Céu Neves, in DN
Nasceu há 80 anos num palacete em Vialonga, tem passado os últimos em lares, "numa tournée", ironiza, com horários completamente desfasados do teatro. Fala destes tempos, de uma pobreza que não imaginava, mas também dos tempos do glamour. Tão intensos como as suas paixões.
Nasceu num palacete às portas de Lisboa, vive agora num lar da Santa Casa da Misericórdia em Canha (Montijo). Como é lidar com todas estas mudanças?
Nasci numa família de gente com dinheiro, nunca me faltou nada, tinha tudo, talvez demasiado. Foi uma infância feliz. Apercebo-me agora de que era tudo muito fácil, quando se tem tudo não há a noção do difícil que é ter alguma coisa. Por exemplo, nesta tournée em que tenho andado, tenho visto situações que não imaginava que existissem.
Tournée é um eufemismo.
[Ri-se] Sabe que ainda tenho sentido de humor, se não tivesse sentido de humor não tinha ultrapassado o que já ultrapassei. Se não tivesse sentido de humor, isto não teria graça nenhuma. Tive de vender a minha casa, recebo uma reforma de 600 euros e tenho de viver em lares. Nesta tournée pelos lares que ando a fazer, vejo esta miséria, esta pobreza, gente tão pobre que fico mesmo aflita. Esta miséria, esta pobreza, dá para as pessoas serem extremamente malcriadas. O que gera um péssimo ambiente.
Em quantos lares já esteve?
Alguns [ri-se] e os lares são todos muito maus. Quem inventou os lares inventou-os por boas causas, pensou em criar sítios agradáveis onde pudesse viver quem não tivesse casa, mas, talvez por falta de fundos, tornaram-se todos muito maus. Por exemplo, acabaram com os manicómios e as pessoas com doenças mentais estão todas nos lares, o que é muito incomodativo. Uma pessoa fica magoada com o que aquelas pessoas devem ter sofrido para estar neste estado. Há uma mulher que diz palavrões a toda a hora, uma pessoa acorda com aquela mulher a dizer palavrões e os piores palavrões.
Está num quarto partilhado?
Sim, não há quartos individuais, mas vou para um sítio onde terei um quarto só para mim. É perto da minha filha e do meu neto, que adoro.
Como é que passa o dia? Participa nas atividades?
Passo os dias no computador, no Facebook, vou postando umas coisas que me chateiam. As pessoas aqui não têm atividade, não leem, ou não sabem ler, há pessoas que não sabem escrever o seu nome. Na minha mesa, onde faço o pequeno-almoço, almoço e jantar - vocês não acreditam nisto -, tenho um homem que come com as mãos e, à minha esquerda, havia um homem que deitava sangue pelo nariz. Tudo isto me incomoda, mas não me mudam de lugar.
Tem vários problemas de saúde e está a fazer um ano em agosto que a sua filha expôs no Facebook a sua situação, com uma foto sua de uma grande vulnerabilidade.
Foi por isso que apareceu este lar, mas eu estava no Hospital de Santa Maria, que era onde queria ficar.
Não se zangou? Sabia que ela ia publicar a foto?
Não sabia, mas não me zanguei, é a minha filha. E eu teria feito a mesma coisa, teria ido ter com o filho, que foi o que ela fez, o meu neto tem 7 anos e não pode estar sozinho. Ainda por cima, mora numa aldeia - esta mania das aldeias -, mas ela adora, diz que tem uma floresta. A minha filha é uma mulher da natureza, não é uma mulher como eu, das cidades, com tudo à porta: livros, restaurantes, bares, viagens.
E a sua saúde?
Tive um cancro da mama há 20 anos, que superei, mas ficaram as sequelas, caio com facilidade. Fraturei cinco costelas e tenho outros problemas de saúde, mas sou uma sobrevivente. Um neurologista muito conhecido disse-me uma vez que eu nasci para viver.
Reconhece-se nessa afirmação?
Sim, nada me deita abaixo, não morro por coisa nenhuma. Mas sei que vou morrer e vou morrer agora. Tenho apneia do sono, preciso de dormir com uma máquina de oxigénio, eÉ uma mulher do teatro, da noite. Já se habituou aos horários rígidos de uma instituição?
Que remédio, os horários das refeições são terríveis, deitamo-nos às 19.30 e levantamo-nos às 07.00, e estava habituada a deitar-me às três da manhã. Mas o pior de viver aqui é a falta de dinheiro, do lar propriamente dito e das pessoas. E nunca imaginei que as pessoas vivessem assim, sem dinheiro, sem saber ler.
Uma realidade muito diferente da da Graça Lobo que estudou em colégios da elite?
Sim, mas do que mais gostei foi do St. Julliens, aliás foram os ingleses que me criaram, e vivi em Londres.
Também na Irlanda, num convento em Dublin.
Isso foi quando tinha 15 anos, vivi lá até aos 17. O meu pai mandou-me a mim e às minhas duas irmãs para lá.
Como é que o seu pai se lembrou de um convento?
O meu pai lembrava-se das coisas mais estranhas. A minha mãe tinha ido para Paris tratar de negócios, tinha uma empresa de cosméticos, e nós ficámos entregues às empregadas e ao colégio, na altura estava no Charles Pierre, o que foi ótimo para o meu francês.
Alguma deve ter feito.
Não fiz nada, bem, disseram ao meu pai que eu andava de vespa com rapazes e era verdade. Eu andava de vespa com rapazes e era tudo o que eu fazia com os rapazes. Mas isso era uma coisa impensável para o meu pai. Falou com o padre que me tinha dado a primeira comunhão e mandou-me a mim e às minhas duas irmãs para a Irlanda, para um convento. Ele proibiu-me de telefonar à minha mãe e eu cumpri com a minha palavra - para mim não era aceitável não cumprir. A minha mãe ficou desvairada quando regressou e não nos viu.
Os pais estavam separados?
Sim. Aliás, ele fez montes de coisas sem avisar a mãe, uma mãe que eu adorava, pura e simplesmente, não havia ninguém para mim que se lhe comparasse: em beleza, em ternura, em nada. A última vez que chorei dá-me a ideia que foi quando a minha mãe morreu.
Não é chorona.
Não, não sou, a minha filha é chorona, eu não. Dizem que as pessoas choronas são as mais inteligentes.
Depois do convento, da Irlanda, regressou a Portugal mas não quis ficar.
Ainda aqui estive um ano, mas vim com a ideia de ir para a América do Sul conhecer os índios e, com 19 anos, fui para a Colômbia, para Bogotá, trabalhar na companhia aérea Avianca. Na viagem para Bogotá, fiz escala em Nova Iorque e passei mais tempo em Nova Iorque do que a conhecer os Índios [ri-se]. No fundo, o que eu queria era ir para Nova Iorque.
Naquela altura, sem as facilidades de comunicação de agora, como é que se vai para uma companhia de aviação em Bogotá?
Com cunhas e eu tinha uma grande cunha, mas não estive lá muito tempo. Incendiei um avião [ri-se]. Meti uma coisa a aquecer no forno, adormeci e quando acordei só ouvia: "Fuego, fuego."
Foi despedida?
Não, porque eu era muito educada, muito estimada, fui convidada a sair, a pedir a rescisão do contrato, e eu pedi. Vim para o pé da minha mãe, Lia do Sacramento Monteiro, dar muitos beijinhos. Era uma cabo-verdiana, branquíssima, com olhos verdes e cabelos pretos, belíssima, o Eduardo [Anahory] gostava muito dela, tinha uma pachorra para o aturar enorme. E depois ainda fui para a TAP, como hospedeira de terra.
O que a fez decidir mudar de profissão e ir para o Conservatório?
Conheci um homem lindo, que eu adorei e que me adorou, que era o Maurício Vasconcelos, arquiteto. Apaixonei-me loucamente por ele e ele por mim. Deixou a vida que tinha e veio viver comigo. Ele é que me diz: "Se queres ser atriz, vai para o Conservatório." E havia um homem, o Alexandre Babo [escritor e dramaturgo], que fez o Teatro Experimental do Porto, que disse que eu devia ir para o Conservatório. Fui para o Conservatório por influência destes dois homens e comecei logo a trabalhar [na Casa da Comédia, em 1967, com o espetáculo Noites Brancas, de Dostoiévski.
O Eduardo Anahory era o pai da sua filha e já disse que se arrepende de se ter separado?
Completamente. Era um homem bom, um talento, um homem lindo.
Porque é que se separou?
Porque, no meio de tudo isto, sou muito estúpida, faço as escolhas erradas. Estava no Teatro Experimental de Cascais, com o Carlos Avilez, que era longe de casa, achei melhor separar-me, tinha 33 anos.
Dá grande importância à beleza?
Não, mas o Eduardo era lindo. Depois de me separar dele, apaixonei-me por um homem feio, o Júlio [Pomar]. Foi uma grande, grande paixão, com um homem tão feio, tão feio, mas ele tinha uma magia qualquer. O Dr. Mário Soares disse-me uma vez: "Ó Graça, porque é que mulheres tão bonitas se apaixonam pelo Júlio Pomar, que é tão feio?" Realmente, era feio.
Quando é que conheceu o Júlio Pomar?
Isso foi muito engraçado, só o posso explicar pela existência, ou não, de Deus. Ainda vivia com o Eduardo e ele diz-me: "Logo vem cá o maior pintor português tomar uma bebida, prepara umas coisas", e eu pedi à empregada para preparar umas coisas. O Júlio entrou, sentou-se, não abriu a boca. Levantou-se e à saída deu o cartão dele ao Eduardo. Assim que saí, o Eduardo dá-me esse cartão e eu, imediatamente e sem pensar, guardo-o na carteira. Um ano depois, chateio-me com o Avilez [Carlos] e vou para o Teatro D. Maria II fazer As Criadas, encenada pelo Vítor Garcia, com a Glicínia Quartin e a Lurdes Norberto. Descíamos num baloiço que era manobrado por um contraguerra que estava sempre bêbado.
Que histórias...
Histórias que eu adoro. O contraguerra estava sempre com os copos e conforme ele balançava assim nos balançávamos. Quando o espetáculo acabou, estava estoirada e pensei: "Vou para Paris, fazer compras e vestir-me como deve ser, que não estou nada bem." Em Paris, sentei-me numa esplanada no bairro Saint Michel, aparece-me um maluco, pede para se sentar e tomar um café, toma o café e segue-me até ao hotel. No dia seguinte, estava à porta do hotel, e pensei: "Estou feita, vou ter um maluco atrás de mim todo o dia." Não ia à polícia, porque não tinha ido a Paris para estar numa esquadra, e telefonei ao Júlio, que vivia em Paris (para alguma coisa aquele cartão serviu). Disse-me para ir ter com ele às cinco da tarde e eu fui. Só saí de casa dele dez dias depois, fomos os dois buscar a mala ao hotel.
Uma paixão fulminante.
Foi fantástico, mas nesses dez dias não me tocou, passámos esses dez dias a conversar e ele a olhar para mim, isto em 1973. O primeiro quadro que fez meu foi de 1973.
Ofereceu-lho?
Não, vendeu, ofereceu-me outros. Vendeu todos os quadros que fez de mim, podia ter-me dado uma percentagem, mas não deu, era muito agarrado ao dinheiro.
O contrário da Graça Lobo.
Era o oposto, porque nasceu pobre e as pessoas que nascem pobres são muito agarradas ao dinheiro, os que nascem com dinheiro não. Viemos para Lisboa, eu vim para o apartamento da minha mãe em Miraflores e ele comprou um apartamento ao lado, queria que abrisse uma porta entre as duas casas, não aceitei. A relação acabou, ele é que acabou, depois de eu ter feito quase tudo o que uma mulher faz para acabar uma relação. Estava apaixonada mas a certa altura deixei de pensar que estava apaixonada, esta coisa de estar apaixonada tem muito que ver com o pensar que se está apaixonada.
Foi uma separação amigável?
Não foi muito amigavelmente, só se tornou amigável quando o convidei para fazer os cenários da peça As Cartas Portuguesas, aí foi uma relação de verdadeira amizade. A mulher com quem ele viveu depois era uma amiga minha, fui eu que a apresentei. Era a mulher ideal para ele, o oposto de mim, uma paz. Eu era um desassossego e ele precisava de paz. Depois vivi com o Carlos Quevedo, 13 anos, 13 anos é muito ano. Depois acalmei, acalmei depois de ter um cancro.
'As Cartas Portuguesas', 1980, peça que representou na companhia que fundou um ano antes, o Teatro Experimental de Lisboa.
Referiu a primeira peça que representou no Teatro Nacional D. Maria II, As Criadas, que foi estrear a sala-estúdio. Fez a última peça, As Três (Velhas) Irmãs, no mesmo palco. É o fechar de um ciclo?
Não sei, não sei se essa peça foi a última. Vou fazer uma coisa engraçada com um amigo meu, o poeta Rui de Noronha Osório. Vai lançar um livro de poesia e vou dizer a poesia dele com ele, como fiz com o Mário Cesariny, que editámos em disco e as pessoas acharam uma maravilha.
Atuou no Japão, Brasil, Eslovénia e Estados Unidos, neste último país em São Francisco e em Nova Iorque. Como é que se leva uma peça para a Big Apple?
É outra boa história. Atuei no La MaMa Experimental Theatre, da Ellen Stewart [1980, off-Broadway], que era de uma senhora que procurava êxitos na Europa e os levava para lá. Eu estava a fazer As Cartas Portuguesas no Teatro Experimental de Lisboa [companhia que fundou em 1979] e disse: "Vou pegar neste espetáculo e levá-lo a Nova Iorque." Enfiei-me no avião e pedi à senhora que marcasse uma entrevista, ela marcou e saí de lá com um contrato. Foi muito engraçado porque o Vítor Pavão, que tinha uma grande intuição, tinha dito: "És doida, mas nunca, por nunca ser, esta mulher te vai dar um contrato." Quando acabou a entrevista, peguei no contrato, fui ter com ele, levantei o braço e disse: "Está aqui!"
Conseguia sempre o que queria?
Não, porque o que eu queria era ter uma companhia estável. Fundei o Teatro Experimental de Lisboa porque não me identificava com o teatro que aqui se fazia. Isso não consegui, não havia dinheiro.
Geria bem o dinheiro?
Era muito boa a gerir o dinheiro no teatro e era muito má a gerir o dinheiro na minha vida, por isso é que estou aqui.
A atriz em 1996.
Quando é que ficou sem esse dinheiro?
Em 1994 roubaram a firma que era da minha mãe, basta isso. Vivo com muito menos dinheiro do que já vivi, mas, para quem teve dinheiro, o viver com menos é quase natural, é como se o dinheiro encolhesse, não consigo explicar.