Cristiana Faria Moreira, in Público on-line
Há quase três anos, Nazaré perdeu a tia que era a titular do contrato de arrendamento. Como não é uma parente directa, e apesar de ter vivido com a tia quase 40 anos, o contrato cessou e Nazaré terá agora de deixar aquela casa, depois de dois anos de disputa judicial que deu razão à senhoria. A lei mudou, mas há franjas da população, sobretudo a mais idosa, que ainda continuam desprotegidas.
Mal se entra na casa saltam logo à vista os caixotes de cartão e o plástico-bolha. Depressa Nazaré se apressa a explicar que é para ir "empacotando umas coisinhas". Entre molduras com fotografias do filho, muitas estantes cheias de quinquilharia, Maria Nazaré Jorge, 82 anos, terá de encaixotar, nos próximos dias, 39 anos de vida num apartamento da rua Rodrigues Sampaio, junto ao Marquês de Pombal.
Na semana passada, Nazaré recebeu a visita de um agente de execução em casa que a notificou que teria 20 dias para deixar aquela casa, depois de dois anos de disputas nos tribunais que acabaram por decidir em favor da senhoria.
Não há mais nada a fazer. Nazaré vai ter mesmo de deixar aquela casa apesar de estar, desde Julho, em vigor uma moratória, para impedir o despejo de arrendatários com mais de 65 anos ou com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, que vivam na mesma casa há mais de 15 anos. Nestes casos, à luz desta lei temporária (que vigorará até 31 de Março, altura em que já deverá estar em vigor a lei definitiva), a oposição à renovação e de denúncia pelos senhorios de contratos de arrendamento suspende temporariamente.
Só que esta moratória exclui Nazaré, uma vez que o contrato de arrendamento da casa nunca esteve no nome dela. Esteve sempre em nome da tia, até ao dia em que morreu, há quase três anos. E, como tal, e uma vez que Nazaré não era sua descendente directa, não foi possível a transmissão do contrato.
Maria Manuel Rola, deputada do Bloco de Esquerda, diz que lhe têm comunicado vários casos como o de Nazaré, que não estão protegidos pela lei. “Existem duas situações principais: ou porque não vivem no mesmo local há mais de 15 anos, ou porque o titular do contrato era um familiar próximo mas não directo”, nota a bloquista, explicando que a transmissão dos contratos de arrendamento em caso de morte abrange apenas familiares directos.
“O Bloco de Esquerda tinha proposto que abrangesse as pessoas com 65 anos ou mais e 60% de incapacidade ou mais que residissem com o arrendatário há mais de um ano. Inicialmente o Partido Socialista votou favoravelmente, mas recuou após a interrupção das votações, propondo esta redacção que é melhor que o que se encontra na lei como estava, mas que tem uma abrangência reduzida”, diz a deputada.
No artigo relativo a transmissão por morte adicionou-se uma alínea que prevê que haja transmissão do contrato para “filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC [rendimento anual bruto corrigido] do agregado seja inferior a cinco RMNA [retribuição mínima nacional anual]” — ou seja, que tenha um rendimento baixo.
“Esta é uma situação que poderia ter sido claramente precavida com uma das propostas do Bloco que abrangia estas situações sem a necessidade de parentesco directo. O Partido Socialista optou por manter a referência a filho ou enteado apenas”, repara a bloquista.
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“As leis não resolvem os problemas todos. As pessoas também têm de acautelar estas situações”, diz, por sua vez, Helena Roseta, deputada independente do PS, que foi coordenadora do grupo de trabalho parlamentar sobre habitação e que acabou por bater com a porta em Outubro, depois de os socialistas terem pedido o adiamento da votação de um conjunto de propostas relativas ao arrendamento. Roseta, que é também presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, mostrou-se disponível para conhecer o caso, no sentido de iniciar um processo na câmara para que Nazaré consiga uma casa municipal.
"Uma casinha em condições"
Nazaré é da Beira Alta, de Cabanas de Viriato. Tinha quatro meses quando a mãe morreu. O pai e os tios tinham ido trabalhar para a agricultura, no Ribatejo. E Nazaré acabou por ir, ainda criança, para junto deles. Aos 24 anos, acabou por ir para Lisboa. E acabou por se fazer porteira em Benfica. “Quando ele nasceu eu vivia num quarto”, recorda, mostrando orgulhosamente uma fotografia do filho Carlos, hoje com 51 anos, tirada quando andava na tropa.
Como a outra casa era pequena, a tia acabou por acolhê-los naquela junto ao Marquês de Pombal. Nazaré e o marido, que morreu há sete meses, criaram ali o único filho. E ali ficaram por quase 40 anos.
Nazaré diz que sempre viveram em economia comum. “Pagávamos todos. Ora pagava eu ora pagava ela”.
Hoje a casa tem as marcas todas da passagem do tempo e da pouca manutenção. As paredes estão rachadas, com a tinta das paredes a descascar, marcas de humidade em todo o lado.
Quando a tia morreu, aos 94 anos, tentou que o contrato de arrendamento passasse para o seu nome, mas a senhoria começou uma disputa nos tribunais. Que resultou num processo judicial e num recurso que lhe deram razão. Ainda assim, Nazaré diz que continuou a pagar a renda. São 202 euros da sua reforma que não chega aos 300. E de onde tem de sair dinheiro para pagar a conta da farmácia, da luz, da água, do gás. A junta vai ajudando com bens de mercearia, uma padaria vai-lhe dando pão.
O filho, Carlos, que estaria disponível para receber a mãe, não fosse o apartamento pequeno que tem em Algés e que não tem condições para a acolher os dois. Com os preços de arredamento a níveis incomportáveis, não tem sido fácil arranjar uma alternativa. “Eu só queria ficar até encontrar uma casinha em condições”, pede Nazaré.
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Estas questões têm também implicação com os cuidadores informais, alerta Maria Manuel Rola, uma vez que se encontram também desprotegidos em situações em que não são os arrendatários e poderão não ter relação de parentesco directo com a pessoa que estão a cuidar. “Muitas vezes os cuidadores destas pessoas deixam a casa onde estavam a viver para irem viver com uma pessoa que vão cuidar, que muitas vezes podem ou não ser familiares directos. E muitas vezes vão para a casa dessa pessoa, não sabem quanto tempo ficarão ali e depois, quando a pessoa morre, vêem-se com uma mão à frente e outra atrás em matéria de habitação”, explica a deputada.
E este é um problema cada vez mais presente, sublinha a bloquista, já que a população idosa tem crescido. Maria Manuel Rola espera que quando for criado o “estatuto do cuidador informal” — que está a ser trabalhado no Parlamento — se preveja essa questão da habitação. “Acaba por ser algo injusto. As pessoas acabam também por ser arrendatárias”, diz a bloquista.