Joana Gonçalves, in RR
Cristina Borges viu-se obrigada a abandonar o emprego para assegurar cuidado permanente aos pais, com quem foi viver. Durante seis meses, assumiu um trabalho sem limite de horário ou remuneração. Não se sentia preparada. Em dia de debate da Lei de Bases da Saúde, no Parlamento, Cristina deixa um apelo a todos os partidos.
Ser cuidador informal é aceitar "um segundo turno que não tem horário"
Aos 53 anos, João Maria Cipriano Quitério, até então gerente bancário, decidiu dizer adeus à gravata e ao relógio. Libertou-se do horário fixo das 9h00 às 17h00 e abraçou a reforma.
Iniciou, então, um período de férias, na companhia de Maria da Graça Faria Franco, com quem é casado há mais de cinco décadas. Já não consegue precisar a data, mas recorda-se bem dos sete anos de namoro que precederam o pedido de casamento.
Adorava conduzir, apesar de não fazer viagens longas, e raramente “visitava a província”. O desporto era o seu único passatempo. Praticou voleibol, natação e ginástica, mas “nunca nada a sério”.
Pai de Cristina Borges, educadora de infância em Carcavelos, João Maria chegou a assumir o cuidado dos netos, Diogo e Catarina, “quase gémeos, com apenas 13 meses de diferença”.
“O meu pai ia buscar os meus filhos à escola, levava-os à natação, era como um segundo pai para eles. Era o meu porto de abrigo”, conta Cristina à Renascença. Mas tudo mudou em 2012.
“O mundo virou-se ao contrário”
Há pouco mais de seis anos, João Maria foi operado à próstata e a uma hérnia inguinal. A operação, conta a família "correu mal”.
Esteve deitado durante 21 dias. Quando finalmente se tentou levantar, já não conseguiu. Depois da intervenção, João Maria esperava ver melhorada a sua qualidade de vida, mas em vez disso enfrentou uma lesão dos nervos, com perda de mobilidade dos membros inferiores.
Durante várias semanas a família viveu um pesadelo. “Achámos que o meu pai tinha uma doença do neurónio motor, ficámos muito abalados”, recorda a filha.
As suspeitas acabaram por não se verificar; o pai de Cristina sofria afinal de uma neuropatia diabética, uma das mais prevalentes complicações tardias da diabetes.
Desde então, João Maria nunca mais voltou a andar. A mulher, Maria da Graça, também com mobilidade reduzida, não foi capaz de assegurar o cuidado do marido. Cristina passou, por isso, a assumir o papel de cuidadora de ambos. “O mundo virou-se ao contrário. Senti-me a mãe dos meus próprios pais”, desabafa.
Um turno sem horário
Com a mãe e o pai dependentes, Cristina passou a assumir um segundo turno de trabalho, “sem horário”.
Às 8h30 entrava ao serviço, no Jardim Escola João de Deus, em Lisboa. Mas o dia começava bem antes, horas antes, quando tinha de assegurar a alimentação e a higiene pessoal dos pais. Por volta das 13h00 regressava a casa para lhes preparar o almoço num ápice antes de voltar para a escola. Às 17h00 abandonava o emprego, mas nem por isso deixava de trabalhar.
Durante seis meses viveu em casa dos pais. Sem experiência em geriatria, Cristina sentiu-se “encurralada”. “Eu não sabia fazer uma transferência, não sabia mudar uma fralda, não sabia fazer montes de coisas necessárias e importantes para um doente com estas patologias."
Começou por adaptar a casa à condição do pai. Para poder transportá-lo na cadeira de rodas teve de reduzir o número de móveis do quarto e da sala. Depois vieram as obras na casa de banho. A banheira deu lugar a um polibã e seguiu-se a compra de uma cadeira para o duche. Às fraldas, medicamentos e fisioterapia, acresciam os cremes, babetes e consultas.
Fora a cadeira de rodas e o andarilho, Cristina não conseguiu qualquer apoio. O subsídio por assistência de 3.ª pessoa, no valor de 108,68€, era a única opção, mas nem dele João Maria pôde beneficiar.
Este apoio social é atribuído a pessoas em “situação de dependência, que necessitem do acompanhamento permanente de 3.ª pessoa” e que apresentem um rendimento mensal igual ou inferior a 420,64 €, se for casado(a), ou a 210,35 € se for solteiro(a), divorciado(a) ou viúvo(a).
A situação começava ficar insustentável. “As pessoas não têm bem a noção de quanto se gasta com uma pessoa com mobilidade reduzida. Só uma cadeira para o banho de 150€ acaba com o 'plafond'. Garantir uma boa qualidade de vida a uma pessoa nestas condições implica um enorme investimento.”
Cristina viu-se obrigada a abandonar o emprego a tempo inteiro. “O que eu aprendi com isto tudo é que tinha de me cuidar muito bem, porque se eu fosse internada não havia ninguém para cuidar deles, para gerir esta situação. Porque não há ninguém que consiga ficar 24 sobre 24 horas com um casal com mobilidade reduzida e com a doença do meu pai, não existe”.
Em 2015 a família arranjou uma solução: transformar a casa de João Maria e Maria da Graça num alojamento local. Foi a alternativa que arranjaram à venda do imóvel.
Cristina gere agora este pequeno negócio, que lhe assegura rendimento suficiente para garantir a estadia dos pais na Amera, uma residência sénior, localizada no Seminário da Torre d’Aguilha, em S. Domingos de Rana, Carcavelos.
“Lá ele sente-se muito mais acompanhado, porque tem enfermeiros e tem médicos a tempo inteiro”, assegura.
As despesas são muitas, mas Cristina recuperou o fôlego e os pais visitam a casa várias vezes por mês.
O apelo de uma cuidadora informal. "Isto é uma coisa apartidária"
Uma questão apartidária
A nova Lei de Bases da Saúde, aprovada em Conselho de Ministros no passado mês de dezembro, deixou cair o estatuto do cuidador informal.
Em Portugal, segundo a EuroCarers, haverá 827 mil cuidadores informais, perto de 207 mil a tempo inteiro e os restantes a tempo parcial. Um trabalho não remunerado que valerá, no nosso país, quase 333 milhões de euros por mês, cerca de 4 mil milhões de euros por ano, de acordo com um estudo encomendado pelo Governo e revelado em 2018.
Em breve, o número de pessoas dependentes de um cuidador vai ultrapassar a oferta. Assim conclui um estudo da Comissão Europeia, também publicado no ano passado.
O mesmo estudo revela ainda que cerca de 80% dos cuidados em toda a Europa são assegurados por 125 milhões de pessoas não remuneradas nem treinadas para tal.
Ansiedade, depressão, exaustão, isolamento e risco agravado de pobreza são, segundo o mesmo documento, as principais características que retratam um cuidador informal, na sua maioria mulheres com mais de 45 anos, à semelhança de Cristina.
Mas qual é a proposta da Comissão Europeia para fazer face a este cenário alarmante?
Apoio financeiro, benefícios fiscais, horário flexível e contagem do tempo de prestação de cuidadores informais, em casa, para a reforma. Uma resposta simples, mas que parece ser um desafio permanente.
Esta quarta-feira, dia do debate da Lei de Bases no Parlamento, Cristina Borges quer deixar uma mensagem a todos os deputados - um apelo que garante não ser só dela.
“Eles já nos deram muito quando eram novos. Agora chegou a nossa vez. Eles merecem ter qualidade de vida. Isto é uma coisa apartidária, não tem partido.”