7.8.09

Falta de rede de cuidados remete doentes mentais para lares

Catarina Gomes e Alexandra Campos, in Jornal Público

"Se a ASAE visitasse o Bombarda, fechava-o", diz o seu director. Mas há um grupo de psiquiatras que critica transferências para lares de idosos


Um placard de cortiça com fotografias de rostos de mulheres envelhecidas é dos poucos vestígios das 40 doentes da 5º enfermaria do Hospital psiquiátrico Miguel Bombarda que ali tiveram a sua casa durante décadas. A criação de unidades para albergar doentes mentais na comunidade e assim reduzir os internamentos está com mais de um ano de atraso, mas o número de doentes institucionalizados está a diminuir e tanto o Bombarda (Lisboa) como o hospital psiquiátrico do Lorvão (Coimbra) poderão fechar antes de 2012, a data prevista pelo Governo, diz o coordenador nacional para a Saúde Mental, Caldas de Almeida. Mas para onde estão a ir os doentes?

Os corredores estão desertos e uma meia dúzia de doentes vagueia sem destino. No Bombarda permanecem ainda 108 dos mais de 260 doentes que em 2007 ali estavam internados. Num lar de idosos encerrado há uma semana pela Segurança Social e pela ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) 39 dos 142 utentes (para uma lotação de 40) eram doentes psiquiátricos, metade do Bombarda, a outra do Júlio de Matos.

Há quem não hesite em dizer que este caso é a prova de que a desinstitucionalização se está a fazer à pressa. A pedra-de-toque da reforma da saúde mental é a redução ao mínimo dos internamentos, privilegiando o tratamento do doente na comunidade. Na base deste edifício estará a criação, diversas vezes anunciada pelo Governo, de unidades de cuidados continuados para doentes mentais - um projecto com um horizonte até 2016, mas que devia ter arrancado já em 2008.

O problema é que ainda não saiu do papel, está com mais de um ano de atraso, reconhece Caldas de Almeida. "Dada a falta de experiência em Portugal neste campo, os estudos técnicos exigiram mais tempo do que estava previsto." De resto, ressalva, a reforma "está a andar a bom ritmo". Destaca a abertura de novos serviços de psiquiatria na comunidade: no Garcia de Orta (Almada), no hospital de Tomar, além da criação de uma equipa comunitária nas Caldas da Rainha. O gabinete da ministra da Saúde é lacónico: diz não ter previsões quanto à aprovação do diploma dos cuidados continuados.

Mas o caso do lar encerrado está a dar origem a um movimento de protesto. O presidente do colégio de psiquiatria da Ordem dos Médicos, Marques Teixeira, considera que "revela a falência do sistema de atendimento comunitário". E no Júlio de Matos há um abaixo-assinado a correr entre psiquiatras, que reclamam que as estruturas competentes acompanhem estes doentes e não se demitam deste processo de desinstitucionalização. O manifesto vai ser enviado em breve para o Ministério da Saúde e a Segurança Social, adianta um dos subscritores, Manuel Guerreiro.

"Reforma é um bluff"

O director do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (que incluiu o Júlio de Matos e o Miguel Bombarda), Ricardo França Jardim, retorque que sempre se transferiu doentes para lares. E não hesita em afirmar que estão melhor do que ali, no Bombarda, fazendo questão de mostrar onde viviam alguns dos doentes transferidos. "Se a ASAE visitasse o Bombarda, fechava-o." O esvaziamento da 5º enfermaria foi o que lhe causou maior "alívio", porque "se houvesse um incêndio isto era um churrasco: metade das 40 doentes estavam acamadas" e há apenas um elevador onde cabe uma pequena maca. Mostra também a 9ª, porque era a que tinha piores condições: uma enorme camarata foi separada por divisórias de contraplacado que não chegam ao tecto - "aqui cabiam seis camas" - e que abanam cada vez que se abre uma porta.

Os psiquiatras reconhecem que as condições do Bombarda são más e concordam que alguns dos doentes residentes nos hospitais psiquiátricos devem ser transferidos para estruturas comunitárias. "Mas se estamos a dizer que uma coisa não é boa vamos substituí-la por outra pior?", pergunta Maria Antónia Frasquilho, que no ano passado se demitiu da direcção clínica do Júlio de Matos. "No Bombarda os doentes pelo menos tinham janelas nos quartos e médico e enfermeiro 24 horas", enfatiza. No lar encerrado havia pessoas a dormir em quartos sem janela na cave e no sótão.
França Jardim diz que, desde Fevereiro de 2007, 20 doentes voltaram para as suas casas ou para a família e 69 foram para cerca de 30 lares ou casas de repouso licenciadas pela Segurança Social. O que tinha mais doentes foi o que fechou. E garante que só foram transferidos os que tiveram alta clínica, "doentes relativamente independentes que não precisam de cuidados médicos permanentes".
"O que me repugna não é que transfiram doentes que estão estáveis e que apenas precisam de cuidados hoteleiros. O que me repugna é o não cuidado com que isto está a ser feito. Estes são, na sua maior parte, doentes incapazes", alerta Manuel Guerreiro.

França Jardim refuta e diz que "a transferência não é feita às cegas". "Há doentes que recusam e nós não insistimos." Questionado sobre se teriam capacidade de decidir, responde que são sobretudo esquizofrénicos "com baixa das suas competências mas mantêm algumas das suas capacidades".

Fernando Almeida, presidente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra (que inclui o Sobral Cid e o Lorvão), diz-se "totalmente favorável à colocação em lares que reúnam boas condições" e até tem feito transferências, mas de forma pontual. O Lorvão mantém ainda 120 doentes residentes "que não têm condições para ser colocados noutras situações, enquanto não houver cuidados continuados".

No Porto, no Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos a questão é menos premente. Em 138 camas há apenas 22 doentes com mais de um ano de internamento, explica o presidente do conselho de administração, António Leuschner, que não é contra a transferências para lares, desde que haja "consultas periódicas e um bom acesso ao internamento". Mas "a saída da legislação é premente", frisa.

Para o médico do Júlio de Matos José Manuel Jara, "a reforma da psiquiatria e saúde mental é um bluff" e teme que Portugal siga o exemplo italiano, que procedeu a uma desinstitucionalização apressada.