João Carlos Malta , Joana Bourgard, in "Renascença"
São décadas de políticas públicas de combate à exclusão e às desigualdades. São documentos de papel que não passaram para a rua. Marvila é a campeã dos bairros sociais em Lisboa. Tem dez. O mais conhecido é a Zona J. Ali, o estigma e o preconceito andam de mãos dadas.
A designação oficial mudou da estigmatizada Zona J para o novo Bairro do Condado. Os prédios deixaram de ser pintados “à la United Colors of Benetton” e passaram a tons mais esbatidos. O “corredor da morte” – rectângulo formado por prédios, com vielas estreitas e escuras, onde o tráfico de droga imperava e os ajustes de contas entre gangues rivais tinham palco privilegiado – até foi arrasado com a ajuda de uma martelada do agora primeiro-ministro, António Costa. Este “lifting” foi suficiente para acabar com o círculo de exclusão de um gueto plantado bem no centro de Lisboa?
Adriano e Vera são os dois rostos maiores da associação Torre Laranja, que assumem ser, para as outras instituições de serviço social que trabalham no bairro, uma colectividade de “má fama”. Não fecham a porta a ninguém pelo passado (uma "porta" metafórica porque a Torre Laranja não tem uma sede, há anos que luta por um espaço), porque a inclusão, acreditam, remete para o presente e para o futuro. E acrescentam mesmo: “A exclusão, o preconceito, a intolerância, começa muitas vezes dentro do bairro pelos que deviam ser os bons desta história.”
A Zona J corre nas veias destes dois “jovens de meia-idade”. Vera é a “twenty one” para muitos que a conhecem desde pequenina e também animadora social. Adriano é o filho do bairro que trabalhou numa multinacional de segurança. Ambos já viveram 35 anos a verem tudo a ser alterado e poucas coisas a escreverem-se de forma diferente.
“Há mudança, mas não para melhor. Com 16 anos, nós não estávamos abandonados. Hoje, vemos miúdos que com essa idade já estão perdidos. Isso custa-me. Não têm futuro”, resume Vera, presidente da Assembleia-Geral da Torre Laranja, associação desportiva que põe os jovens do bairro a mexer com o futsal, o basquetebol, o atletismo e o pingue-pongue. São já 40 meninos.
Medir sílaba a sílaba "a verdade que não pode emergir"
O presidente, Adriano Pinto, é, todo ele, "street” – desde o casaco, ao boné, descendo até às sapatilhas. Defende que a inclusão é uma palavra política com dificuldades em sair do papel para a rua. “[Falar de inclusão] é politicamente correcto, mas isso não existe. A inclusão existe a nível das políticas, mas a verdade é que ela não existe. O porquê? Porque pode haver interesses em não incluir certas pessoas e, por isso, há a exclusão”, argumenta.
Mas quem é que não quer? Adriano mede as palavras sílaba a sílaba. O técnico de electrónica garante que ser “realista e frontal” penaliza. “Depois de tanta nega, temos de pensar no que dizemos. A verdade não pode vir ao de cima. E a verdade num bairro social como este aqui….”, atira, enigmático.
Segundo Adriano, a vida do bairro tem sido feita de círculos. Um movimento perpétuo em que “os problemas que existem são repetidos durante anos e anos e anos”. “Há miúdos com um pé numa parede sem fazerem nada. Cada um deles está com uma pessoa de 40 anos que também não teve nenhuma oportunidade.”
Vera faz uma declaração de amor às raízes, antes de diagnosticar com pessimismo o caminho do bairro. Ela mudou-se para Benfica, porém, o coração ficou ali na Zona J. Sim, Zona J, isso do Bairro do Condado é uma modernice sem pinga de afectividade. “Dantes havia sempre movimento e actividade. As associações eram mais unidas. Agora, é cada um por si; é um bocado triste”, lamenta. No entanto, ainda não perdeu a esperança de lutar: “Digo ao Adriano para não desistirmos. Pode demorar anos, mas vamos conseguir a nossa sede.”
A sala Sam The Kid
Um pouco mais abaixo, no Bairro do Armador, encontra-se o Espaço Lx Jovem, que está dividido em cinco grandes áreas. Na sala de ensaios, por exemplo, os adolescentes de Lisboa podem encontrar a “garagem” de sonho para os seus projectos musicais. Por outro lado, no auditório Sam The Kid – o "rapper" mito da Zona J, o herói de Chelas, o rei do hip-hop português –, com capacidade para cerca de meia centena de pessoas, sobem ao palco a dança, o teatro e o cinema. Uma minigaleria de arte, um laboratório de fotografia analógica e uma biblioteca com um ponto de internet completam este local.
Mário Rui, chefe de Divisão para a Coesão e Juventude da Câmara de Lisboa, sublinha que a escolha do bairro não foi inocente. Trazer pessoas de fora para Marvila, fazê-las viver o espaço e conferir à visita àquele bairro “normalidade” ajuda a diminuir o “estigma”. “Queremos potenciar este local para que não seja um espaço para os jovens de Marvila, mas para os jovens de Lisboa. Este é mais um ponto na cidade”. Só isso.
Quando se fala de Chelas e da Zona J fora do bairro, a leitura dos “outros” não é tão despudorada de preconceitos, diz Adriano. O técnico de electrónica dá-se como exemplo. “Trabalhei durante anos numa multinacional de segurança. Primeiro, estive em Espanha, mas ao chegar a Portugal, quando revelei que as minhas raízes eram todas na Zona J, a aceitação disso numa empresa de segurança foi complicada. Há aquelas conexões que se fazem logo. Senti muito essa pressão”, lembra.
Num filme, daqueles que acabam com o redentor “happy end”, diria que a convivência dilui a desconfiança. Contudo, a vida real nem sempre é tão preto no branco. “O estigma nunca sai, até provas que não és nenhum bicho-papão, que nem moras num lado que seja assim tão mau, mas…”, explica Adriano. O caso dele, sabe-o bem, não é único. Há quem se proteja e não queira comprar a guerra da intolerância.
“Numa entrevista de trabalho, não acredito que a maioria das pessoas diga que mora aqui. Dizem que são de Marvila ou que vivem ao pé da Expo”, enfatiza.
Um filme e um festival. A arte pode fazer toda a diferença
A arte é muitas vezes uma forma de quebrar tabus, porque exponencia, dá a conhecer, quebra rótulos. Isto na versão boa. Porém, pode ter o efeito contrário: adensar todos estes pontos e carregá-los a negrito. Vera e Adriano, em uníssono, referem que foi isso que o filme “Zona J”, de Leonel Vieira, fez. Foi com esse filme que muitos, sobretudo quem não vive em Lisboa, ouviram falar pela primeira vez do bairro.
Vera faz um “flashback” de quase 20 anos e senta-se de novo na cadeira de cinema de uma sala em Viseu. Acabou o filme e a reacção dos amigos que a acompanhavam foi: “Ui, é onde tu moras? Eu nem meto lá os pés”. “Fiquei triste”, afirma.
“Quiseram dar só a parte negativa. Ninguém está lá em cima do telhado a fumar ganzas. Sofremos bastante com aquela imagem que deram desta zona”, recorda.
No entanto, na história da relação do bairro com as artes há um outro lado. Começa-se a escrever em Vale de Judeus, quando a Casa Conveniente, de Mónica Calle, fez um espectáculo naquela prisão. O pano caiu sobre a peça, mas os laços que se criaram permaneceram e transformaram-se em visitas à Zona J para visitar os amigos. Alguns deles haviam de entrar mais tarde para o elenco desta companhia de teatro.
Do Cais até Chelas, sem condescendência com "os pobrezinhos"
Foi o rastilho que motivou a migração da Casa Conveniente do Cais do Sodré para a Zona J, que começou em 2015. Mónica Calle deixa logo o aviso para que não haja mal-entendidos: “Um dos grandes riscos e perigos de se trabalhar em áreas mais marginais é tornar essa actividade numa coisa demagógica e inconsequente que passa de moda rapidamente. A nossa vinda não é uma decisão conceptual, não vimos para um bairro social trabalhar com os pobrezinhos e com condescendência”, avisa.
Mónica fala de um “local ávido de um projecto profissional” e das condições ideais para fazer pontes que se imaginariam impossíveis no início do processo. “Permitiu fazer ligações com escolas e chegar a franjas etárias que nunca pensámos conseguir. Quando chegámos aqui, simplesmente passou a fazer sentido trabalhar com crianças e adolescentes”, destaca Calle.
Este grupo de artistas começou a ensinar música aos meninos do bairro. “Estamos a dar aulas de guitarra clássica e comprámos os instrumentos para que cada miúdo possa ter o seu e levá-lo para casa. Assim, conseguem desenvolver a ideia de responsabilidade e podem ainda tomar conta, aprender e tocar em casa”. Abre-se um horizonte para que os mais novos não achem que seguir o talento na música ou na dança não pode ser um futuro.
Na Zona J a Casa Conveniente continuará a organizar "workshops” e espectáculos, "juntando actores, não-actores, amadores, pessoas que nunca fizeram nada, de todas as idades e de todas as profissões".
Foi com a música que a Casa Conveniente entrou com estrondo na Zona J. O festival “Zona Não Vigiada” foi um acontecimento marcante e mediático. Nas palavras de Mónica Calle, “um evento feliz, de partilha, de encontro”. Foi também diferente. Sem patrocínios, sem os “outdoors” de marcas de cerveja.
“Um dos pressupostos deste festival é não haver patrocínios nem publicidade. Ele acontece num bairro e a nossa ligação é com todo o bairro, e uma dessas ligações com o pequeno comércio”, adianta a directora da companhia.
“National Geographic”
Foi mais um passo da estratégica que Mónica pensou. Partiu do princípio que ninguém vem à Zona J a não ser que tenha uma razão, a não ser que precise, pois o bairro está estruturado como uma ilha em relação à cidade. “Não é um caminho para lado nenhum – ou vens aqui ou não vens. E houve algumas pessoas que vieram pela primeira vez à Zona J para ver o nosso trabalho. Isto desmistifica uma série de questões, porque há um estigma”, sustenta.
Contudo, este preconceito é de fora, mas também é de dentro. Adriano pega no exemplo do “Zona Não Vigiada”, com um sorriso de orelha a orelha, e compara-o quase a uma experiência tipo “National Geographic”. “Foi brutal ver a reacção dos habitantes daqui. Primeiro, vês que as pessoas não se integram, andam ao redor, observam ao longe. Não entram no ringue. Questionam: ‘O que é que é isto? Tanta gente diferente'”, revela. Passado o choque inicial, “ao fim do dia, todo o mundo dançava e convivia. Houve receio de abrir logo o jogo, mas [aquela transformação] foi mesmo brutal”.
Este exemplo fez com que Adriano pensasse que outros passos seriam possíveis. Juntar mundos opostos que construíram muros que, sem terem tijolo, são mais fortes do que betão armado. A polícia de um lado e os habitantes da Zona J do outro. Vêem-se mutuamente como vilões. O futebol poderia fazer com que todos passassem a atacar o problema que é o mesmo: a incompreensão.
“Já tentámos pedir à PSP que participasse numa actividade como um jogo de futebol. Era interessante, mas há riscos”, admite Adriano. "Se não o fizermos, nunca vamos saber”. No bairro até há um “dormitório da PSP”. “Os polícias passam aqui sem problemas”, mas há sempre um "mas".
Neo-escravos
Romper com o passado, com as formas de fazer, de ser e de estar é muitas vezes fácil de proclamar, porém, complicadas de executar. Mónica Calle não acredita em grandes políticas, em grandes planos; crê na acção directa, na transformação do um para um.
Enquadra o microcosmos da Zona J num ciclo universal que torna a exclusão cada vez mais difícil de vencer. “Há uma perpetuação da pobreza, das condições do estigma. Estamos a viver um momento da história marcado pelo retrocesso, em que a maior parte da população pode não ter hipótese de deixar de ser escrava”, declara.
Ainda assim, não se deixa derrotar. "Cada gesto no sentido contrário tem uma consequência muito maior do que pode parecer.” E não é uma questão de fé. “Ao longo do nosso trabalho tenho verificado isso, o facto de nós estarmos aqui já mudou muitas coisas."