2.8.18

O Boko Haram transformou-as em “bombas humanas”, mas elas sobreviveram

Ana Marques Maia, in Público on-line

Membros do grupo radical islâmico Boko Haram fizeram delas “bombas humanas”, mas estas crianças e adolescentes sobreviveram. Em trabalho para o The New York Times, o australiano Adam Ferguson encontrou-as na Nigéria e fez os seus retratos.

Foi-lhes prometido “um lugar no céu”, mas com uma condição: deveriam fazer-se explodir no interior de edifícios governamentais, mercados, mesquitas, hospitais, postos militares, campos de refugiados, universidades. Aisha, Fatima, Maryam, Fiddausi, Maimuma S., Maimuma B., Falmata, Balaraba e Fati são apenas nove das 18 meninas sobreviventes que Adam Ferguson fotografou para o The New York Times. O autor da série fotográfica The Bombs They Carried conversou com o P3, por Skype, e aproveitou o momento para narrar a experiência no terreno e partilhar algumas das histórias das meninas feitas “bombas humanas” que quase perderam a vida. São histórias de sobrevivência.

Aisha tem hoje 15 anos. Após a invasão da sua aldeia pelo grupo extremista islâmico, o pai decidiu abalar com os dois filhos, Aisha e o irmão. Durante a fuga, foram interceptados por militantes do Boko Haram. O pai foi morto no local. O irmão, que tinha apenas dez anos, foi imediatamente armadilhado com uma bomba e levado, de mota, por dois membros do grupo. Aisha foi transportada para um dos esconderijos da organização, onde viria a permanecer sob sequestro. Os dois soldados que tinham carregado o seu irmão regressaram pouco tempo depois, sozinhos e rejubilantes. O menino tinha-se feito explodir junto a um quartel militar, percebeu. Disseram a Aisha que não chorasse. “Ele matou pessoas más”, argumentaram.

Pouco tardou até que chegasse a vez de Aisha. Ataram ao corpo da adolescente um cinto com explosivos. Deveria dirigir-se ao mesmo quartel onde morrera o irmão e fazer-se explodir, tal como ele. Foi deixada nas imediações do alvo, sozinha. Pensou que o melhor seria afastar-se e premir o gatilho num local isolado, onde não pudesse magoar ninguém. Mas pensou melhor e optou por pedir ajuda. Abordou “delicadamente” os soldados que estariam na mira do seu ataque. “Disse-lhes que o meu irmão tinha explodido no mesmo local e matado alguns dos seus colegas”, contou ao The New York Times. “O meu irmão não tinha maturidade para perceber que não tinha de fazer o que lhe pediam. Era apenas uma criança.” Os soldados confiaram em Aisha e removeram do seu corpo o cinto com explosivos, evitando o pior.

Aisha, 14 anos, foi "bomba humana", mas sobreviveu. Adam Ferguson
Após várias semanas em cativeiro, dez meninas e adolescentes armadilhadas foram libertadas por membros do Boko Haram no centro de Maiduguri, a capital do estado de Borno, a região onde se concentra, até à data, a maioria dos ataques com recurso a bombistas suicidas de toda a Nigéria. As meninas far-se-iam explodir separadamente, junto a diferentes alvos. Foi o último dia de vida de muitas delas, mas não para Fati. Então com 14 anos, a menina optou por dirigir-se a uma esquadra de polícia e pedir auxílio. Os agentes assustaram-se e abandonaram apressadamente o edifício, deixando-a sozinha. Só minutos mais tarde regressaram ao local e pediram à adolescente que se dirigisse a um descampado das proximidades e lá deixasse o engenho explosivo que trazia no saco.

Os pedidos de ajuda representam um risco para as crianças e jovens armadilhados. Há quem, perante a ameaça de explosão, prefira garantir que o bombista não prime o botão e opte por alvejá-lo. Um relatório de Abril de 2017, elaborado pela UNICEF, sugere que um em cada cinco bombistas suicidas do Boko Haram são crianças — e que dois terços dessas crianças são do sexo feminino. A população nigeriana, consciente desse facto, teme a presença de crianças, sobretudo de meninas, em locais públicos de grande afluência. Nos últimos três meses de 2016, garantem as Nações Unidas, 13 crianças — de idades compreendidas entre os 11 e os 17 anos — foram mortas após terem sido confundidas com bombistas suicidas.

Governo nigeriano negoceia cessar-fogo com Boko Haram
Fatima, que tinha 17 anos no momento em que esteve prestes a fazer-se explodir, gritou perante os soldados que deveria sacrificar: “Estou inocente! Não estou com eles! Eles forçaram-me!” Foi desarmadilhada. Maryam pediu ajuda a um idoso que descansava à sombra de uma árvore. O pedido de socorro foi feito a vários metros de distância, não fosse tratar-se de uma rasteira, e o homem conseguiu libertá-la do cinto-bomba. Maimuma, hoje com 15 anos, tem consciência de que muitas pessoas da sua comunidade suspeitam que colabore com o grupo terrorista. Mas também sabe que muitas compreendem a sua situação e a felicitam por ter tido coragem de desobedecer aos raptores. “Há quem me veja como parte do Boko Haram, mas há também quem me considere uma heroína”, disse ao jornal norte-americano.

“É uma história extraordinária”
As nove meninas cujos retratos Adam Ferguson partilhou com o P3 têm uma história em comum. “Todas foram raptadas, todas perderam a sua família às mãos do Boko Haram, todas foram incumbidas de missões suicidas, todas pediram ajuda e sobreviveram”, enumerou o fotógrafo.

“Em apenas dois dias fiz os retratos de 18 meninas que sobreviveram”, contou o fotógrafo australiano ao P3. Em trabalho para o The New York Times, Adam voou até à Nigéria com o intuito de retratar algumas das 276 estudantes que foram raptadas pelo Boko Haram em Abril de 2014. O governo e o exército nigerianos, porém, não permitiram o contacto de Adam com as vítimas, motivo pelo qual o fotógrafo se viu forçado a investigar uma história alternativa. Encontrou duas jovens mulheres que tinham sido vítimas de violação por parte de membros do exército nigeriano e decidiu fotografá-las. Mas, durante as sessões, percebeu que ambas tinham sido “bombas humanas”. “Era uma história extraordinária, que nunca tinha sido contada”, comentou. Convenceu o editor do jornal norte-americano a desistir da história anterior e a apostar em The Bombs They Carried. Assim nasceu o projecto.

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Ferguson fotografou-as de modo a ocultar as suas identidades, com recurso a iluminação de estúdio. “Não as queria fotografar de uma forma estereotipada. Todos associamos África a pobreza e a histórias dramáticas. Não achei que fotografá-las no seu ambiente quotidiano fosse acrescentar algo à história que pretendia contar. Quis, sim, retratá-las de forma a enfatizar a sua coragem e dignidade.” Todos os retratos foram cuidadosamente pensados. “Não alterei os locais, apenas os iluminei, mas fui muito cuidadoso. Posicionei as meninas em determinados ângulos em relação à luz, preocupei-me com as cores dos seus lenços e com o contraste que tinham relativamente à cor das paredes. Pretendia obter um efeito de mistério através do uso da luz artificial. Acho que as pessoas responderam bem às fotografias por esse motivo, por deixarem tanto em aberto.”

Boko Haram: porquê mulheres e crianças?
O perfil preferencial para este tipo de missão terrorista, por parte do Boko Haram, é muito particular, especialmente em comparação com outros grupos terroristas. De facto, o Boko Haram usou mais mulheres como bombistas suicidas do que qualquer outro grupo terrorista: 244 mulheres entre Abril de 2011 e Junho de 2017.

O recurso a mulheres pode ser explicado pelas longas vestes e lenços que compõem o traje feminino muçulmano e facilitam a ocultação de engenhos explosivos. A ausência de mulheres no sistema hierárquico do grupo terrorista torna-as menos necessárias e, por isso, dispensáveis. Além disso, não estão, em nenhum momento, sujeitas a buscas corporais por parte das forças de segurança nigerianas, compostas exclusivamente por homens (um homem não está autorizado a revistar uma mulher, seja qual for a circunstância). De sublinhar também que muitas das missões não são aceites voluntariamente pelas mulheres. Muitas são coagidas a levá-las a cabo.
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O recurso a crianças nestas missões tem diferentes explicações. A maioria das crianças que assumiu o papel de “bomba humana” foi sequestrada pelo grupo já tendo em vista a função a que se destinava, ainda que, residualmente, algumas tenham sido oferecidas ao grupo pelos pais, como prova de lealdade. As crianças são fisicamente mais pequenas — o que facilita a penetração em locais onde a segurança é mais apertada, através de entradas alternativas — e cognitivamente imaturas, o que facilita o processo de coacção ou manipulação para a execução da tarefa. Têm menos tendência a divulgar a missão a terceiros, por medo de serem repreendidas ou castigadas, e a aparência inocente torna-as, em teoria, menos suspeitas.

O primeiro ataque com recurso a bombistas suicidas levado a cabo pelo Boko Haram aconteceu a 8 de Abril de 2011. Entre essa data e o final de Junho de 2017, segundo o relatório Combating Terrorism Center at West Point, desenvolvido pela Academia Militar dos Estados Unidos da América e publicado em Agosto de 2017, foram tentados 434 ataques com recurso a "bombas humanas"; 85 não foram bem-sucedidos, o que representa uma taxa de insucesso de 19,6%. Os ataques bem-sucedidos mataram, durante esse período, pelo menos 2632 pessoas.