in Diário de Notícias
Arturo Sosa, superior-geral dos Jesuítas desde outubro de 2016, é o primeiro não europeu a liderar a Companhia de Jesus. A entrevista ao padre venezuelano foi feita na Cúria dos Jesuítas no Vaticano. Perguntas em português, por sugestão do jesuíta, respostas em espanhol.
O venezuelano Arturo Sosa, de 68 anos, superior-geral dos Jesuítas desde outubro de 2016, é o primeiro não europeu a liderar a Companhia de Jesus, a maior ordem da Igreja Católica, com 16 700 membros. A entrevista foi feita na Cúria dos Jesuítas no Vaticano. Perguntas em português, por sugestão do padre Sosa, respostas em espanhol. Fala sobre Francisco, Fátima, refugiados, Descobrimentos e o legado de Hugo Chávez. Está vestido de cinzento-escuro, como que a lembrar que o líder dos jesuítas, pelo traje, pelo método de eleição e pela influência, também costuma ser chamado de Papa negro.
Qual é a importância para a Companhia de Jesus de ter pela primeira vez na sua história um não europeu como superior-geral? Alguém que vem da Venezuela, da América Latina, portanto de fora da Europa.
Creio que é um sinal do progresso que tem feito a Companhia de Jesus depois da sua restauração no século XIX. A Companhia começou a crescer outra vez na Europa e a Europa teve uma enorme generosidade em enviar jesuítas a todas as partes. Isso foi como uma semente. Hoje, passados quase dois séculos, temos uma Companhia semeada em mais de 120 países do mundo. E essa semente foi tão boa que produziu resultados em cada um dos terrenos. Sim, é verdade que sou o primeiro não europeu, o primeiro não nascido na Europa, mas os anteriores superiores--gerais, o padre Adolfo Nicolás, o padre Kolvenbach e o padre Arrupe, eram europeus, mas nenhum vivia na Europa. O padre Arrupe no Japão, o padre Kolvenbach no Líbano e noutros pontos do Médio Oriente e o padre Nicolás entre o Japão e as Filipinas. Portanto, é um progresso. Quanto mais a Companhia estava dependente da Europa, mais eram os missionários europeus. É a lei da vida. Depois começaram a nascer alguns fora da Europa. E aqui estamos.
Mas não pode ser uma coincidência de que ao mesmo tempo que há pela primeira vez um Papa nascido fora da Europa, também o seja o superior-geral dos Jesuítas. Significa que a Igreja em geral está a reconhecer a sua diversidade, finalmente?
Sim, e isso reflete-se no facto de que o Papa e este seu servidor sejamos ambos nascidos na América. Também diz muito sobre a Igreja latino-americana. Depois do Concílio Vaticano II, em toda a Igreja, em todas as Igrejas, houve um progresso muito grande. Mas em concreto a Igreja latino-americana levou muito a sério o Concílio Vaticano II e isso provocou um movimento eclesial muito importante de renovação, de levar a sério a religiosidade popular, de desenvolver uma atividade pastoral muito mais enraizada na realidade cultural e política. E de certa forma creio que o Papa Francisco e eu somos filhos desse processo.
São os dois sul-americanos, são os dois também jesuítas, já se tinham encontrado em congregações. Como é a vossa relação?
Agora são relações muito boas, de enorme confiança em todos os sentidos, de enorme afeto, para podermos atuar em total liberdade. Bem, o Papa é jesuíta, o que é uma honra para a Companhia, e mostra o maior respeito pela Companhia. Mas como Papa jesuíta não procura em nenhum momento interferir nas decisões internas da Companhia. E sabe que conta com os jesuítas para o que for preciso. Temos, pois, uma relação muito boa. No passado foi uma relação pessoal muito esporádica, afinal a Argentina fica longe da Venezuela. Encontrávamo-nos em reuniões. E há que ter em conta que também há uma diferença de gerações. Mas é uma surpresa muito agradável encontrar-se com um Papa que, além da espiritualidade, partilha connosco um continente do qual ambos vimos, e isso permite uma linguagem que é fácil de entender.
Na última Congregação Geral, em outubro, a 36.ª, que o elegeu superior-geral, o Papa apareceu e esteve a falar com os jesuítas. Não era habitual? É algo muito de Francisco?
Bom, normalmente, durante a Congregação, sempre houve um encontro com o Papa. Quero recordar que há um vínculo muito especial entre a Companhia e o Papa. E normalmente há uma audiência, uma eucaristia. João Paulo II, pessoalmente, celebrou a missa durante a Congregação 33. E houve também audiência na 34.ª. E também o papa Bento XVI nos recebeu em audiência. A novidade com Francisco foi, primeiro, o tempo que o Papa dedicou à Congregação. Passou connosco uma manhã inteira. E, segundo, o estilo. Pois se não o fez só com os jesuítas, mas também quando se reuniu com outros religiosos, outros grupos, teve connosco uma intervenção inicial de 20 ou 25 minutos e depois o resto foi muito espontâneo, respondeu a todas as perguntas que lhe fizeram.
E visitou a Congregação no vosso local, ao contrário do que era hábito nos papas.
Nas anteriores Congregações, o Papa sempre se dirigiu à Congregação. O discurso de Bento XVI em 2008 foi uma coisa que nos levantou o ânimo. Foi muito importante para a Companhia, um gesto de confiança. E aconselhou-nos a aprofundar a relação com os pobres. E as intervenções de João Paulo II também foram importantes, mas a de Francisco teve a novidade de ser mais dialogada. E foi durante muitas horas.
O que pensa deste estilo, desta mensagem de Francisco? O Papa está a conseguir dar um novo fulgor à Igreja Católica no mundo?
Certamente que o Papa se converteu numa figura não só para a Igreja como para o mundo. Seguramente, será das pessoas mais escutadas. E tem duas coisas muito boas na sua mensagem: a clareza - não é preciso estar a interpretar pois diz aquilo que quer dizer - e uma linguagem que toda a gente percebe, uma linguagem muito acessível. Creio que o Papa pôs na ordem do dia o drama da maior parte da humanidade, o drama da pobreza, da marginalização da periferia. Um drama que não se resolve com soluções simples, que é um problema estrutural, que tem tanto que ver com a sociedade humana como com a natureza. Deu ao discurso sobre a transformação social uma profundidade enorme, de uma forma sensível, sendo muito sensível e muito evangélico. Ele não pretende ser economista nem especialista em transformação social, senão uma pessoa que fala da sua fé e do seu coração. Uma pessoa que viveu situações muito difíceis na sua história, no seu país, e que conhece outras e as vive a partir do evangelho. E isso é um desafio para a Igreja. Que faça uma predicação que tenha essa característica, que nasça do Evangelho, que nasça da fé, que nasça da palavra e que nasça do encontro e do reconhecimento das pessoas mais pobres.
Companhia de Jesus
Como é que descreve hoje a relação entre a Companhia de Jesus e a Igreja em geral?
A Companhia de Jesus está sempre muito vinculada à Igreja, é uma parte da Igreja, quer mostrar serviço à Igreja e isso às vezes gera críticas. Mas nasceu para servir a Igreja e o Papa. A vocação universal da Companhia está clara e neste tempo compete-nos discernir, e esta é uma palavra que toca muito ao Papa - qual é o melhor serviço que podemos fazer como jesuítas à Igreja, dada a situação que vive o mundo e dada a situação de mínima força que temos. Santo Inácio gostava de falar da Mínima Companhia. Pois nós estamos a experimentar essa mínima não apenas porque somos poucos em relação à população mundial, mas também mínima em relação aos recursos que temos. Fazemos o melhor para servir a Igreja para que esta, por sua vez, sirva os pobres.
Há pouco citou o fundador, Inácio de Loyola, sobre a companhia mínima. Mínima hoje significa quantos jesuítas?
Hoje somos 16 700 jesuítas. Estamos em cerca de 120 países, organizados em 83 províncias, um pouco por todo o mundo. E há um processo demográfico em curso. Na Europa, que foi muito grande como presença, diminui o seu peso na Companhia. Na América do Norte é parecido com a Europa. Na América Latina mantém-se. E depois crescemos na Ásia, tanto do Sul como na Ásia-Pacífico, e em África. Existe hoje uma situação da Companhia muito diferente da que foi no passado, até porque a população mundial se multiplicou por muitos. E da Igreja também. Mas o problema para a Companhia não é o número, é a qualidade das pessoas, para que exista qualidade de serviço.
Voltemos um pouco à história. Dentro de duas décadas celebram-se os 500 anos da criação da Companhia de Jesus. Portugal e os portugueses estiveram presentes desde o início, certo?
Claro. Logo por Simão Rodrigues, famoso companheiro de Santo Inácio, e que foi quem mais ajudou a configurar esta Companhia. Portugal foi a primeira província da Companhia. E foram os portugueses que criaram a primeira estrutura de governo dentro da Companhia, pois tinha a sua autonomia. E depois os portugueses foram os grandes missionários, na Índia, na América Latina, no Brasil. E também a presença dos jesuítas no Japão. E isso teve que ver com o papel de Portugal no mundo. Também de outros mediterrânicos, de Espanha, Itália e França. Mas os portugueses eram os grandes navegadores. Presentes em todo o mundo. E, portanto, os jesuítas eram parte dessa cultura de um país que embora pequeno foi capaz de partir para todo o mundo.
Há um filme agora de Martin Scorsese, Silêncio, que conta a história de dois jesuítas portugueses que vão no século XVII ao Japão resgatar um outro jesuíta que fez apostasia porque estava a ser perseguido. Como é que explica a fé tremenda que tinham estas pessoas para irem tão longe, com tanto risco de vida, até à Índia, à China ou ao Japão?
Não eram só os jesuítas que corriam esses riscos. Foi assim que os portugueses e os espanhóis se fizeram ao mundo. No caso do jesuíta, o que o movia era a fé, não os interesses comerciais nem aventureiros. Era realmente uma decisão para expandir o Evangelho de Jesus Cristo. Sair da Europa naquela época, com os navios que havia, era logo por si arriscar a vida. Os relatórios dessa época dizem que se partia uma dúzia de jesuítas, na melhor das hipóteses chegavam seis. A própria viagem era arriscar a vida. Doenças, naufrágios. A decisão de ir à Índia ou às Américas era uma decisão que implicava arriscar a vida. E depois havia o outro risco, o de entrar numa cultura que não compreendia o Evangelho e, como mostra o filme de Scorsese, provoca uma perseguição contra a Igreja. Não só contra a portuguesa, como também contra a japonesa e as pessoas que tinham aceitado o cristianismo como a sua religião. E nestas situações de perseguição, há quem chegue a arriscar a vida ou a morrer torturado, crucificado, decapitado.
Neste ano, o Papa Francisco vai visitar Portugal, um país ainda muito católico mas cada vez mais laico no seu quotidiano. Como superior-geral dos jesuítas, como vê esta laicização crescente da Europa e do Ocidente em geral?
Vejo-a como um sinal dos tempos. É um processo que não serve de nada condenar ou deixar de condenar - é uma realidade - e que nos impõe vários desafios. E o primeiro é compreender o processo, no que é que consiste, quais são as suas raízes, quais são as suas desvantagens e vantagens, pois também tem vantagens. E o segundo é aquilo que João Paulo II chamou a nova evangelização. Há que encontrar a maneira de anunciar o Evangelho nesta sociedade. Entre as vantagens que eu vejo neste processo está que aquele que assume o seu cristianismo ou o seu catolicismo o faz com muito mais consciência e com muito mais liberdade. O facto é que a laicização levou a que já não se aceite ser religioso por pressão. Na sociedade, praticamente até ao século XIX, não era possível não ser religioso - fazê-lo era procurar marginalizar-se socialmente. Faltava algo muito importante: a escolha livre da fé.
Então há hoje menos cristãos mas muito mais convictos?
Sim, e aí estão os números. Porque antes toda a gente era cristã. Agora há um processo, uma decisão pessoal, um eu quero ser, e isso também é um desafio. Propor o cristianismo como uma escolha, uma fé que a pessoa aceita livremente. E esta laicização não acontece só nas sociedades tradicionalmente cristãs, acontece por todo o lado, nas sociedades muçulmanas também.
O Papa Francisco, na sua visita neste ano a Portugal, vai participar no centenários das aparições de Fátima. Como olha para este fenómeno do marianismo e do culto de Maria?
Não é propriamente um culto, antes uma devoção, e a devoção a Maria é algo tão enraizado na tradição cristã. Não é um privilégio dos portugueses nem dos latino-americanos, que somos muito marianos e muito devotos de Maria. É que desde os começos da comunidade cristã o lugar de Maria sempre foi de grande relevo. Maria é como a expressão de uma fé levada à sua maior radicalidade. Maria foi capaz de aceitar algo que era muito difícil de entender. A sua maternidade foi marcada por perder o seu filho. E por isso é que a comunidade cristã sempre viu Maria como a mãe da Igreja e que sempre esteve a apoiar esse processo tão difícil que é o caminho da fé. E também a devoção mariana é uma coisa muito popular, do povo, da gente simples, é uma coisa humanamente muito intuitiva, uma espécie quase de conexão automática como faz cada um com a sua mamã. Creio que o Papa Francisco, como disse no início da entrevista, também esteve na sua história pessoal muito em contacto com a fé do povo. Que também é um dos pontos importantes da renovação da Igreja Católica na América Latina. Foi exatamente conetar-se com essa fé simples, das pessoas, popular. E Fátima é isso. Fátima é uma expressão dessa fé popular que vê em Maria um presente de Deus. E que vê em Maria a possibilidade de ser cristão, porque a própria Maria era uma pessoa do povo, uma pessoa simples, que foi capaz de compreender, e dar o que deu, às pessoas.
O senhor foi muitos anos professor universitário na Venezuela. A educação é também algo que as pessoas associam muito aos jesuítas. Porquê esta aposta na educação? É a forma de dar força à Igreja?
Mais do que dar força à Igreja, creio que a educação é a forma de fazer desenvolver a pessoa, de oferecer-lhe a fé cristã como caminho. Hoje não acredito que haja alguma sociedade que diga que não é preciso educar os jovens, mas no passado não era assim. Quando a Companhia começou a ter colégios não era comum, só estudavam os nobres, aqueles que tinham grandes posses económicas. E a Igreja começa a dizer que todos têm o direito, e necessidade, de educação. E começa a apoiar esse processo. E nesse processo, se se educa o intelecto, também se forma a pessoa, acompanha-se o seu processo de crescimento pessoal e religioso. Oferece-se a fé como uma dimensão da vida. Depois, para a Companhia de Jesus, que está desde o início muito ligada à educação, há também a questão da formação dos seus membros. Depois dos fundadores, para ter novos membros, há que formá-los. E para formar novos membros foi preciso instituições, formadores, professores. E assim também se foi criando essa mentalidade, essa importância da formação, incluindo a religiosa. A Companhia, em resumo, investe tempo, energia, recursos para formar a sua gente. Porque acredito que um jesuíta, com uma experiência de fé muito profunda, tem de ter uma formação intelectual boa. Ou seja, tem de ser capaz de entender este mundo e de entender a mensagem da Igreja e do Evangelho. Então para a Companhia de Jesus, o educar-se e o educar o outro tem sido uma maneira de fazer um serviço importante à sociedade e à Igreja.
Um outro serviço importante que os jesuítas fazem é o apoio aos refugiados. Como sabe, sobretudo na Europa, é um problema muito presente. Como vê este choque entre os pobres do mundo que procuram o eldorado europeu e tanta recusa, no lado dos ricos, em aceitar esses refugiados?
Certamente que me interrogo sobre essa questão, porque eu venho de uma família de imigrantes. Na América Latina, é o fenómeno da imigração que cria as sociedades. Não foi só a minha família. No meu país, recebemos grandes quantidades de gente durante a Primeira Guerra Mundial, durante a Segunda Guerra Mundial também. Gente que fez a sua vida na Venezuela e noutros países da América Latina. Depois também recebemos do Sul gente quando as ditaduras militares do Chile e da Argentina as expulsaram. E mesmo, quando a Venezuela tinha condições económicas melhores do que as que tem hoje, muitos colombianos vieram até o nosso país e passaram a fazer parte da sociedade venezuelana. Então, digamos que o fenómeno migratório não é novo e questiono que um continente, como a Europa, que recebeu tantos imigrantes e deu também tanto emigrantes ao mundo, hoje procure como fechar-se a um novo fluxo de que, no entanto, necessita. Porque a Europa está mais ameaçada se não receber imigrantes do que se os receber. A própria Europa, pelo seu desenvolvimento social e pela sua situação demográfica, precisa de imigração. Então há que interrogarmo-nos sobre a cultura europeia, porque é uma cultura que nasce deste mundo moderno, que reivindica a universalidade do ser humano e os direitos humanos. Creio que há uma reflexão profunda a fazer.
Surpreende-o que nos Estados Unidos, um país de imigrantes, também seja agora tão forte esse discurso de repúdio do outro?
É essa a pergunta que tem de ser feita. Porque é que uns que têm origem de imigrantes, e sabem que é assim, fecham a porta a outros? Creio que o fenómeno migratório também nos deve fazer refletir sobre a conceção que temos do mundo, outra vez a certeza de que não podemos estar bem e outros mal. Para que estejamos bem teremos de trabalhar para que toda a gente esteja bem. Enquanto o mundo não for inclusivo, um mundo onde todos não encontremos o nosso lugar e condições humanas para viver, haverá sempre uma tensão sobre a imigração e outros problemas.
Voltando à sua origem sul-americana. Já disse que a força do catolicismo está muito em África e na Ásia. Mas está também na América Latina, da Califórnia à Argentina? Qual é a força do catolicismo neste momento na América Latina?
Creio que o catolicismo na América, e digo na América porque vai mais além da Califórnia, enfrenta o grande desafio deste mundo que se está a modernizar. E, portanto, já não existem os parâmetros do mundo agrário tradicional, mas sim os parâmetros da sociedade da informática, da sociedade aberta, da sociedade onde a liberdade individual é muito valorizada. E onde existe uma fé ainda muito vinculada com o fundo cultural popular. E é ai que está o desafio. E nesse sentido, creio que a Igreja e a comunidade cristã têm vindo a aprender a conviver como um ideal de fé com uma sociedade na qual a fé tem uma posição distinta da que tinha no passado. E relacionando isto com o tema dos refugiados, devo dizer que as comunidades cristãs na América, e também na Europa, têm sido solidárias com o fluxo de migração, não só por tributo à história como porque existe uma fé que nos leva a ter uma abertura diferente à pessoa humana e à sua situação.
Do ponto de vista mais político, a América Latina é hoje em geral um continente de democracias e praticamente já não há guerras, pois mesmo a da Colômbia está em vias de terminar. O senhor escreveu muito sobre a sua região. É otimista em relação à evolução da América Latina?
Eu não sei se sou otimista ou realista, mas a América Latina, com muito trabalho, está a tratar de viver democraticamente e procurando a justiça social. No entanto, a América Latina continua a ser o continente mais desigual - é onde a diferença entre os ricos e os pobres é maior -, e esse é o grande desafio, pois não pode haver democracia se não há justiça social, um maior equilíbrio entre a vida das pessoas. E esse processo ainda está muito no início nos países da América Latina. Construir uma sociedade onde todos tenham oportunidade de viver humanamente ainda está muito longe.
Isso explica porque no seu país, a Venezuela, existe uma divisão tão grande entre os herdeiros do chavismo e a oposição? É uma luta de classes que ainda está a acontecer na Venezuela?
Para entender a Venezuela é preciso entender o tema da renda petrolífera. Na América Latina há outros países com petróleo, como o México, o Equador ou o Brasil, mas têm outras fontes de rendimento, o que não é o caso da Venezuela. A situação da Venezuela é diferente porque, quase desde os anos 20 do século passado, o petróleo converteu-se no único recurso. E não porque fossemos grandes produtores, mas sim porque tínhamos petróleo debaixo do chão. Bem, a Venezuela até tem muito petróleo, mas era explorado por outros. Mas o que pagavam era muito no passado, com a particularidade de ser recebido pelo Estado, o que teve consequências muito importantes, porque se depende de um bem natural não renovável mas cuja renda permite obter produtos de outras partes sem ter de produzir. Ora, isso não desenvolve a produção própria nem agrícola nem manufatureira. E importa-se alimentos e outros bens. E isso gera uma sensação de abundância e de modernidade, mas sem base económica. Mas do ponto de vista político é ainda mais grave, porque normalmente numa sociedade democrática o Estado vive da sociedade, e contra isso lutam cidadãos em todo o mundo para pagar o mínimo de impostos porque o Estado vive do que produz a sociedade. Mas no caso da Venezuela, a sociedade vive do Estado, porque é o Estado que recebe a renda petrolífera e depois a distribui. A cidadania tem uma característica muito diferente.
O que está a dizer é que a crise atual na Venezuela tem que ver com o baixo preço do petróleo? Que se não fosse assim não haveria esta crise tão grande?
Haveria outras crises, como há noutros países, mas para ser entendida a crise da Venezuela, há que compreender isto. E a proposta do chavismo não altera esta relação. Nem as ditaduras militares da primeira metade do século XX, nem a democracia partidária da segunda metade do século XX, nem o chavismo, o socialismo do século XXI como lhe chamou Hugo Chávez, alteraram essa relação entre o petróleo e a sociedade venezuelana. Enquanto isso não for mudado não há alternativa. E o chavismo chega ao poder porque os limites do modelo estavam muito claros. Já não chegava a renda petrolífera para manter o desenvolvimento da sociedade. Tudo isto é evidente. O chavismo teve sucesso enquanto o preço do petróleo esteve acima dos cem dólares, agora que está nos quarenta não tem capacidade.
Mas acredita que é possível uma solução negociada para a Venezuela?
A curto prazo tem de haver. Não há outra hipótese. Se olharmos um pouco para o processo colombiano, para se resolver 50 anos de guerra entre as FARC e o governo passaram-se quatro anos a negociar, e a mudança na negociação, quando se deu o salto, foi quando escutaram as vítimas. Foi quando o Estado e a guerrilha das FARC se sentaram a escutar os efeitos dessas guerras, as vítimas do Estado e as vítimas da guerrilha. Na Venezuela não há 50 anos de guerra graças a Deus, mas a situação atual da sociedade é insuportável para as pessoas de qualquer dos lados. Aí não há polarização. É para todos neste momento a dificuldade em arranjar medicamentos e alimentos, em encontrar bons cuidados de saúde e que a escola funcione. Enquanto o governo, o Partido Socialista Unido da Venezuela, o chavismo e os partidos da oposição não escutarem as pessoas que são vítimas deste processo vai ser muito difícil a negociação. Mas quando escutarem vão ter de chegar a uma negociação sobre o que fazer para que as pessoas não continuem a morrer porque não há remédio ou porque não há comida. Para que tenhamos uma qualidade educativa que permita à Venezuela ter, como no passado, profissionais de boa qualidade. A mensagem para mim é escutemos as vítimas, as pessoas que estão a sofrer para que se possa chegar a acordos mínimos que beneficiem a todos.