Júlia Caré, in Dnotícias
Um salário de 557 ou 570 euros chegará para a tal vida digna de que a Constituição Portuguesa fala?
O salário mínimo foi introduzido na vida económica portuguesa logo no dealbar da revolução de abril e consagrado posteriormente na Constituição, cabendo ao Estado assegurar o seu estabelecimento e atualização, “tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, (...) as exigências da estabilidade económica e financeira (...)” (artigo 59º). Além disto, aumentar o salário mínimo é discutir condições laborais, jornada de trabalho, férias e folgas, “de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar” (idem). E também falar de decência e dignidade básicas, no país europeu com maior desigualdade salarial e onde, segundo fontes governamentais, mais de um em cada dez trabalhadores está em risco de pobreza. E sobretudo, por uma questão de ética cidadã, intervir ativamente na chaga do desemprego, evitando que empregadores sem escrúpulos se possam aproveitar da elevada precariedade laboral para explorar de forma desumana e inaceitável. É defender a democracia.
Nos últimos anos, ainda antes da crise, e agravada em consequência dela, procedeu-se à desregulação paulatina das relações laborais, à desvalorização generalizada das remunerações com congelamentos, reduções e cortes de salários. Seja pelo contexto da globalização, por convicções ideológicas, por imperativos financeiros, ou por incompetência política, a distribuição percecionada do rendimento no nosso país fez-se mais em favor do capital, em detrimento dos salários. Sabe-se como o anterior congelamento do salário mínimo se fez acompanhar por uma brutal destruição de emprego e aumento da pobreza. O que sentimos como resultado foi o crescente empobrecimento de quem vive dos rendimentos do seu trabalho e o agravamento das desigualdades na distribuição da riqueza produzida. E ainda não esquecemos a simultânea eliminação dos benefícios sociais. A era do Estado mínimo. Estranha conceção de coesão social...
O salário mínimo foi agora fixado em 557 euros a nível nacional (570 euros a nível regional). Um acordo difícil porque, pagar mais, alegam os patrões e alguns gurus da economia e da política, cá e em Bruxelas, significará mais desemprego e afastará os investidores... Ainda que outras estatísticas provem exatamente o contrário: aqueles gráficos do aumento de lucros dos mais ricos da revista Forbes, - os que patrioticamente pagam impostos fora do país -, das exportações, das ténues auroras de sucesso na economia portuguesa, segundo o britânico Financial Times e blá, blá, blá... Pouco provável é que os milhões das compras e dos movimentos multibanco da época natalícia de que tanto se fala tenham vindo de detentores de salário mínimo!
O que os números também dizem é que são cada vez mais os trabalhadores – alguns com formação universitária - a auferir este rendimento laboral. E que aquela discutível cedência negocial do governo à volta da TSU das empresas poderá retirar contribuições necessárias e devidas à Segurança Social e contribuir, isso sim, para mais desvalorização salarial por parte de empresas cujo sucesso financeiro até permitiria pagar um pouco mais aos seus trabalhadores... Conceções de responsabilidade social de certo universo empresarial...
Um salário de 557 ou 570 euros chegará para a tal vida digna de que a Constituição Portuguesa fala? Para pagar os custos com habitação, alimentação, cuidados de saúde, educação, transportes, vestuário, acesso à cultura? Para constituir família e equilibrar a demografia? Para um país desenvolvido, coeso, democrático e uma economia socialmente justa e sustentável? E quem se preocupa com isso, neste ano de muita apreensão que agora se inicia?