João Pedro Pincha, in Público on-line
A partir de 1990 centenas de pessoas saíram do centro histórico com a promessa de que voltariam para casas reabilitadas, mas muitas ficaram nos bairros de acolhimento. Agora há 21 famílias de regresso.
Na sala de Jorge Dias as paredes estão impecavelmente brancas e quase despidas. A monotonia só é quebrada por uma gravura, não muito grande, colocada por cima da mesa de jantar, que mostra como seria o Largo do Chafariz de Dentro no século XIX. “O bairro é sempre o bairro. Eu posso dizer que gosto de estar aqui, mas há sempre qualquer coisa neste cantinho”, suspira, já resignado, enquanto leva a mão ao peito e aponta para o coração.
Alfama não lhe sai do pensamento, mas para lá das vidraças o que se vê é o vale de Chelas, com a sua vegetação mais ou menos selvagem, as casas precárias e os armazéns enferrujados, enquanto no topo da encosta se erguem desordenadamente os prédios da Picheleira e das Olaias. A paisagem foi-se tornando familiar com o passar dos anos. Jorge Dias sabe e aceitou que já não vai sair da Quinta do Ourives, o bairro municipal para onde foi forçado a mudar-se em 1992.
Vivera até aí na Rua da Regueira. “Naquela casa nasceu a minha irmã mais velha, nasci eu e a minha filha. A casa era muito grande, tinha uma sala de jantar enorme e uma grande cozinha”, recorda, sentado à mesa com o amigo Domingos Silva, também um alfamista deslocado. Ambos vieram para a Quinta do Ourives com a promessa de um dia regressar a casa, mal se concluíssem as obras de reabilitação acordadas entre a câmara e os senhorios. “O meu prédio foi demolido e nunca fizeram mais nada. Eu tenho aí uma acta em como voltávamos para a nossa habitação, mas era tudo mentira”, lamenta Jorge.
Os dois vizinhos moravam em casas velhas muito necessitadas de obras, tal como milhares de outras em todo o centro histórico. Entre meados dos anos 1980 e o início dos 1990, a Câmara Municipal de Lisboa criou os primeiros gabinetes técnicos locais, que depois alargou a mais zonas, cujo objectivo era reabilitar os bairros arruinados. A autarquia comprou prédios e negociou com os proprietários de outros. Centenas de famílias foram realojadas em casas municipais, à espera que as obras se fizessem. A grande maioria nunca regressou ao local de origem.
“Eu fui chamado à junta e o presidente disse-me ‘Eh pá, tu tens de sair dali, já viste como aquilo está?’”, conta Domingos Silva. Deixou a sua casa na Calçadinha de Santo Estêvão em 1987. “Esteve vinte e tal anos sem ninguém lá dentro, sem ter obras nenhumas”, relata. Tanto tempo depois já não lhe passa pela cabeça sair da Quinta do Ourives, onde se entretém com um quintal que foi fazendo crescer. Tem pessegueiros, pereiras, laranjeiras, tangerineiras e morangueiros espalhados pelo terreno labiríntico, que percorre entusiasmado, enquanto mostra o elaborado sistema de som que conseguiu instalar e que leva a Rádio Amália a todos os recantos.
Hoje os dias são pacíficos e encarados com boa disposição, mas a vinda para aqui foi dura. Para lá de terem saído de Alfama, tanto Jorge como Domingos tiveram de viver em casas pré-fabricadas, num terreno ali perto, até que os novos lotes estivessem acabados. “Caía lá água e tudo”, diz Jorge. “Eu estive lá dois anos. Um dia um vereador foi lá e disse ‘Isto está impróprio para animais, quanto mais para pessoas’”, lembra Domingos. No dia em que lhe deram a chave da casa nova já não dormiu na pré-fabricada. Foi a correr desmontar a cama e mudou-se logo, ainda nem tinha luz.
Ao contrário da zona em que moram Domingos Silva e Jorge Dias, só concluída a meio dos anos 1990, a parte mais elevada da Quinta do Ourives foi construída ao longo da década de 1970. É num desses prédios que vivem Filomena e Mário Rodrigues, também antigos moradores de Alfama. “A câmara obrigou o senhorio a fazer obras coercivas e eu disse-lhes que queria uma casa. Fomos a reuniões e concordámos que, enquanto eles faziam as obras, nós vínhamos para aqui durante cinco anos. Já lá vão 15”, conta Filomena Rodrigues.
Em 2002, quando o casal deixou a casa da Travessa São João da Praça, o município tinha mudado de estratégia em relação à reabilitação urbana. Esta passou a fazer-se com intervenções de larga escala, muitas vezes obrigando os senhorios a fazer obras. E quando estes se recusavam ou mostravam não ter capacidade, a câmara substituía-se. Foi nesta época que se fez, por exemplo, a famosa reabilitação da Rua da Madalena.
Entre 1990 e 2008, a câmara gastou mais de 450 milhões de euros em reabilitação urbana, a maior parte através dos gabinetes técnicos locais. Ainda assim, no fim da década passada, muitos bairros continuavam a cair aos bocados. E a factura era pesada para os cofres municipais. Dos 77 edifícios que era suposto terem sido intervencionados até 2007 directamente pela câmara, só 33 tinham tido obras. Foram gastos 32 milhões de euros em obras coercivas até 2010, mas a autarquia nunca voltou a ver a cor de grande parte desse dinheiro: àquela data, os proprietários só tinham pago 4,2 milhões.
Pelo meio, as pessoas sentiram-se esquecidas. “Na minha casa, só a sala metia esta casa toda lá dentro. Tinha lá uma mesa para oito pessoas, sofás e um móvel-bar de canto”, conta Mário Rodrigues. A revolta cresce-lhe à medida que fala porque não gosta da Quinta do Ourives, não gosta da casa, já devia estar de volta a Alfama. Um vizinho, que veio do Castelo, também reage com irritação. “Eu não gosto disto, nunca gostei. Se eu pudesse ia-me embora já amanhã”, diz.
A actual vereadora da Habitação diz que há ainda 187 famílias espalhadas pela cidade que antes viviam nas freguesias do centro. “A orientação que eu dei aos serviços foi: negociar família a família, quem quiser regressar ao centro histórico pode regressar; quem quiser ficar na localização em que está, fica”, explica Paula Marques. Houve 21 famílias que mostraram interesse em voltar. “Na Quinta do Ourives são cinco. Temos outras pessoas em Marvila, Campo de Ourique, Olivais”, precisa a vereadora. Ninguém regressará à casa de origem, antes a outras habitações que a câmara está agora a reabilitar.
“Eu nasci na Mouraria, mas estou há 50 anos em Alfama. Já dá para dizer que sou de Alfama”, afirma Filomena Rodrigues, indiferente ao facto de viver na freguesia do Beato há década e meia. “Isto não me diz nada. Queria fugir daqui, não é bairro que me diga alguma coisa.”
“O meu pai morreu com 90 anos. Todos os dias ia com a bengalita até Alfama para estar com os amigos e voltava só à noite. Para ele, aquilo tinha de ser. O vício de ir lá era muito grande. E continua a ser”, conta Jorge Dias. “Não nos faltava lá nada”, comenta Domingos Silva – e as saudades param-lhe os olhos por uns instantes.