27.8.18

Reportagem em Silicon Valley: empregados mas sem-abrigo

Maria João Bourbon, in Expresso

Dormem nas ruas, parques de estacionamento ou em acampamentos criados por si. Trabalham e vivem em Silicon Valley, mas nem assim ganham o suficiente para pagar uma renda ao fim do mês. São os working homeless: trabalhadores invisíveis, sem-abrigo envergonhados, que vivem na sombra da inovação tecnológica e que as estatísticas oficiais não conseguem abarcar. São os deserdados do progresso, da inovação e da especulação imobiliária

As notas seguem umas atrás das outras, encadeadas numa melodia agradável. Enquanto ali está, debruçado sobre as teclas e os pedais que dão música à sua vontade, quase esquece que a vida que agora leva está longe de seguir uma partitura harmoniosa. Deixa voar para longe as memórias da mudança de Estado, das rendas por pagar, das noites mal dormidas a bordo do autocarro 22.

Mas quando os dedos tocam a última nota regressa à sala da igreja que lhe cede o piano e todas essas lembranças colam-se-lhe de novo à pele. Recorda o desemprego forçado, quando ao fim de 12 anos deixou de ser supervisor de retalho alimentar na universidade do Norte do Arizona e o colega de casa lhe pediu para sair por não conseguir pagar a renda. Recorda a amiga que lhe estendeu a mão e lhe pagou o voo para vir até São José viver perto dela. Recorda o choque frontal com um custo de vida bem mais elevado do que aquilo que poderia suportar — mesmo estando empregado, primeiro na cantina da Synapsis e agora na Intuit, tecnológica onde recebe mais que o ordenado mínimo mas nem assim consegue pagar uma renda. E traz ainda à memória, e à conversa, as viagens no autocarro que durante meses lhe serviu de casa.

Cada vez que cai a noite, o autocarro 22, que liga Palo Alto à zona este de São José, transforma-se num abrigo não-oficial para quem não tem onde dormir. Funciona 24h. Quando, carregado de pessoas sem-abrigo, vai percorrendo o caminho habitual — passando perto de grandes campus como o da Google, da Microsoft ou da Apple — torna-se a fotografia perfeita dos contrastes e desigualdades daquela que tem sido apresentada como a meca do crescimento económico, tecnologia e inovação.

Até há um mês e meio, Devin Shurte encontrava aí um lugar onde dormir. Pagava o bilhete, sentava-se num dos lugares livres e tentava adormecer. Procurava abstrair-se do barulho, dos cheiros, dos solavancos, do ar pesado... E quando quase duas horas depois chegava ao fim da linha, saía e esperava meia hora ao relento. Só então aparecia novo autocarro, no qual voltava a entrar e a dormir — repetia o processo para a frente e para trás até chegar a hora de ir trabalhar. “Era esgotante”, recorda.