Laurinda Alves, in o Observador
Abandonaram outros projetos, apaixonaram-se e ajudaram perto de 30 mil sem-abrigo na Índia. Tomás e Catarina contam a Laurinda Alves como a perspectiva muda junto de quem dorme "de cabeça no passeio".
Conheceram-se por causa de um post no Facebook “abençoado” pelo Dalai Lama e rapidamente perceberam que tinham um mundo em comum: a urgência de sair da vida padronizada, uma sede de fazer a diferença na vida dos outros. Criaram a Kolkata Monsoon Relief, associação sem fins lucrativos, que tem uma equipa de voluntários e mecenas, graças aos quais puderam ajudar cerca de 30 mil pessoas que vivem “com a cabeça nos passeios” de Calcutá, vítimas das monções na Índia. Usam um sitar, instrumento indiano, para angariar fundos e distribuem kits de sobrevivência. Mapearam todos os sem-abrigo e tornaram os dados públicos, para que outras ONG humanitárias os possam usar .
Catarina Aires deixou para trás o sonho de se tornar bailarina quando este se transformou em fardo. Tomás Magalhães partiu à procura de si próprio depois do mestrado em Nanotecnologia. São os convidados “Imperdíveis” de Laurinda Alves, o programa da Rádio Observador, aos domingos, às 11h.
[Tomás Magalhães e Catarina Aires já ajudaram 30 mil indianos com uma cítara:]
Catarina e Tomás, peço a cada um que se apresente.
Catarina Aires (C): O meu nome é Catarina Aires e sou do Porto. Conheci o Tomás há dois anos e foi há dois anos que também me apaixonei pelo projeto que ele criou sozinho. E há quase três anos que andamos numa aventura: ir para a Índia uma vez por ano. Neste momento, também estou a terminar a minha licenciatura em jornalismo. Sou professora de dança, de ballet clássico, contemporâneo e também gosto muito de cantar. E é isto.
Então já vamos falar sobre esses talentos. Tomás, pedia também que te apresentasses.
Tomás Magalhães (T): Sou o Tomás Magalhães, estudei Física e depois fiz um mestrado em Nanotecnologia. Fui empreendedor for profit durante uns anos, montei umas empresas e correram bem. Depois, a certa altura da minha vida, fui viajar e um bocado à procura daquilo que queria fazer a seguir. E, quase sem querer, montei este projeto que ajuda os sem-abrigo de Calcutá.
Como é que se chama o projeto?
T: Chama-se “Kolkata Monsoon Relief”.
Ou seja, vocês levam alguma ajuda, algum apoio, algum alívio aos pobres, entre os mais pobres de Calcutá.
T: Exato.
E o que é que fazem?
C: O primeiro ano em que fui foi no ano passado e criámos uns sacos, que entregamos durante a noite.
Uma espécie de um kit.
C: Sim, uma espécie de um kit. Dentro do saco temos uma rede mosquiteira, para proteger de picadas de mosquitos…
Isto tudo no tempo das monções, não é?
C: Antes de as monções acontecerem. Um telhado de plástico para os proteger quando a chuva vier.
Porque estamos a falar de pessoas sem-abrigo, que vivem na rua.
C: Famílias e muita, muita gente que vive na rua, com a cabeça no passeio sem condições nenhumas. Mais um kit de primeiros socorros e um livro para crianças.
Uma espécie de alfabeto e de um manual para princípios básicos de higiene e de saúde.
T: Sim, cada artigo dentro do kit tem uma função muito própria. A lona, que foi a primeira ideia, é para proteger estas pessoas da chuva; a rede mosquiteira é para ajudar a proteger da malária e do dengue e também dá algum conforto; o kit de primeiros socorros evita que aconteçam amputações absolutamente desnecessárias. Quem já passou algum tempo na Índia vê muita gente amputada e, às vezes, aquilo é uma picada de mosquito…
Que infetou…
T: Ou um tropeço [que causou uma ferida] que eles foram deixando infetar e só têm atenção médica quando já só dá para amputar. O kit de primeiros socorros é para tentar evitar essas situações. E depois, finalmente, o livro é para as crianças mais novas começarem a ser expostas ao alfabeto inglês, ao alfabeto bengali, tabuada e alguns bons costumes de higiene.
Há bocadinho a Catarina disse “as pessoas dormem com a cabeça no passeio”, ou seja, não há uma almofada, não há teto, não há casa, não há cama. Pais, avós, netos, filhos, a família inteira dorme com a cabeça no passeio. Foi essa visão da miséria extrema, da pobreza mais pobre e mais despojada que vos fez agir?
C: Sim, quando o Tomás foi sozinho, quando o conheci, ele tentou explicar-me o que viu e eu, se calhar, não percebia bem o porquê de ele ter iniciado isto sozinho. Porque, de facto, Calcutá é assustador para quem é estrangeiro e para quem não conhece o que é viver ali. Só quando eu fui é que consegui perceber o que o Tomás estava a dizer. E, de facto, dói, dói olhar.
Para tanta miséria, tanto despojamento. Ou seja, as pessoas não são só despojadas e despidas de bens mas também de dignidade e de tudo o que é próprio do ser humano.
C: Aceitam a sua condição. Mas nós, que conhecemos e sabemos que há outras formas de viver, com melhores condições, acho que aceitamos pior do que eles.
Tomás, o clique foi este, não é? É ver a miséria, perceber o que se pode fazer e agir. Podemos voltar aí e perceber como é que tudo aconteceu?
T: Decidi viajar um ano e sabia que metade desse ano queria passar em Calcutá, na Índia. Comecei pelo norte, pelos Himalaias, e acabei por visitar quase todos os cantos da Índia nesses seis meses. Entretanto, fui fazendo voluntariado. Depois disso fui viajar para outros sítios, nomeadamente a Austrália e Malásia, e sabia que quando voltasse para a Índia mais um mês seria para aprender sitar, porque tinha decidido nessa altura começar a levar mais a sério [o estudo do instrumento indiano].
Estava encantado com o sitar.
T: Exatamente, era isso. Já era encantado com o sitar há muitos anos, sem nunca ter tocado.
Porquê?
T: Pelo som. E acho que é um instrumento que, sozinho, nos consegue comunicar muitas camadas de coisas de uma forma muito profunda. Sei lá, um violino a tocar sozinho também é muito bonito, também nos fala de muito, não é? E também adoro. Aliás, quando era mais novo tocava violino. Mas o sitar era talvez por causa do reverb.
Mas, então, fechando o parênteses em relação ao sitar…
T: Então, voltei para Calcutá. Tinha feito um amigo na noite de Natal, da primeira vez que tinha estado em Calcutá, e reencontrei-o lá. Um dia estava a andar com ele ao meu lado e passei por uma família. Estava a chover muito. Eu já os conhecia de passar lá e eles chamaram-me e pediram-me uma lona para se protegerem da chuva. Mostraram-me que dentro do pequeno barraco deles estava a cair muita água. Tinham três filhos pequeninos. Eu disse: “Claro que sim, quanto é que isso custa?” Eram 120 rupias, se não me engano, que é para aí um euro e meio. Disseram-me onde se comprava, fui ao mercado, comprei essa primeira lona, voltei e entreguei.
E a primeira reação à primeira entrega, para mim, foi absolutamente inesquecível. Porque eu entreguei-lhes a lona e a mãe dessa família, que se chama Pooja, ficou contente, mas percebi que havia ali qualquer coisa que não estava bem. Ela não estava assim tão feliz. Então aproximei-me e perguntei: “O que é que se passa?” E ela: “Ah, não queria dizer porque não queria parecer mal agradecida, mas os ratos gostam muito de comer esta lona específica, por isso não é a melhor”. E eu [pensei]: “Caramba, a realidade destas pessoas”.
O problema dela é o rato mastigar esta lona que parece mais palha. Então disse: “Olha, Pooja, vem comigo, vamos ao mercado e tu vais-me dizer qual é a melhor lona de todas”. E assim, desde o segundo dia, comecei a envolver os próprios sem-abrigo na resolução dos seus problemas. Que é muitíssimo importante, porque não falta aí gente com ótimas intenções, mas a falta de contacto…
"Ajudei a primeira [família] e depois pensei: 'Vou ajudar as vinte desta rua com o meu dinheiro. Vou filmar e pôr no Facebook'. (...) Nesse primeiro ano angariámos mais ou menos oito mil euros e conseguimos ajudar duas mil famílias, que foi uma surpresa enorme para mim."
No fundo, dão aquilo que acham que o outro precisa, mas não necessariamente aquilo que os outros realmente precisam.
T: Este kit que fizemos foi com eles. A única coisa que não foi um sem-abrigo a sugerir foi o livro, e acho que isso é porque eles não têm sequer noção da importância da educação. Como a educação pode levar tão longe.
O que é que aconteceu depois? Voltaste a Portugal, ao Porto, tanto quanto julgo saber, e ficaste sempre a pensar “vou voltar e vou criar qualquer coisa”.
T: Não, não. Foi nessa primeira vez, em que eu ajudei uma família. Aliás, ajudei a primeira e depois pensei: “Vou ajudar as vinte desta rua com o meu dinheiro”. Nessa altura só entregava o livro, a rede mosquiteira e a lona. [Pensei:] “Vou filmar e pôr no Facebook”, porque apercebi-me que com quatro euros — hoje em dia cinco, por causa do kit de primeiros socorros — podia ajudar uma família destas. Então fiz um vídeo, pus no meu Facebook e não sei se posso dizer que ficou viral, mas teve pelo menos atenção suficiente para…
Para imensas pessoas quererem ajudar e quererem contribuir.
T: Exato, nesse primeiro ano angariámos mais ou menos oito mil euros e conseguimos ajudar duas mil famílias, que foi uma surpresa enorme para mim. Aliás, no fim desse vídeo eu escrevo “let’s help hundreds of families”, “vamos ajudar centenas de famílias”, e acabou por ser milhares.
Criei então uma página, dei este nome e as coisas muito naturalmente foram crescendo. Acho que as coisas mais bonitas na vida são essas, as que acontecem naturalmente.
Tomás e Catarina são dois jovens, apaixonados por si, um pelo outro, mas sobretudo apaixonados pela vida e pelos outros. Quem vos conhece diz que cada um de vocês sente que os outros estão sempre primeiro. E que tudo o que vocês podem fazer para ajudar, fazem. Catarina, o que é que te apaixonou no Tomás?
C: Essa pergunta… Várias coisas, por acaso. No nosso primeiro encontro, eu lembro-me de me apaixonar pelos olhos dele, este azul…
Atlântico…
C: Atlântico, que transmite muita paz. Nós conseguimos ver muito do que é outra pessoa lá dentro pelo olhar. E no Tomás, não sei, senti familiaridade, senti-me um bocado em casa, logo no início, e entre conversas e natas e um sumo qualquer que pedimos naquela tarde, fomo-nos apercebendo que tínhamos muito em comum. O Tomás também tem um lado muito artístico, e eu também gosto muito desse lado artístico…
Entretanto o Tomás já deu a mão à Catarina [risos]. E eu aproveito a deixa para perguntar ao Tomás: o que é que o fez apaixonar-se pela Catarina?
T: Grande pergunta. Acho que tem tanto, podia escrever um livro sobre isso. Mas da forma mais curta possível, ela é muito genuína e tem muito, muito, muito amor para dar. É incansável o amor dela.
E tem um sorriso contagiante e um olhar que diz tudo, que brilha. Portanto, tudo o que fazem é “with shinning eyes”.
T: É incrível, ela conhece pessoas e passado três minutos já estão a chorar no ombro dela, quase. Ela consegue criar uma ligação com as pessoas que eu nunca vi nada assim.
"As pessoas falam muito sem saber. (...) Nunca fui assediada, nunca nos tentaram assaltar. (...) Mas aproveito sempre, nas relações novas que vou fazendo com mulheres, para perceber o quão oprimidas elas se sentem e tentar explicar-lhes que é importante que elas lutem pela sua liberdade e que há muito mais do que o que elas, se calhar, conhecem."
No vosso projeto só há rapazes, só há homens, a Catarina é única rapariga, é a única mulher. Isso é fácil ou é difícil, Catarina?
C: Às vezes é difícil…
T: Tu és a menina.
C: Eu sou a menina e já percebi que é muito importante eu assumir o meu papel de mulher. E consigo… Eles têm todos muito respeito por mim, mas admito que passado uma semana digo às minhas amigas ou à minha mãe: “Ai, estou com saudades, assim, de ter uma conversa de mulheres.”
Mas num país como a Índia, onde as raparigas culturalmente estão hierarquicamente abaixo do homem, onde elas não têm muitos direitos, onde, infelizmente, ainda há violações coletivas em que os violadores não são castigados… É duro ser mulher lá, entre homens?
C: Já tinha ido à Índia antes de conhecer o Tomás, aliás, nós conhecemo-nos também por causa da Índia. E achava que ia ser muito pior. Cortei o meu cabelo muito pequenino antes de ir pela primeira vez.
Para, no fundo, cortar um sinal de feminilidade.
C: Sim. E tapei-me muito, tapei os ombros, a cabeça, mas acho que o medo que eu senti antes de ir desapareceu quando lá cheguei. Fui com a minha tia Inês, foi ela que me convidou para ir para naquela aventura, e lá percebi que não tinha que ter medo. As pessoas falam muito sem saber. Já não tapo tanto os ombros, já vou de cabelo solto e eles respeitam-me. Nunca fui assediada, nunca nos tentaram assaltar. Há o olhar e eu ou me habituo ao olhar e não tenho de me tapar toda ou, se me sentir desconfortável perante certos olhares, tapo-me. Mas aproveito sempre, nas relações novas que vou fazendo com mulheres, para perceber o quão oprimidas elas se sentem e para tentar explicar-lhes que é importante que elas lutem pela sua liberdade. E que há muito mais do que o que elas, se calhar, conhecem.
E elas…há uma abertura para isso?
C: Há, há uma abertura. Mas às vezes a língua é um obstáculo, é um entrave.
Um bocado este “women for women”, não é? Mulheres pelas mulheres, é importante para elas de certeza. Voltando ao projeto, o “Kolkata Monsoon Relief” existe há três anos?
T: Não, já houve três verões em que fomos para lá trabalhar, ou seja, já houve três edições. Começou em 2017.
Portanto, estas trinta mil famílias foram ajudadas em três entregas.
T: Exatamente, em três épocas das monções.
"Em todas as entregas entrevistámos a matriarca de cada família. Fizemos várias perguntas, desde o nível de educação, quanto ganham por dia, quais são os maiores problemas, profissão dela, profissão do marido, número de filhos, localização GPS. E criámos um mapa de todos os sem-abrigo de Calcutá, todas as famílias."
Acabaram de voltar de lá. O que é que mudou desde as primeiras famílias ajudadas até agora, podem quantificar? Menos amputações, menos doenças, menos malária… Isso é quantificável?
T: Pois, é muito complicado. Umas das dimensões onde gostaríamos de evoluir é na avaliação do impacto da nossa intervenção. Nós temos ideia, mais ou menos, do impacto que aquilo tem na vida das pessoas através de estatísticas sobre mortes com malária e dengue. Sobre amputações não temos. Não conseguimos medir quanto é que estamos a ajudar as pessoas a nível de anos incrementais de qualidade de vida, nem unidades de conforto com a lona. Há coisas que é muito difícil…
Sobretudo em pessoas que vivem na rua e se calhar nem estão no Census.
T: No entanto, este ano fizemos uma coisa que foi, para mim, a parte mais incrível de tudo o que fizemos até agora. Em todas as entregas entrevistámos a matriarca, a mãe de cada família. Fizemos várias perguntas, desde o nível de educação, quanto ganham por dia, quais são os maiores problemas, profissão dela, profissão do marido, número de filhos abaixo de cinco, localização GPS. E criámos um mapa de todos os sem-abrigo de Calcutá, todas as famílias.
Ou seja, vocês têm uma cartografia afinadíssima destas famílias.
T: E são dados abertos, ou seja, qualquer ONG, pessoa, médico, grupos de amigos com vontade de distribuir arroz, o que quer que seja, pode ir ao nosso site, abrir esse mapa e ir ajudar uma família.
Às vezes não ouvem: “Porque é que vão ajudar tão longe invés de ajudar aqui os que estão mais próximos?” O que é que respondem a isso? Ou qual é a demanda interior que sentem para atravessar o oceano e para ir para o outro lado do mundo?
T: Eu em 2015 ou 2016 envolvi-me num movimento que se chama “altruísmo eficaz”. Vamos imaginar que eu hoje, ao sair daqui do estúdio, encontro uma nota de 500 euros no chão e penso: “500 euros de que eu não estava à espera, vou fazer um donativo”. O que o “altruísmo eficaz” nos diz é que devemos aplicar esses 500 euros na intervenção em que conseguimos ter a certeza que ele vai acrescentar mais valor.
Imediato, no fundo, quase sem intermediários. Assim como vocês quando entregam lonas, redes mosquiteiras, percebem que a partir desse dia as pessoas têm teto, digamos assim, e estão protegidas dos ratos e dos mosquitos. É nesse sentido?
T: Não é necessariamente no imediatismo. Por exemplo, se forem a um site que se chama “Give Well” podem ver, dentro desta comunidade do “altruísmo eficaz”, quais é que são as intervenções que têm maior impacto no dia de hoje. Neste momento são redes mosquiteiras…
"Todos os seres humanos valem o mesmo e eu não posso valorizar a vida de um português que eu não conheça mais do que a vida de um indiano que eu não conheça"
Tomás Magalhães
Portanto, tem a ver com o impacto e não necessariamente com o imediatismo.
T: Exato, não tem de ter imediatismo. Neste momento são redes mosquiteiras em África, desparasitar crianças e há uns programas que são até de dar dinheiro diretamente às pessoas.
Mas, para voltar à pergunta: o dinheiro vai mais longe na Índia, muito mais do que cá. E porquê a Índia? Também porque eles lá falam inglês e é praticamente a minha primeira língua, porque nasci em Inglaterra. É o sítio onde consigo negociar, falar com as pessoas, onde posso ter o maior impacto. Ou seja, nasce um bocado de uma perspetiva humanista, que é: todos os seres humanos valem o mesmo e eu não posso valorizar a vida de um português que eu não conheça mais do que a vida de um indiano que eu não conheça, não é?
C: Eu já fiz voluntariado em Portugal e em Calcutá. Lá, de facto, deparamo-nos com as pessoas a viver na rua, é diferente…
Ou seja, aqui ainda há uma entreajuda, uma vizinhança…
C: Ali eles estão esquecidos, percebe? Foram abandonados. Acho que é também muito por aí.
Vocês são do Porto. A vossa formação não teve necessariamente a ver com esta área. Como é que as coisas começaram na vida da Catarina, que também canta e que também dança?
C: Vou começar pelos meus 15 anos, quando entrei no Conservatório Nacional de Lisboa e estive a viver cá três anos. O meu sonho era ser bailarina, clássico e contemporâneo, e mais tarde coreógrafa. Estive cá três anos, foram anos muito bonitos e dolorosos ao mesmo tempo…
Imagino, muito dolorosos…
C: Sim, com os pais lá no Porto, os amigos também…
Mas dolorosos também em termos de treino e em termos de exigência física e emocional.
C: Muito.
É preciso ter muita endurance para manter aqueles níveis de performance.
C: Sim, eu não sabia para o que vinha na altura, mas sei que também me fez muito bem, porque tinha 15 anos e, de repente, estava a passar para o décimo ano. Nós estudávamos de manhã, no Conservatório, Humanidades, Filosofia, Português, História e depois à tarde começavam os nossos treinos físicos intensos em ballet clássico, técnica Vaganova, contemporâneo, jazz, improvisação, criação de espetáculos. As minhas tardes eram passadas a ouvir música clássica e a experimentar o meu corpo.
"Um dia, numa aula de ballet, ao pôr a minha mão na barra e ao esticar o meu pé… parecia que nada fazia sentido. (...) Eu já me perguntava: 'Mas estou a dançar por mim, por paixão, ou simplesmente ando a seguir regras e a ter que ser perfeita aos olhos de um coreógrafo?"
Tocada ali no piano?
C: Sim, apesar de duro foi muito bonito. E depois, quando acabei estes três anos, fiz bastantes audições e entrei em Nova Iorque e em vários sítios do mundo, mas acabei por ir para a Holanda.
Para Roterdão?
C: Sim, para a University of Codarts. Fui para Performing Arts. Passado um ano e meio, estava tudo a correr muito bem até que o meu avô morreu num acidente de carro e eu comecei a questionar a minha vida de uma forma intensa. Tinha vinte…
Agora tem vinte e quatro.
C: Quando isso aconteceu vim ao Porto, depois voltei para continuar a minha vida. E houve um dia, numa aula de ballet, que ao pôr a minha mão na barra e ao esticar o meu pé… parecia que nada fazia sentido, eu estava a olhar pela janela e não queria…
Como se fosse espectadora da sua vida…
C: Estava a ver-me de fora, a colocar muitas questões e os meus pais, a minha família, estavam a chamar mais por mim e não esta vida de espetáculo contínuo. Já me perguntava: “Mas estou a dançar por mim, por paixão, ou simplesmente ando a seguir regras e a ter que ser perfeita aos olhos de um coreógrafo, aos olhos do meu professor de ballet?”
A não comer quase nada, não é?
C: A comer muito pouco e, lá está, a tentar chegar a uma imagem perfeita que não existe.
E um bocado narcísica também, não é?
C: Sim, bastante narcísica.
Uma pessoa vive ao espelho.
C: Vive ao espelho e eu não estava a gostar da pessoa que estava a ser naquele momento, estava a ser tão dura comigo própria…
Ou seja, não comer, fazer exercício, ter o corpo perfeito, tudo isso é…
C: Tudo muito intenso…
Ou temos essa demanda interior e essa vocação ou então…
C: Essa vocação que também tinha que ser bastante competitiva. E eu não sou, gosto de fazer as coisas por paixão.
Percebe-se [risos].
C: Sou uma apaixonada por arte, não quero ter que fazer nada por obrigação e a dança tinha-se transformado nisso. Estava a ter uma espécie de inferno e estava farta. Então pronto, foi rápido: decidi parar, decidi voltar para a família.
Ou seja, o seu avô morreu e de alguma forma…
C: Intrometeu-se.
De alguma forma salvou-a…
C: Eu até dancei no funeral dele.
Ele adorava vê-la dançar?
C: Sim, ele gostava muito. Dizia que não queria ver os espetáculos, mas quando ele morreu encontrei quatro pontas de ballet em forma de sabão nas gavetinhas dele. E ele ligava-me sempre a marcar pedicure, queria que eu fosse sempre ver os meus pés, porque achava que eu ia apanhar uma doença…
T: Podologista, não é?
C: Exato.
"Caí numa espécie de vazio profundo. E sabe o que é que aconteceu? Eu apercebi-me de que a coragem que eu tive ao desistir da dança foi imensa, muito mais do que eu achava que tinha."
Catarina Aires
Porque ele achava que ia ter sempre os pés em sofrimento, digamos assim.
C: Sim, ele estava sempre super preocupado. Voltei, foi uma decisão que não foi muito ponderada, mas acredito que o nosso coração é mais forte do que a nossa razão e o meu coração estava a dizer “volta, sai daqui, sai da Holanda, volta para as tuas raízes, volta para os teus pais e para os teus amigos”. Eu voltei e foi um choque, foi assim um baque. Uma pessoa mudar de uma vida em que está sempre a ser posta à prova e, de repente, isso tinha acabado.
E caiu assim numa espécie de um vazio…
C: Caí numa espécie de vazio profundo… [risos]. E sabe o que é que aconteceu? Apercebi-me de que a coragem que eu tive ao desistir da dança foi imensa, muito mais do que achava que tinha.
Exatamente ao contrário, é preciso ter muita coragem, é verdade.
C: Muitos bailarinos e amigos meus ligavam a perguntar o que é que eu estava a fazer, como é que tinha tido coragem para desistir, como é que se desiste… E eu não sabia. É quando o coração fala e nós tomamos consciência daquilo que precisamos que, de facto, mudamos. Não temos que ser só uma coisa e acho que não conseguimos ser apaixonados por uma coisa para o resto da nossa vida. A paixão…
T: Hey!
C: Não… [Risos].
T: Pronto, acho que vou abandonar… [Risos].
Tomás, eu ouvi bem, é “não se pode ser apaixonado por uma coisa”, não é por uma pessoa.
C: Mas o teu já se tornou em amor, e amor é eterno, por isso… [Risos] Pronto, para terminar, que já estou a falar há muito tempo…
Não. É bom porque há muitas pessoas que têm agora vinte anos, ou vinte e pouco, e que têm exatamente esta situação de não saber por onde é que hão de seguir, o que é que hão de optar. É preciso ter coragem para seguir e é preciso ter coragem para desistir. Portanto, estes testemunhos ajudam imenso e nem sabe a Catarina quanto.
C: Uma coisa que eu percebi: é muito importante nós sabermos olhar para nós e perceber o que é que se está a passar.
E se calhar olhar para nós e sabermos o que é que não queremos, o que é que não é para nós.
C: Mas, às vezes, só a experimentar é que percebemos o que não queremos. Por isso, acho que nunca devemos ter medo de experimentar coisas diferentes ou coisas que os pais ou os amigos acham que não são para nós…
Portanto, uma pessoa gerir as expectativas próprias e não em função das expectativas dos outros.
C: Isto é muito importante, porque se eu não me tivesse ouvido aos quinze anos, se eu não tivesse experimentado dançar e se não tivesse ido fazer audições e lutar por isto…
"Saber viver é, de certa forma, sabermos ter presentes, simultaneamente, a nossa insignificância e a nossa preciosidade. Insignificância porquê? Porque somos um em biliões, mesmo o nosso planeta é um sítio arbitrário do cosmos. E, ao mesmo tempo, cada momento é precioso e cada vida é preciosa. Porquê? Porque é a única que eu vou ter. Ou, pelo menos, a única que eu tenho a certeza que vou ter."
Tomás Magalhães
Não tinha legitimidade para desistir e ter a força para continuar noutro caminho.
C: Exatamente. E, se calhar, hoje eu dizia à minha mãe: “Olha, por tua causa sou frustrada porque não experimentei a dança e hoje não sou bailarina”. Não, a culpa nunca é de ninguém, é apenas nossa.
T: Mas isso é outra coisa, que na Índia ainda me põe a pensar muito. Toda a gente tem um amigo que, sei lá, é advogado ou consultor e que está a tentar não ser isso há dez anos, não é? E uma das razões para não conseguir desistir é o medo, certo? Só que os medos que elas têm, ao lado destas pessoas que nós vemos na Índia, são medos quase ofensivos. Ou seja, muitas vezes olho até para amigos que são nossos trabalhadores lá na Índia e penso: “Se estas pessoas tivessem um décimo da oportunidade da maior parte das pessoas que eu conheço em Portugal, não tenho a menor dúvida que elas só fariam as coisas pelas quais eram apaixonadas. Nós temos muita riqueza social, somos do primeiro mundo.
Sim, nós não somos milionários, somos bilionários.
T: Exato, temos riqueza social, temos mecanismos que nos protegem de desgraças grandes e de repentes, pelo menos. Não somos o melhor país do mundo nisso, mas temos uma almofada social gigante e muitas vezes não temos noção. Não basta ver pobrezinhos na televisão. É preciso…
Tocá-los e deixar-se tocar.
T: Sim, conversar e perceber os problemas deles.
Falou nesta riqueza, neste tesouro que são as relações sociais, a rede, a teia. Vocês têm os dois famílias muito grandes. O Tomás tem sete irmãos, portanto vocês são oito. E a família da Catarina também é grande e já falaram do avô que partiu. Pergunto ao Tomás se posso falar da mãe, que partiu também?
T: Claro.
Posso ou custa-lhe?
T: Não, não. O nome da associação é o nome da minha mãe.
Como é que o nome da associação tem o nome da sua mãe e o que é que aconteceu lá para trás?
T: Antes disso, há uns tempos fui falar à Casa da Música, n’”O Que De Verdade Importa”, e é uma pergunta muito difícil de se responder. Eu comecei por dizer às pessoas que o melhor começo é percebermos que nada importa. E as pessoas ficam “Uau, convidam-no para vir aqui falar e ele diz que nada importa?” Porquê? Porque acho que saber viver é, de certa forma, sabermos ter presentes, simultaneamente, a nossa insignificância e a nossa preciosidade.
Insignificância porquê? Primeiro porque somos um em biliões, mesmo o nosso planeta é um sítio arbitrário do cosmos. Toda a gente vai ser esquecida, não é? Até o Tolstoi — que, no fim da vida, teve uma depressão quando se apercebeu que tinha livros dele em todos os cantos do mundo, mas que um dia, quando a humanidade acabasse, ele seria mais um que foi esquecido.
E, ao mesmo tempo, cada momento é precioso e cada vida é preciosa. Porquê? Porque é a única que eu vou ter. Ou, pelo menos, a única que eu tenho a certeza que vou ter. Acho que comecei a pensar muito nestas coisas quando tinha 12 anos e a minha mãe morreu num acidente de automóvel.
Vocês eram quatro irmãos?
T: Éramos quatro, a minha irmã mais nova tinha um ano e meio.
E a sua mãe morreu num acidente de carro?
T: Sim, na África do Sul.
E isso foi brutal, como é óbvio.
T: Sim, foi. A vida desmontou-se. Lembro-me quando o meu pai nos deu a notícia, à minha irmã e ao meu irmão João, foi assim uma reação, parecia que tinha… Fiquei drogado, não sei, fiquei tonto e toda a realidade… Parece que se inverteu.
Uma espécie de uma bolha.
T: Sim, porque uma mãe é… isto está provado, não é? As crianças muito novas não conseguem distinguir o “eu” do da mãe e do pai, é uma espécie de existência mútua. “Eu, mãe e pai.”
Uma existência simbiótica.
T: Exatamente. Depois a criança começa a perceber que tem identidade. Aos 12 anos eu já sabia que era uma pessoa, mas acho que, por causa da morte da minha mãe, comecei a pensar muito nessas coisas desde muito cedo.
E teve a sorte de o seu pai voltar a casar e ter mais quatro filhos e de serem uma família muito grande, muito unida e muito feliz.
T: Exatamente, foi muito importante.
E a sua mãe ficou no seu coração, como é óbvio, e o nome dela está no seu projeto.
T: Sim.
Onde é que está o nome dela?
T: A associação que abrimos cá em Portugal chama-se Associação Stella e o único projeto desta associação, neste momento, é o “Kolkata Monsoon Relief”. Mas eu e os meus irmãos já há uns anos tínhamos pensado que um dia era bom termos uma associação com o nome da nossa mãe. Então tomei a iniciativa. E agora pode haver mais projetos dentro desta associação.
Qual era a maior herança da sua mãe, o maior legado? Do testemunho dela, da sua maneira de ser?
T: Acho que é o Pico, o João, o Tomás e a Sofia. São os quatro filhos dela.
Quais são os vossos projetos de futuro? Agora falando em termos de casal, vocês têm uma certa diferença de idades.
C: Sete.
E continuam a pensar em ter projetos de voluntariado, esta ONG, esta associação, mas no futuro mais imediato o que é vocês estão a pensar fazer? Angariar mais dinheiro para ajudar mais famílias, diversificar os projetos?
C: Claro que estamos a pensar expandir o projeto “Kolkata Monsoon Relief”, estamos juntos nisto e vamos ficar juntos nisto até ao fim.
T: Temos várias ideias. Gostávamos de ter mais artistas a vir connosco, para depois, talvez em Portugal e na Índia, fazer exposições, quer seja de fotografia, pintura, poesia, o que for.
"Há muitas crianças que têm a hipótese de ir à escola, mas os pais, que vivem no passeio, não percebem a importância de levar a criança todos os dias. Ou, se calhar, alguns nem têm dinheiro para o autocarro. Uma das ideias que tivemos foi criar uma espécie de autocarro escolar"
E música também?
T: Música já estou eu, mais ninguém pode [risos]. Estou a brincar, música claro que sim. Nós agora temos várias parcerias com várias ONG lá. Temos uma parceria com uma ONG de saúde, onde entregamos as pessoas que encontramos em pior estado; temos outra com uma escola que se chama “Future Hope”, que é um projeto incrível começado por um inglês… Há muitas crianças que têm a hipótese de ir à escola, mas os pais, que vivem no passeio, não percebem a importância de levar a criança todos os dias. Ou, se calhar, alguns nem têm dinheiro para o autocarro para levar o filho. Então, uma das ideias que tivemos este ano foi: se nós conseguíssemos criar uma espécie de autocarro escolar para pegar em algumas das crianças…
Que recolhesse as crianças todas e as deixasse na escola e depois as fosse apanhar.
T: Exato. Seria complicado, porque elas não estão sempre no mesmo sítio do passeio. Há escolas que levam, acolhem crianças, ficam lá internadas, mas há pais que não querem fazer isso.
Claro, e hoje em dia…
T: Além disso há a hipótese de estender geograficamente para Bombaim ou para Deli, há a hipótese também de nós montarmos lá uma escola pequena, de montarmos uma escola móvel…
C: Era perfeito.
Se bem vos conheço, entre o sonho, a hipótese e a concretização é um passo muito curto. Sei que, de alguma forma, foi por causa do Dalai Lama que vocês se conheceram e depois se apaixonaram, é verdade? Por causa de uma fotografia que a Catarina publicou no Facebook em que estava com o Dalai Lama…
C: Temos ambos fotos com o Dalai Lama, em tempos diferentes da nossa vida, mas foi o marido da minha irmã, da Mariana Aires, o Afonso Salcedo de Guimarães, que num post que o Tomás publicou escreveu o meu nome, e o Tomás mandou ali uma mensagem… e “zuca”.
T: Grande Afonso. Quando ia os primeiros seis meses para a Índia, saquei da internet um mapa grande da Índia, publiquei no meu Facebook e escrevi: “Pessoal, vou para a Índia seis meses, vou estar a fazer muito voluntariado, mas também quero visitar coisas. Dicas?” Muitos amigos escreveram coisas, uma das pessoas que escreveu foi o Afonso Salcedo, escreveu “Catarina Aires e Inês Aires”, que é a Catarina e a tia dela.
Que tinham ido à Índia e que tinham estado com o Dalai Lama.
T: Exatamente. Que já tinham ido.
Então, de certa forma, o Dalai Lama também…
C: Juntou-nos…