrigadas a sobreviver, por muito que a arte e o engenho de ler na mão se venham a perder aos poucos. Uma pena, porque são as mulheres as guardiãs da família e das tradições de um povo com uma longa lista de sortes e, sobretudo, de azares. E são as mulheres, mais uma vez, que nos últimos anos têm lutado contra a severa e longa sina da comunidade cigana portuguesa.
Mas afinal de contas, para além da proverbial manha cigana, o que é que os compatriotas portugueses não-ciganos sabem hoje do povo cigano? Pouco, muito pouco, quase nada. E quantas ideias feitas, quantos preconceitos! A verdade é esta: muitos povos antigos que passaram pelo território hoje português foram engolidos por outros, ou simplesmente misturaram-se entre si. É o caso de Lusitanos e Mouros, Celtas ou Visigodos. Mas os ciganos resistiram à mistura, sabe-se lá como e a que preço. Sempre diferentes, sempre orgulhosos, sempre desconfiados, sempre sobreviventes. Filhos do vento e das estrelas, como a si próprios se denominam.
Fugindo não se sabe bem de quê, o povo cigano pegou na trouxa e migrou do noroeste da Índia para a Europa, no século X, ainda Portugal não era Portugal, sequer Nação. Espalharam-se pelo continente e, há mais de 600 anos, chegaram ao extremo ocidental da Península Ibérica. Foram nómadas durante séculos (alguns ainda são) e levaram à letra um seu ditado: "O Céu por tecto, a Terra por Pátria, a Liberdade por Religião!" Sempre com um olho no passado e outro no futuro, tem sido esta a sua sina.
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"Há sempre culpas de ambas as partes da comunidade, seja em que situação for. E por isso, no caso português, e no caso da etnia cigana, com certeza que este Estado que, durante séculos, reprimiu os ciganos, também tem aqui muitos estigmas que ele próprio, Estado, necessita de vencer!"
Carlos Miguel, secretário de Estado das Autarquias Locais
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O actual secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, é filho de um cigano e de uma não-cigana. É advogado e foi presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras.
Para muitos torrienses, foi (e é ainda) "o filho do Carlos cigano", e disso não se envergonha o governante. Conhece bem os dois lados da moeda e sabe que, ao longo de centenas de anos, o medo e a ignorância provocaram o racismo e a xenofobia contra a minoria cigana.
Ciganos que são tão portugueses como os outros, e há mais tempo que muitos, mas que resistiram e resistem à integração forçada. Carlos Miguel foca-se na História.
"Há sempre culpas de ambas as partes da comunidade, seja em que situação for. E por isso, no caso português, e no caso da etnia cigana, com certeza que este Estado que, durante séculos, reprimiu os ciganos, também tem aqui muitos estigmas que ele próprio, Estado, necessita de vencer!"
Apontando as culpas de "ambas as partes", o governante aponta que "a etnia, sendo reprimida, criou uma série de auto-defesas que, por vezes, não lhe permite responder de forma mais activa àquilo que são políticas de melhor integração e melhor socialização".
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"As coisas estão mesmo muito más! A maioria das pessoas que andavam nas feiras estão a desistir. Não dá, não rende!"
Manuela Maia, 29 anos
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Mas mudam-se os tempos e mudam-se algumas vontades. Por exemplo, na Arrentela, Seixal, a Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas, presidida por Noel Gouveia, conseguiu reunir um grupo de várias jovens mulheres ciganas, que lutam por tirar um curso de formação em matérias como a culinária, a cafetaria, a maquilhagem ou a arte de tratar os cabelos.
A maior parte das jovens tem vários filhos e pouca escolaridade. Foram feirantes desde pequenas, acompanhando a família, mas o negócio está cada vez pior. Por isso, estão desempregadas à força. Certo é que todas têm o seu sonho: aprender uma outra profissão.
Manuela Maia, 29 anos, casou com 17 e tem três filhos. Quer tirar um curso de cafetaria, ter o seu próprio negócio. O marido ainda é feirante, mas Manuela está desempregada.
"As coisas estão mesmo muito más! A maioria das pessoas que andavam nas feiras estão a desistir. Não dá, não rende!"
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Os chineses estragaram o negócio...
Os comerciantes chineses rebentaram com o negócio tradicional dos ciganos. Na feira da Brandoa, Amadora, um jovem feirante, Nino, explica o esquema. "Os ciganos fazem por 5 euros, os chineses descem para 3 euros e meio..." E o controlo da polícia e do fisco, sempre em cima dos feirantes.
Antigamente, há uns 15/20 anos, pagava-se em escudos e os chineses ainda não tinham chegado. Os ciganos feirantes trabalhavam muito - era mais fácil fintar o fisco, todos agradeciam, todos ficavam vestidos, calçados e contentes. Na Feira da Brandoa, Amadora, os repórteres da TVI deram de caras com a chegada dos agentes da PSP, que foram direitinhos a um vendedor de calçado cigano. Toda a mercadoria foi apreendida, por alegada contrafacção. Todos protestam, ciganos e não-ciganos.
"A comunidade cigana está a passar mal. Há muito shopping, há muitos chineses, e nós já não somos o único sítio onde se podia comprar barato!", explica Noel Gouveia.
A crise atinge Nino, 29 anos, que anda nervoso e desiludido. Quer sair das feiras, mas para fazer o quê? É analfabeto, como muitos outros ciganos, e toda a vida andou nas feiras. Manuela Maia tem apenas o 6º ano de escolaridade ("algumas de nós têm ainda menos...") mas não desiste de ter o seu negócio de cafetaria. "Nós não temos muitos estudos. Recebo o Rendimento Mínimo Garantido, mas não chega para sustentar os meus filhos..."
Noel Gouveia dá um exemplo paradigmático. "O problema para trabalhar não é da comunidade cigana. Você se tiver uma cafetaria aceita uma pessoa cigana como empregada? E numa lavandaria? E para alugar uma casa? Ninguém aceita! É natural que, assim sendo, a gente tenha de fazer o nosso próprio negócio, para garantir a subsistência da família!" E quanto à igualdade perante a lei, Noel é taxativa. "A igualdade, às vezes, não é suficiente: tem de haver justiça! Porque se existir apenas igualdade e estivermos a ver um jogo de futebol, e eu tiver 1 metro e 50 e você 1 metro e 70, a igualdade não está igual: você vê tudo e eu não vejo nada!"
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"Isto foi uma coisa impressionante! Foi o primeiro presidente que conseguiu meter, de uma vez, dezenas de ciganos na prisão. Homens, mulheres e crianças. O que vale é que podemos entrar e sair quando queremos..."
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Ciganos moram na... prisão
No interior Norte do país, em Torre de Moncorvo, grande parte da comunidade cigana vive literalmente na prisão. Há 9 anos, o anterior executivo camarário pediu ao Ministério da Justiça que se pudesse utilizar a cadeia desactivada, para aí instalar várias famílias ciganas que viviam em barracas. Era uma solução provisória, por 6 meses - já lá vão 9 anos.
Dona Isabel Fragoso, a matriarca da comunidade "prisional", usa da maior ironia. "Isto foi uma coisa impressionante! Foi o primeiro presidente que conseguiu meter, de uma vez, dezenas de ciganos na prisão. Homens, mulheres e crianças. O que vale é que podemos entrar e sair quando queremos..."
Mais a sério, aponta as condições das celas onde vivem 9 famílias (com muitas crianças) - espaços exíguos, promíscuos, frios, maltratados e deprimentes. Sara, uma das residentes no lar-prisão, tem 6 filhos. "Os mais velhinhos, até andam na escola, têm vergonha de viver numa prisão, com grades!"
A câmara municipal já fez algumas obras, sobretudo nas casas de banho, mas várias das celas-quartos nem sequer têm porta para o corredor. A vereadora da Câmara de Moncorvo com o pelouro social, Piedade Menezes, reconhece que tem na "prisão dos ciganos" um problema herdado. "Estamos a tentar resolvê-lo. A ideia é fazer a integração dos ciganos, segundo um projecto que já foi testado em Coimbra!"
Mas, para isso, é preciso dinheiro e algumas disposições legais do governo central, dada a reduzida população do concelho, tal como o respectivo orçamento. Por isso, Piedade Menezes apela ao governo que "abra medidas que permitam resolver o problema dos ciganos na prisão!"
Até lá, as famílias ciganas vão convivendo com o perigo: vidros partidos, instalação eléctrica deteorada, canos do aquecimento a debitar gases para o interior das celas.
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Uma futura juíza cigana
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A poucos quilómetros de Moncorvo, na aldeia do Carvalhal, vive a família Faneca, também cigana. Uma família que pouco tem a ver com os conterrâneos ciganos metidos à força na prisão. Os Faneca são ciganos de posses e muito respeitados na região. O chefe de família tem vários negócios, em Portugal e em Espanha.
Uma das filhas, Alcina Faneca, viaja do Porto para passar o fim-de-semana em casa e matar saudades da mãe e dos sobrinhos. Advogada de 24 anos, com mestrado em Direito Criminal, Alcina é o orgulho da família. Mas a jovem não se quer ficar pela advocacia, o seu sonho de criança é ser...juíza.
Quando assim for, Alcina Faneca será a primeira juíza cigana portuguesa e arrisca-se a ter de julgar um outro cigano. Alcinda jura que há-de ser justa, apenas justa, justa com todos, como acredita que muitos responsáveis não são para com a comunidade cigana. "Estou preparada!"
Nas televisões, a maioria das vezes que os ciganos têm direito a aparecer no ecrã é em situações de crime, confusão ou violência.
António Brandão de Melo, conhecido com o advogado dos ciganos, explica que não é fácil defender um cigano. "São pessoas que se defendem e muito desconfiadas. Leva tempo a perceber o que realmente aconteceu ou não!"
O advogado criou amizades em muitas famílias ciganas e desmistifica algumas ideias feitas. "Homicídio é raro! É mais à base de furtos, pequenos furtos, furtos qualificados, algumas burlas. Sobretudo porque eles têm jeito para a venda, têm jeito para enrolar, digamos assim, e depois deslizam..."
Brandão de Melo sabe que a esmagadora maioria dos ciganos não é rica. "Eles levaram um grande rombo na sua economia familiar com a entrada dos chineses...E a maior parte das pessoas não gosta de ciganos, e eles sentem isso!"
Verdade é que o advogado garante ter passado "bons momentos com eles; gosto de me integrar numa família simples, humilde, em que a gente, à noite, até conversa um bocadinho a olhar para as estrelas. E eles sabem muito disso!"
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Os prós e os contra... ciganos
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A família mais próxima, espécie de clã, é o núcleo do universo cigano. Mas há grandes rivalidades entre famílias. A maior parte dos ciganos detidos por homicídio está condenada por matar outro cigano. No último Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, divulgado em 2017, à pergunta "Quem é que não gostaria de ter como vizinhos?" a maioria responde:"Outros ciganos". Ou seja, muitos ciganos não querem ter outros ciganos à porta, como vizinhos.
A maior parte dos cerca de 60/70 mil ciganos portugueses (há quem admita 100 mil) vive nos arredores das grandes cidades de Lisboa ou Porto. Por muito que as tradições sejam fortes e convictas, há hoje grandes diferenças entre as comunidades dos subúrbios citadinos e os grupos de ciganos do interior Norte, alentejano e algarvio. E quando se fala em tráfico de droga ou em problemas de violência, os ciganos são logo apontados por polícias e não ciganos. Não é por acaso que, ao longo de séculos, se assustou (e ainda assusta) as criancinhas com dois tipos de ameaças: "Ó comes a sopa ou o cigano leva-te!" ou " Se não comes a sopa vem o polícia e leva-te!"
No concelho de Loures vivem centenas de ciganos, a maioria feirantes. Nas últimas eleições autárquicas, o candidato PSD, André Ventura, ficou conhecido como o candidato anti-cigano, sobretudo por acusar muitos ciganos de não quererem trabalhar e de viverem basicamente do Rendimento Social de Inserção (RSI). Ele pôs o dedo na ferida.
"Andamos há 40 anos nisto: a dizer que não há problema nenhum com os ciganos, que é um problema de integração, é um problema de mais dinheiro... Mas depois, toda a gente pensa o contrário, mas ninguém diz. E quando alguém diz e toca o problema, parece que lhe cai o mundo em cima!"
Não lhe caiu o mundo em cima, mas caiu-lhe boa parte da classe política e das associações ciganas e pró-ciganas. Houve queixas no Ministério Público por alegado racismo e xenofobia, mas o processo foi arquivado. "Eu não fui o candidato contra ou a favor dos ciganos: eu fui o candidato que quer resolver um problema, que tem séculos em Portugal..."
André Ventura não ganhou, mas até fez subir a votação do PSD em Loures. O secretário de Estado Carlos Miguel, ex-autarca em Torres Vedras, diz que "o que aconteceu em Loures foi um fenómeno muito pontual. O meu grande desejo é que, no futuro, esses fenómenos não se repitam, porque andarmos para trás em termos civilizacionais é algo que Portugal não precisa, com certeza absoluta".
No fundo, os portugueses sabem muito pouco sobre os costumes e as tradições da comunidade cigana. Há muitos mitos e muitos preconceitos. Na aldeia global, é altura de se saber aquilo que muitos não sabem, nem nunca ousaram perguntar, sobre a comunidade cigana: o respeito por velhos e crianças, as chamadas "leis de apaziguamento", a ida ou não à escola, os rituais de luto, a morte, o casamento, a sua língua Romani, o propalado medo dos sapos e muito mais. Parte da comunidade já luta por se integrar, mas sempre orgulhosa, sempre em defesa dos seus ritos e tradições, num país onde têm a fama, e algum proveito, de que "é preciso estar sempre com um olho no burro e outro no cigano".
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